quarta-feira, 20 de junho de 2007

Porfírio num dia de Satanás.


Acordei desconfortável e sentindo  totalmente gélida a parte posterior do meu corpo. Abri os olhos e surpreendi-me ao me ver deitado sobre uma espécie de lápide de mármore. Assustado,  levantei rapidamente. Assim que me vi de pé olhei para mim e eu estava completamente nu. - Mas que porcaria era aquela? - Desconsertado, eu não sabia explicar que diabos poderia estar fazendo num lugar daqueles, ainda mais com o corpo tilintando naquela vastidão alva. Repentinamente ouço um ranger de porta  e um homenzinho de  cabelos ralos e barba branca surge por ela. Óbvio,  não era o Papai Noel.

- Ah! Estou vendo que acordou! – Exclamou ao inspecionar-me de cima abaixo. Todavia, carregava no semblante uma doçura que há muito eu não percebia na humanidade.
.
Achei-o curioso. Era baixo, talvez um pouco mais de metro e meio e vestia uma túnica tão alva quanto o resto,  e isso me incomodava os olhos. A surpresa  o desconserto e a perplexidade não cederam, portanto nada fizeram para que eu  compreendesse aquele lugar de tonalidade tão clara quanto os flocos de neve.

- Venha! – Pediu-me gentilmente e se pôs a caminhar. Segui-o, já que instinto prevenia-me pra não perdê-lo de vista.

Indo em frente ultrapassando portas e mais portas demos num corredor que de um lado ao o outro se estendia interminável sem que  pudéssemos precisar o fim. O velhinho caminhava adiante e eu não pude deixar de reparar nos seus passos curtos que se separavam um do outro por uma distância ínfima. Portanto, como nada havia a ser feito, salvo andar, lá fomos nós; qual seria o significado de seguir o homenzinho? E por que eu estava nu? E sobre a situação?
Bem, quanto à situação, ela começava a me perturbar:

- Senhor, não leve a mal, mas poderia dizer o que está  havendo?- Ele estancou o passo chinês, olhou-me firmemente, e perguntou

- Meu filho! Ainda não percebestes?

- Perceber o que?  Fora o fato de estar nu e perseguindo o senhor por todos os cantos, o que mais deveria perceber?  -  Refutei e ele me interrompe:

-Ora, que falta de percepção, meu filho. Tu estás no paraíso!

- Paraíso? Como assim?- Questionei surpreso. Aquele sujeito só poderia estar maluco,  drogado ou coisa que o valha.

-Deve estar pensando que estou doido ou drogado, não é meu filho? - Perguntou-me com bondade. O velhinho parecia ser bom naquele negócio de ler mentes.

Bem, adivinho ou não, eu estava inquieto. Ele percebeu a minha aflição e,  tentando apaziguar  o meu espírito alargou o seu melhor sorriso e explicou o básico daquilo que eu necessitava saber. Disse-me  que eu havia morrido num acidente de automóvel. Para que entendesse perfeitamente avançou a mão direita por cima da esquerda, numa simulação do atropelamento.

-  Foi assim?  Um automóvel? -  Insisti fazendo os mesmos  movimentos das suas mãos. Meu Deus! Eu só podia estar sendo alvo de pesadelo, tal o absurdo daquilo -  Concluí por instantes -

-Sim, não é absurdo, meu filho. É tão real quanto não estar acometido de pesadelo. Simplesmente faleceu ao ser atropelado por um desses sujeitos desajustados e que fazem do carro a arma da morte – Ele discorre docemente. Eu o olho perplexo, aturdido.

- Pretendes que eu seja mais detalhista? - Ele crê que ainda não me dava por convencido.

-Sim, claro! - Repliquei  - Apesar das esquisitices do sujeito, eu achava que todo indivíduo tinha o direito de saber como e porque bateu as botas.

-Você foi atropelado pelo Manoel Calazans, um chofer de praça que dirigia  um taxi tão branco quanto a cor desse ambiente de glorificação - Finalizou levantando os braços para os céus.

Olhei para ele. Os mesmos olhos piedosos continuavam ali testemunhando uma conversa sem pé e  nem cabeça. Imaginem? Eu morto e  nu, e ainda por cima  dando ouvidos para um matusquela  saído do meio daquela alvura toda?   O problema é que não me recordava de tudo.
O diálogo, fora de lugar, fez-me tentar recordar outros dos meus passos  e a ultima coisa que relembro foi de estarem numa faixa de pedestre la pelas duas da madrugada. Recordo-me também que tinha saído dum bar onde que estivera com amigos. Talvez por lá e sem que eu percebesse me tornei refém dalgum delírio causado por substância alucinógena, misturada à bebida  por aqueles paspalhos. Eu não sabia, apenas e como de hábito eu havia bebido o suficiente para estar trôpego e solitário atravessando a maldita faixa.
Bem... e depois? Depois... Estranhamente,  não me recordava do baque e nem do atropelamento.
Eu pensava nessas tantas coisas, e Paulo,  ao me flagrar reflexivo finaliza a conversa.

- Então, meu filho! Foi exatamente assim que ocorreu.  E você só se recorda parcialmente em virtude do imprevisível do acidente. Talvez se ele estivesse em  velocidade em menor haveria alguma chance pra você - Obviamente concluiu com a mão saltando uma por sobre a outra.

Por Deus! Era assim? Simplesmente morrer e boa?
Quem era aquele filha da puta que me atropelou? E o velho, como poderia saber de tantos detalhes? Merda! - Exclamei - Aquela conversa sobre o paraíso a contragosto começava a fazer algum sentido.
Assim que me notou um tanto conformado virou-se  e retomou o caminho Surpreendentemente os passos apesar de ainda curtos tornaram-se rápidos, obrigando-me a correr atrás. E, quanto mais os seus passos se apressavam mais as minhas doloridas pernas achavam a situação tanto verossímil.

Seguindo, entramos num portal onde um imensurável e maravilhoso jardim abriu-se à nossa frente. Nele  todas as espécies de flores e plantas se dispunham milimetricamente e os seus aromas exalavam cheiros doces e esses contribuíam pra quela perene sensação de paz. Aquilo me intrigava ao mesmo tempo que notava milhares de pessoas transitando pelos jardins percebia que não havia um único homem nu, exceto eu. Dobrávamos a esquerda numa das alamedas quando  repentinamente, saído detrás de um jasmineiro surgiu um segundo homenzinho de barba branca. Achei-o curioso,já que suas feições me remetiam ao outro apesar da sua estatura pouco maior e barba mais rala.  O ancião estacionou à nossa frente e igualmente inspecionou-me. Depois de algumas olhadelas voltou-se para o meu anfitrião e perguntou:

- Paulo, esse é aquele  rapaz que foi atropelado no semáforo de esquina daquele antro de prostituição?

- Sim, Pedro, na Rua Augusta, é  ele mesmo. -  Confirmou para o colega. Os olhos  de ambos cintilavam compreensão.

Olhamo-nos os três. Caraca! Até esse sabia onde eu atravessara  a maldita  faixa de pedestres?
Bem... - Pensei  comigo -  Menos mal, ao  menos já lhes conheço os nomes;  Pedro e Paulo -
Opa! Pedro e Paulo... Paulo e Pedro? Mas, Pedro e Paulo não foram os baluartes da Igreja Católica Apostólica Romana? Caracoles! Sim, eram  eles, em carne e ossos!  Jamais poderia imaginar conhecê-los, ainda mais numa situação dessas. Eles me fitavam amorosos  quando momentaneamente relembrei da minha criação cristã e que martelava os seus nomes em minha mente pecadora.  Porém, naquela época eu achava que Céu e Inferno  fossem meras invenções do catolicismo  A necessidade que a Igreja sempre teve de nos controlar, nem que pra isso nos fizesse acreditar que éramos pecadores por essência, de nascência, malfeitores existenciais que deviam se purificar no sacramento da confissão para assim se tornarem livres do reino de satã,

- Paulo esse é Porfírio, Porfírio esse é Paulo - Apresentações feitas, seguimos caminhando pelas alamedas ajardinadas quando Pedro cochichou com Paulo -

-Já lhe foi dito da entrevista? - Entrevista? Acho que pensaram que não ouvi.

- Entrevista? Mas que entrevista? – Perguntei, desconfiado.

- Calma, Porfírio! Quando for entrevistado há de saber tudo. Porém esse ainda não é esse o momento.

Achei aquilo um tanto confuso.  Afinal, que merda de conversa seria aquela?
Silenciosos, seguimos em frente por um tempo que não sei determinar até darmos na imensidão de outro saguão. Caminhando, demos num portal, talvez do tamanho de um transatlântico contornado por fios de ouro, abrigando no centro, mais alto que um prédio de 10 andares, o cálice e a pomba, esculpidos em Carrara e em alto relevo
Entramos. Logo adiante a imensa mesa onde 10 pessoas se acomodavam. Dispostas sobre o granito travessas de vime se abarrotavam de pães, peixes, e se faziam acompanhar por muitos, muitos jarros de vinho. Com a nossa chegada todos se levantaram em sinal de respeito.

- Desculpem-nos o atraso! – Justificou-se Pedro.

Após um breve sinal e ainda em pé fizeram suas orações agradecendo ao bom Deus pelo alimento concedido. Ao  novo sinal de Pedro sentaram-se.

- Paulo, por favor, apresente o Porfírio para o pessoal - Pedro solicitou.

O tom suave, mas autoritário deixou bem claro que seria o velho Pedro era um dos executivos do paraíso. E mais claro ainda; o bom Paulo, seu secretário particular, assistente de diretoria, ou coisa que o valha.
Prestativo, Paulo  apresentou-me a cada uma daquelas figuras. Seguiram-se João Evangelista, Judas Tadeu, André, Bartolomeu, Matias, Mateus, Simão, Tiago, Tomé e Judas Iscariotes.

Por Deus! Judas Iscariotes? Então era isso? Eu me encontrava sentado á mesa com os 12 apóstolos.

Como visitante tive o privilégio de sentar-me à direita  de Pedro. Ele  acenou  e todos se debruçaram sobre seus pratos para o deguste do almoço.
Perplexo,  a única coisa que me incomodava era o olhar traiçoeiro de Judas Iscariotes  Ele não me olhava nos olhos e sim na direção do meu peito nu onde um cordão banhado á ouro cintilava junto de uma medalhinha de Che Guevara. Havia no olhar dele um brilho estranho, algo covarde e interesseiro daqueles que acham que para tudo há um preço. O resto da refeição ocorreu dentro da normalidade e terminamos tão silenciosos quanto começamos. Em pé, novamente fizeram orações de agradecimento. Terminada a confraternização, Pedro solicitou a Paulo que me conduzisse ao “LOCAL”.

Conduzir-me? Conduzir pra onde e pra que? Ansioso, me tornei inseguro ao perseguir Paulo naquele meio de infinitude alva.  E o pior; um fato  insólito começou tornar a situação incontrolável e nada prazerosa: Pelo jeito Paulo sofria de um mal que expelia em  público, de forma estrondosa, e como se fosse a coisa mais natural desse mundo; Gases - Ele não caminhava 10 passos sem que deixasse de soltar um dos seus. Aquilo começou a me irritar. Foi inevitável, então:

- Seo Paulo,  poderia fazer a gentileza de deixar de soltar  esses desagradáveis gases por algum tempo? - Ele me olhou aturdido, talvez mais decepcionado que aturdido. Provavelmente ninguém se importava com os traques do bom velhinho

- Ora, ora, Porfírio! São apenas gases! Flatulência é algo extremamente natural. É um fator orgânico onde o acúmulo de gases se concentra  na região abdominal. Portanto, é mais que salutar expeli-los antes que se acumulem de forma a nos causar cólicas dolorosíssimas! - Justificou angelicalmente.

Dito, continuou seus passinhos curtos, soltando peidos, causando-me ânsias tal a putrefação aromática. Todavia era muito engraçado  também;  o seu andar o fazia  rebolar as mirradas nádegas
À princípio tentei conter, mas tão hilário que me foi impossível conter a gargalhada.
Novamente Paulo para e me fita. Eram lindos aqueles olhos de um azul tão mágico e pueril que por momentos tive vontade que fossem meus. E o mais insólito; além de magníficos eles pareciam emanar pureza, assim como crianças em aula de catecismo.
Eu estava cansado, destroçado de tanto caminhar um tempo que não sabia quanto. 
Desgraçadamente íamos pra onde?  Eu não sabia. Só tinha o conhecimento que haveria uma entrevista. Momentaneamente viajei e sorri ao imaginar João Batista como âncora dum programa de variedades.  Que besteira!
As pernas ardiam, formigavam tanto que comecei a gemer baixinho; quem sabe o velhinho flatulento se sensibilizasse.  Nada!

Seguimos em frente, não sei se por dias, horas, ou minutos até entramos num infindo jardim. Lá milhões de plantas se misturavam às árvores e se abriam para esplendorosas alamedas. Foi então que ele percebeu que eu arfava exausto. . E foi extenuado nesse paraíso celestial que eu vi a multidão. E eu  olhava surpreso para o vai e vem das pessoas. E elas seguiam  silenciosas, meditativas, olhares perdidos se fixando nas suas sandálias, extraindo do raso toda paz que necessitavam.  E assim permaneciam e não levantavam seus olhares por nada e nem por ninguém.
E eles iam e vinham cruzando-se entre si num emaranhado de túnicas brancas, puras, quando dei uma por uma voz e um som de piano. Apurei os ouvidos; Impossível! Eu era capaz de jurar  que a voz era de Ray Charles. A melodia seguiu suave e eu pude reconhecê-lo na bela  "Geórgia On My Mind”. Num outro instante e mais adiante outra voz;  Reconheço a voz de Sinatra. Com gestos estudados o mafioso galã interpretava a famosíssima "My Away" -

Repentinamente outra voz geme num lugar qualquer. Inacreditável! Era ele!  O rei Elvis Presley  em carne e osso. E ele  se contorcia e o seu topete caia sobre a testa enquanto os suores desciam por suas faces rosadas. Fantástico ver aquele homenzarrão vestido de túnica e galardões além dos botões dourados. Freneticamente ele entoava uma das canções que revolucionaram o nosso tempo - "Thats All Right" – Ele rebola numa dança pra lá de sensual, quase erótica, como se fizesse amor consigo próprio. Surpreendentemente não havia lágrimas e nem histerismos. Não se ouviam gritos, balzaquianas se descabelando, seguranças corpulentos espalhados pelos cantos e nem fãs querendo  despedaçar mais a ele que aos pedaços da sua roupa de artista que seriam guardados como souvenir. Não havia nada, apenas as suas atitudes e a voz soando para a candura dum rebanho sem vida, alegria e tristeza.


- Estas muito cansado, Porfírio? – O velho pergunta.

Diante a minha confirmação ele estica o braço direito e estala o dedo médio ao polegar como se chamando o garçom.  Estarreço-me! Não foram garçons que surgiram, mas sim duas confortáveis poltronas brancas como tudo. Foi inacreditável vê-las descendo de um outro firmamento que nem suporia existir.  Sentamo-nos.  Ao me acomodar o pênis balançou como o badalo de um sino diante dum velho com sorrisinhos sacanas. Era estarrecedor estarmos sentados em meio à turba e tão próxima e submissa  que mais se assemelhava às ovelhas dum pastor.
Continuamos a conversar e pela primeira vez Paulo  tocava-me no ombro. Fitava-me com os seus magníficos olhos quando explicou:

- Porfírio, tenhas a absoluta certeza  que estás aqui porque morreste.  Estás vendo todas essas almas zanzando por aqui e ali?  Pois bem. Elas tiveram seus merecimentos para estarem na casa de Deus. – Eu o escutava aturdido.  Ele continuou:

- Nem mesmo o Elvis não foi unanimidade entre nós. Houve discórdia entre Pai e Filho, cada um com o seu ponto de vista. Jesus não o queria, mas foi voto vencido ante a teimosia do Pai.  Talvez não saiba, mas o Pai é extremamente autoritário, mas, bondoso. Entendes tudo agora? Se estás aqui é para ser entrevistado pelo Senhor. A grande maioria nem passa pela entrevista; Ou vem para cá ou vão direto ao inferno. No seu caso, Deus acredita que só uma conversa poderá resolver.

-Como assim, uma conversa? – Inquiri.

-Aguarde Porfírio! Tenhas calma e verá que tudo será sacramentado – Ele limitou-se dizer

Seria possível aquilo? - Não havia  respostas para as minhas questões. – “Porfírio, - acorde! Acorde, Porfírio” - Disse para mim.  Eu queria acordar daquele horror, levantar e olhar pela janela e saber que mais um dia me esperava, fosse ele de sol ou chuva.  Foi dividido entre o desespero e a sanidade que cravei  as unhas em minhas carnes. Nada! Não senti o tato, nem dor, nem ao menos sangue. Eu estava morto e nada poderia modificar o fato. Persistente, ainda tentava me salvar desse oceano de perplexidades quando fui acometido por visões. Algo parecido com  imagens de um vídeo tape em preto & branco se estacavam nos meus pensamentos quando as cenas do atropelamento foram exibidas em minha mente. Era como se estivesse diante dos meus olhos, como se eu fosse um espectador da minha morte, lugar privilegiado, a primeira fila num cinema imenso. E foi assim que me vi morrer.

Vi e senti o exato momento do baque - Ploft!-  A pancada  violenta que me arremessou a uns de 15 metros de local do choque. Eu pude ver o voo extraordinário, o filete de sangue escorrendo da têmpora esfacelada  ao colidir com o asfalto.  Fora ali e naquele instante que a vida se foi levando-me a alma e o corpo.

- Ok seu Paulo! Ok! Lembrei-me agora. Tudo terminou – Assenti com um gesto de cabeça.

As cenas e o sacramento da minha morte chocaram tanto que tentei desanuviar e livrar-me dos horrores das imagens.

- Seo Paulo, aqui é sempre assim?-

Claro, me reportava a toda àquela gente ordeira, vestida em reluzentes túnicas, silenciosas, zanzando incompreensivelmente de um lado para outro. Antes mesmo de responder novos acordes soam e dessa vez vindos de um homem sentado ao piano. Impossível! - Era a Nona Sinfonia, de Beethoven -  E eu o vi diante dum piano Steinway, branco tal os cabelos. A execução, misto de amor e ódio,  parecia deixá-lo obcecado, e Ludwig martelava o piano com mão lépidas, exímias, um dos grandes gênios da humanidade, ali, absorto, tomado por sua música assim como as nuvens reféns do céu. E foi ali, ouvindo os acordes da obra que pude observar o quanto aquilo aborrecia o velho Paulo, tal o desinteresse; simplesmente ele parecia não se entreter com qualquer daqueles astros.
Não compreendendo a situação tentei argumentar:

- Seu Paulo, o senhor parece não gostar de Beethoven... –

Mais uma vez me fitou na infinitude dos seus olhos azuis e eles pareciam ganhar brilho,  o viço, achados no entusiasmo ao admirar o nada.  Eu o olho fixamente, demoradamente, algo me dizia que lá atrás, num passado de milhares de anos houvera um sujeito revolucionário, resguardada as proporções, um Che Guevara do seu tempo. As contas azuis, agora expressivas faiscavam, cintilavam. O velho Paulo num salto entusiasta pôs-se a falar, falar:

- Que nada, Porfírio, o surdo do Ludwig já era! Eu não aguento esse  sua lengalenga com a Nona Sinfonia. É obsoleto demais, maçante demais, arcaico demais, enfim...

Eu estava perplexo; Como alguém poderia estar diante de um dos maiores gênios da humanidade e sem nisso sentir qualquer prazer? Bem, para não contrariá-lo, não o contestei. O velho parecia uma cachoeira de força, e continua:

-Porfírio, o que você me diz dessa multidão, esse silêncio sepulcro? – Eu não sabia o que falar, não tinha opinião formada. Ele insistia; Se sabia lá há quantos séculos não lhe davam ouvidos?

-E outra Porfírio... Todos esses babacas, Elvis, Charles, Sinatra, são uns verdadeiros malas. Eu to de saco cheio de tudo! Cheio deste lugar de algodões alvos, de Pedro, do mensageiro que lhe sou – “Paulo, faz isso! Paulo faça aquilo” - Definitivamente, to transbordando! – Eu me encontrava surpreso e perplexo com o desabafo, duro, lamentoso. Então ele se achegou bem próximo, e seus olhos, como à procura de espiões, se certificaram que tínhamos privacidade. Certo agora que não podíamos ser escutados, grudou-se de vez e segredou em meu ouvido:

- Porfírio! O que eu mais queria era estar com a turma "lá de baixo". Aqueles garotos sim é que sabem das coisas! Daria tudo por aquelas surubas infernais, aquelas mesas repletas de gente falante, emborcando suas cervejas, curtindo os peitões e os bumbuns empinados daquelas malditas diabas!

Ele se entusiasmava cada vez mais. Para ele parecia não haver qualquer limite, agora:

-Sonho estar lá embaixo, curtir um som com Hendrix, Cobain, Mercuri, Ramone, Lennon, e muitos outros. Eu já não aguento mais as frescuras e estrelismo do Elvis, nem os óculos escuros e a voz pastosa do  xarope do Charles e muito menos o estilo "pego todas"  do Sinatra. Quanto ao outro, Ludwig, “o surdindo” bem, desse eu já falei o que penso.

Eu o olhava aturdido. Não havia qualquer pessoa ou divindade capaz de freá-lo:

-Queria estar lá e esquecer essa minha vida celibatária, e curtir uns becks, transar um mundo vermelho e da cor do blood Mary! Queria sentir as labaredas tosquiando à pele, aquecendo a alma. Queria ser menos santo, sentir o as chamas me consumindo, fazendo o sangue rubro e quente correr nas minhas veias.

Por fim, finalizou deprimido:

-Estou tão enojados dessas coisas tão alvas e reluzentes que ferem meus olhos, dilaceram a minha alma.

Terminado, o olhar mais tinha o brilho, apenas alguma dor, dessas que se perdem, que parecem jamais deixar de doer. Ainda o talho parecia doer quando se levantou lentamente e, com se a existência lhe pesando nas costas outra vez se pôs a caminhar novamente, chamando-me:

- Vamos Porfírio! O HOMEM te aguarda! –

Hesitei, mas o segui. Que mais poderia fazer a não ser seguir o seu mirrado rabo?  - PUM! - Definitivamente  não era o meu dia da sorte; agora soltava gases ainda mais explosivos.
Outra boa caminhada até darmos num local belíssimo. Adentrávamos uma área privativa onde a construção seria digna dos grandes arquitetos e engenheiros do nosso tempo. As portas, revestidas de um material que lembrava  a textura das pérolas com fechaduras de ouro, maciço. O piso poderia ser definido, Carrara, alvo, e nas paredes centenas de pintores imortais.
Lá estavam, Picasso, Van Gogh, Rembrandt. Da Vinci, Monet, Renoir, uma galeria que se destinada aos humanos decorreríamos em algumas centenas de milhões de dólares.
Nos resplandecentes corredores eu via outras obras imortais, de Aleijadinho a Michelangelo. - Deus era refinado -

Meu coração, como seria  de se esperar,  acelerou-se à medida que o grande momento  se aproximou. - Eu ia ter com o Todo Poderoso - Paulo  me introduziu numa ante-sala donde nébulas iguais ao do gelo seco eram emanadas; Eu estava  eu soube na ante sala do dono do paraíso, no quartel general de Deus -  Paulo estanca os passos e me vejo diante algo que jamais poderia imaginar; uma porta de  diamante. O apóstolo deu três batidas e aguardou até que a joia se abrisse. Meu coração escapulia pela boca. – tunc, tunc, tunc - Entramos, foi então que o vi.

E o PAI me pareceu fantasticamente medonho. Duas cabeças saiam do tronco sem que houvesse pescoço. Nelas, seis pares de horríveis olhos alaranjados saltavam daquilo que podíamos imaginar como sendo suas faces. Em apenas uma delas algo que supus um nariz tinha a aparência duma chaminé onde escorria um pegajoso líquido avermelhado. Da sua única boca nada se via a não ser a imensidão negra, um túnel negro e interminável, donde, de forma cíclica, labaredas azuladas eram expelidas. 
Minhas pernas bambeavam e Deus, inteligente, intuitivo, sabia da decepção que me causara.

- E aí? - ELE me pergunta

- Mas, mas, mas,... - Atemorizado eu tentava  expressar-me. Contudo, não conseguia.

ELE me olha tremer como se estivesse em turismo no Alasca.

- Porfírio vou te dar um tempo! - Advertiu-me. Ele não tinha pressa. Enfim, era infinita a sua tranqüilidade, misericórdia, e paciência.

Eu estava diante “do cara". O que diriam os bêbados amigos meus se lhes dissesse que estivera com Deus? Certamente me chamariam de louco.
Eu me pegava apavorado, sim, apavorado! Eu dispunha dos momentos de glória, dos meus 15 minutos de fama. Eu falava com Deus! Com Deus! Entenderam bem? – Eu queria urrar – Todavia um horror imenso evitava que eu fosse longe.
E Deus? Bem... Deus... parecia não estar para brincadeiras:

-E então?  Noto que estás desapontado....  - Ele ruminou numa tonalidade amável. As labaredas azuladas golfavam próximas a mim.

- Mas, mas, mas... - Eu tentava falar algo. Simplesmente eu não consegui ir alem dos “mas” tal era o horror da comoção.

··. E assim  o tempo urgiu e a divindade pareceu esgotar  naqueles  doze olhos, antes alaranjados, agora  arregalados, chicoteando raios ultravioletas. As chamas que desprendiam da sua bocarra totalmente dilatada, já não eram azuis e sim de um rubro escurecido que mais lembravam o fluxo menstrual. E, antes que me desse por achado me senti tremer como estivesse sacudido por um terremoto avassalador das ruas de Los Angeles. E o meu o corpo num estado de convulsão se fez refém da  fúria divina e da voz que  trovou com a força de uns milhões raios:

- Mas, mas, mas, é uma pinoia   Você imaginava que por ser eu o seu Deus, deveria ser bonitinho que nem o Wood Allen? – Hã, como? Wood Allen? Deus tinha um conceito estranhíssimo sobre a beleza. Porém não seria eu o estúpido a contestá-lo naquele momento fúria.

E ele me fazia sentir a sua ira por minha culpa, ou diriam os beatos, por minha máxima culpa. Eu tivera a minha chance e a desperdiçara.  Talvez pela coragem que não tive de tê-lo como um verdadeiro pai a quem se sorri um sorriso que se desprende aos que amamos.  Ah se eu tivesse me feito mais simpático, sensível, eloquente  agora, talvez o destino me fosse melhor. E tudo aquilo que poderia ter sido e não fora mexeu com o ego divino, ou talvez a dor  a dor da rejeição, repúdio que não existiu, e sim o medo, mas que ensejava agora os trovões e raios multicoloridos que rajavam tão próximos que previa o meu próprio fim.
Repentinamente tudo se acalmou e sua voz enérgica e autoritária soa ao ordenar ao apóstolo:

- PAULO!  TIRE  ESSE  RAPAZ  DAQUI  ANTES QUE EU CHUTE  O  SEU  RABO GORDO  PROS QUINTOS  DOS  INFERNOS!  ALIÁS,  PENSANDO BEM, E REDUNDÂNCIAS À PARTE, EU  O  QUERO  NOS  QUINTOS  DOS  INFERNOS!

Paulo estremecia ao pegar no meu braço. Da testa vertiam veios de suores e suas pernas se mantiveram trôpegos  ao sairmos de la.  Ainda assim, ouvimos a última recomendação do TODO PODEROSO;

- E  FECHEM  A  PORRA  DESSA  PORTA!

Eu desprezara a sorte e chutara meu destino. Agora, eu sabia afinal, nada de paraíso ou a glória eterna.  O que aguardava este pobre miserável seria o fogo e o reino de Satã.
A feição desesperada de mim fez o apóstolo perceber o meu desânimo:

- É meu filho! Nada mais há a se fazer.

E então lá fomos nós pela enésima vez, ele na frente, flatulando, agora desvairadamente - “Que Merda!” - Exclamei comigo mesmo.

Seguíamos aqueles intermináveis corredores quando os peixes e vinhos do almoço surtiram efeito no bom Paulo.  Os gases reviravam o seu estômago e os desesperados filamentos despencavam da testa descendo por suas faces, gotejando na alvura do piso. Agora, os sons dos flatos, pavorosos, transfiguravam as feições do seu rosto enquanto suas mãos massageavam o estomago na tentativa de abortar a dor. Os flatos espocavam em barulhos audíveis indicando a possibilidade de diarreia.

- Porfírio!  - Ele chamou-me com aquela expressão cravada no rosto - Vou ali e já volto. Não saia daí! – Ordenou e saiu em disparada para o toilete.

Eu jamais fugiria de lá. Afinal, pra onde iria? Assim que o velho sumiu de minhas vistas pressenti alguém se aproximando por trás. Virei rapidamente e dei de cara com o patife;  Judas Iscariotes!

- Oi! Tudo bem com você?- Ele pergunta dissimulado. Não respondo.

- Estás a fins de se mandar daqui? Eu posso te ensinar o caminho!

- É?  - Perguntei-lhe com desprezo.

Eu não fora com a cara daquele indivíduo, já que a bronca viera desde os tempos de garoto e das aulas de religião. E vê-lo no paraíso me foi surpreendente; Incompreensível, tanto o Pai como o Filho deixarem um traidor daqueles entre eles.

Iscariotes interrompe meus pensamentos e retoma a proposta:

- Pra você eu faço um precinho camarada. Uma pechincha! 30 moedas de prata!

“Que merda!” – Exclamei. Se havia coisa que  não suportava eram os cambistas e traidores. Por tudo que eu havia lido e aprendido, odiava aquele sujeito que sacaneou o filho do Pai.  Ah! Como gostaria de ver aquele miserável arder nos infernos! Aliás, não só eu, mas os católicos de todo o mundo.

- Judas, seu filho duma puta! Se eu tivesse 30 moedas de prata eu não teria bebido naquele boteco fuleiro, e muito menos faria turismo nessa porra de paraíso! Se manda, cara, cai fora!

Naquele exato instante Paulo apontava ao longe voltando da sua defecação.  Judas percebendo que as coisas ficariam ruins para o seu lado, evadiu-se sorrateiramente do local antes de ser pego num flagrante de suborno.  E o miserável se foi, provocante, assobiando “New York, New York”.
Retomada a caminhada andamos algumas horas até chegarmos ao início do meu novo destino; o hall dos elevadores.
 Lá, imensas portas da cor do sangue se sobressaiam num contraste de pavores.  Placas instaladas naquelas paredes alvas não deixavam qualquer margem de dúvida. Nelas poderíamos identificar seus destinos. A da direita, HEAVEN, recebia as almas para a entrevista com Deus. À esquerda, HELL, era para os desgraçados, sentenciados iguais a mim. Paulo me pareceu triste ao pressionar aquela placa. Após o toque ouvimos sons de ferragens em movimento ao mesmo tempo em que estacionava no andar o elevador HEAVEN. Dentro dele pessoas nos olhavam assustadas, talvez sem saberem que haviam morrido. Todos teriam a mesma possibilidade que tive; A entrevista com Deus - “Coitados” - Suspirei.

Era  chegado o instante de despedir-me do bom velhinho de olhos azuis e flatos fétidos.
Ele parecera gostar de mim, e tive a certeza ao sentir o seu abraço  fraterno e carinhoso.

-Garoto de sorte! - Ele disse e me piscou o olho.

Naquele momento tudo me pareceu tão triste.  Era uma sensação de estar perdendo algo que nunca tive. Meus olhos marejaram ao fitar a sua aparência cansada e o corpo mirrado, diminuto. Seus olhos azuis estavam tristes quando me pediu:

- Porfírio! Faça um favor pra esse velho. Diga a toda rapaziada que sempre me amarrei nos lances de suas vidas. Exageraram, é verdade, mas jamais se dobraram ou se comportaram como rebanho de ovelhas dóceis e submissas –

-Sim, eu digo sim, seo Paulo. – Respondi tristemente. Mas ele queria falar mais uma vez antes que eu sumisse pelo elevador que vinha pelo caminho.

-Sabe, Porfírio, são sujeitos iguais a eles que resistem bravamente à estagnação e aos estagnadores. Ah! E diga pra quelas donas gostosas que eu sinto uma tristeza dos infernos em não poder estar em lá embaixo pagando-lhes uns drinks!- Finalizou com um sorriso resignado e triste.

Eu me sentia estranho, sensível. Aquele velho sabia como me tocar.

-Deixa comigo, seo Paulo! -  Garanti com os olhos marejados.

O HELL chegou e a porta abriu. Ao entrar, duas garotas  pareciam me aguardar enquanto o velhinho ajeitava os ralos cabelos e piscava para elas. Elas se entreolharam e apenas gargalharam. E antes que a porta se fechasse selando a minha sina eu o vi dar meia-volta e bater em retirada nos seus passinhos chineses. A porta se fechando pareceu-me o ar faltar pela temperatura que subiu abrasivamente; Meu corpo começava sentir os efeitos daquilo.  Dentro, envoltas em nuvens de fumaças avermelhadas as duas criaturas assumiram aquilo que de fato eram; mulheres-diabas. Libidinosas, donas de  corpos  fenomenais e diabolicamente lindas eu lhes via sair do traseiro horrendas caudas que se afunilaram ao chegarem próximas do chão. Um forte odor de enxofre tomava conta de tudo fazendo-me refém das náuseas, sufocando-me

No teto, luzes negras se acenderam e sob os efeitos estroboscópicos pequenas labaredas que se desprenderam das paredes chamuscando os pelos do meu corpo. Com o odor de pelos queimados eu sentia a força de Satã. As garotas gargalharam insanas aos sons de guitarras vindos do teto e num volume ao ensurdecedor e amplificado que causavam em mim a mesma sensação de estar com ouvidos próximos de uma turbina dum Boeing 747. “Satisfaction” dos Stones  dilacerava-me os tímpanos enquanto os efeitos psicodélicos das luzes transportavam-me de volta para os  pirados e loucos anos 70. As sensuais diabas persistiam roçando em mim, esgueirando como se fossem serpentes da luxúria, emaranhando em minhas carnes, mordiscando meus lábios,  bafejando hálitos abrasivos enquanto os seus rabos estalavam a milímetros do meu corpo. Bastaria a agressão de único deles para que nem inferno houvesse. para mim

E a sandice terminou juntamente ao fim da música e diante a abertura da porta que nos despejou num imensurável túnel.  Saindo,  elas riscavam minhas costas com suas unhas pontiagudas causando-me imensa dor. E seguíamos em frente e elas me empurravam e eu me equilibrava para não ser atingido pelas labaredas desprendidas das paredes.
Não muito longe eu ouvia  gritos e urros pavorosos. Eu adentrara no reino de Satã, sem direito à passagem de volta.  Agora, tomando a minha frente elas se locomoviam rapidamente e eu fazia o possível para acompanhá-las, pois tive medo de perdê-las e ficar-me ali, sozinho tostando qual carne de segunda. Eu percebia  agora que era fração, que era parte da orgia e que eles  beberiam da minha alma e abrasariam o meu corpo.

Novos acordes de guitarras soaram na imensidão rubra e “Won¨t Get Fooled Again” do The Who, fez todos aqueles diabos gargalharem, urrarem, pularem. E eles ensandecidos, copulavam, transavam sem qualquer distinção de sexo, raça e cor. Tinham relações sexuais e gemiam enquanto  labaredas jactavam em seus corpos  à medida que explodiam em orgasmos. Eu me sentia em completo desarrumo e sem fé; Ah, se pelo menos eu soubesse uma oração!
Não mais  me sentia dono das minhas vontades e nem de  mim. Minha alma  fora negociada por bagatela. Repentinamente me tornei iguais a eles e pulei,  urrei até atracar-me com uma daquelas diabas e a penetrar algo incandescente ao som de  “Starway to Heaven” do Led Zeppelein. Eu a estocava forte e os seus olhos faiscavam e da sua boca chamas eram golfadas as chamas e elas tocavam-me o rosto. Eu precisava alcançar o orgasmo para me tornar um deles, um diabo, e acabar com todo aquele meu sofrimento. E eu empurrava o meu membro para dentro do dela e ofegava exaurido ao passo que do meu rosto desprendiam veios de suores que se evaporavam antes de chegarem ao queixo.

Subitamente escureceu e do estrondo surgiram chamas tão descomunais num mesmo tempo em que procurava compreender toda a loucura.
Mais acordes de guitarra e  Blackmore, do  Purple dedilhava os acordes  de “Smoke on the Water”. Os poderosos riffs fizeram a turba de pobres diabos pularem como bestas, injetando ânimo na diaba que proferia palavrões e puxava-me para dentro dela de forma cruel e impiedosa. A sensação era de estar me tornando brasa, porém eu estava a caminho; Era necessário que eu explodisse dentro dela. E o meu corpo ia num vai-e-vem, frenético, lascivo,  e eu estava quase chegando la, mais alguns segundos e eu estava quase chegando...

Trimmmmmm, Trimmmmmmmm, Trimmmmmmmm.

Era o telefone de casa.

- Alô! É o Porfírio?

- Sim, ele mesmo – Respondi de mau humor, sonolento,  virando-me na cama, da direita para a esquerda  para silenciar a histeria do aparelho.

- Porfírio, aqui é o seu senhorio. Estou te ligando para um último aviso; se não pagar o aluguel até segunda considere-se no olho da rua. Ouviu bem? No olho da rua! - Repentinamente o silêncio e o click do telefone sendo desligado sem que eu esboçasse qualquer reação.

Mas que merda! Olhei para mim e meu corpo estava banhado em suor - Aquele miserável tinha que me acordar numa hora daquela? Esbravejei voltando o telefone para a base e me cobrir na tentativa de ferrar no sono novamente. Não consegui.
Com preguiça e deixando os minutos passarem relembrei o excitante pesadelo. Ainda deitado cruzei os dedos por detrás da nuca e me mantive concentrados numa teia de aranha no teto e próxima ao globo de luz. E lá no alto eu percebia sua persistência em tecer os fios que lhes serviam de armadilha e abrigo. Talvez ela estivera trabalhando por algum tempo enquanto eu mantive mergulhado na infâmia daquele pesadelo. Em seguida desviei o olhar e verifiquei o despertador; 7: 30 da manhã duma prometida segunda feira de sol.
Mais uma vez ruminei alguns desaforos para aquele unda de fome que me acordou meia hora antes do necessário. Virei de um lado para o outro e como o sono não vinha encaminhei-me à cozinha  para o preparo dum café. La fora uma nova etapa me esperava. Olhei pela janela acima da pia e os primeiros raios despontavam tímidos. Com um copo de café eu retornava para o quarto quando estaciono  na sala  e insiro no system um CD   do Pink Floyd.  Colocado, a primeira faixa é  "Darkside of the Moon" Após os primeiros acordes volto para o quarto e vou à  janela olhar o sol, as nuvens e o belíssimo azul do firmamento; Iguais aos olhos de Paulo, pensei. Inesperadamente me pego sorrindo; Quem em sã consciência poderia afirmar  que eu não toparia por aí com aquelas diabas vadias? De certo só a morte. A morte e o fato que continuo vivo e que a vida jamais me  daria algo de mãos beijadas. Eu estava farto de saber disso.

Agora me pego circunspecto e o sorriso me abandona – “Cara! Pare de pensar merda! Filosofias baratas jamais foram o seu forte” - Repreendo a mim mesmo. Volto à sala, troco de Cd e coloco um do King Crimson. O som daquela banda estranha e pirada fez-me a viagem de volta  e retorno para as recordações do pesadelo e concentro-me na figura carismática do flatulento Paulo. Foi inevitável  o riso saboroso. Eu já sentia uma ponta de saudade do velhinho e da magia daqueles olhos tão belos quanto o firmamento.

-Ah, seu safado! Como gostaria que você não fosse ilusão proveniente do meu sono! – Exclamo para ele e comigo.

Outra vez volto para a cama e tento dormir. Talvez eu pretendesse retornar ao pesadelo; Mas, creio que jamais conseguiria.
Decorrem alguns minutos e minhas pálpebras pesam e eu sinto suas unhas, como garras, e elas, afiadas  penetram-me nas costas. Mesmo dormindo há tão pouco tenho a sensação que tudo é tão real que sou capaz de sentir a úmida boca de mulher percorrendo-me o lóbulo e sussurrando obscenidades em meus ouvidos.....
La vou eu, novamente.


Copirraiti11Jan2013
Véio China©

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Os magníficos olhos azuis de Laura



A escolinha estava toda enfeitada naquele segundo domingo de Maio. Por lá se viam bexigas coloridas, bandeirolas e tudo mais que diverte a criançada em dia de festa.

Num palco, improvisado, um grupo de meninos e meninas do “prézinho” cantavam em homenagem às mães. Dr. Alberto, comovido, não desgrudava os olhos da sua pequena Laura, que de tão linda parecia sobressair entre as demais crianças. Pela primeira vez o Dia das Mães era passado sem a Dona Carla, a mãe da pequenina. A princípio e por conta da algazarra, Laurinha não deu por sua falta, mas à medida que as comemorações avançavam e que as garotinhas faziam homenagens às suas mães acabou por se perceber a situação ao ponto de pequenas gotas de cristais se formarem em seus magníficos olhos azuis de 5 anos de idade..

-Papai! Que saudades da mamãe! Ela está mesmo morando com "Deusinho"? – Perguntou apontando para o céu.

- Está sim, querida! Está morando lá em cima, com Ele – Respondeu o Dr.. Alberto, fragilizado, tentando evitar que desaguassem os olhos marejados

-E a gente não pode visitar porque ela está muito doente, né papai? Insistiu a guria

-É filha! Ela está doente e isso não deixa a gente não visitar a mamãe.- Finalizou escondendo o rosto para que ela não lhe visse as lágrimas.

Laura era uma menina sagaz e de inteligência rara, entretanto ele sabia que por tempo definido contornaria a situação. O que ele não tinha certeza era de como conseguiria tratar do assunto num futuro não tão distante, afinal, Laura era dotada de percepção impar, e por vezes tão geniosa como a mãe.
Segunda feira, 20 hrs, ele estava lá. O Dr. Alberto cumpria ao que se determinara. Há oito meses ele frequentava tais reuniões e o fato de, nela, comentar publicamente suas dolorosas experiência com o grupo parecia aliviar suas dores, assim como assumir as dos outros.

Na hora do seu “testemunho” ele retirou um papel do bolso. Era a notificação judicial convocando-o para novos depoimentos. Com a voz embargada e um olhar fixo fixo no papel falou para o seu grupo:
 
-Sou Alberto Junqueira! Para os que não me conhecem e estão aqui pela primeira vez, sou advogado, 35 anos, e estou quase há oito meses sem beber. Respondo por homicídio culposo ao estar embriagado  e causar acidente que vitimou a minha mulher –
 
A emoção ao proferir própria culpa foi tanta que ele não conseguiu evitar que as lágrimas descessem pelo rosto, abrindo caminho até o queixo, e de lá gotejando uma a uma no peitoral da camisa social.. Muitos dali se emocionaram e também choraram não só com esse, mas com outros relatos - Era triste ver neles as expressões do desespero, das ansiedades e incertezas, mesmo que procurassem de algum tipo de esperança.
Terminado, todos solidarizam cumprimentando-se, cada um tomando o seu rumo.

O advogado, abandonando a associação dirigiu-se para o seu carro estacionado um pouco adiante.
Dr. Alberto, o profissional de sucesso, proprietário de uma das mais famosas banca de advogados do país sabia que, juridicamente poderia dar-se um jeito, amenizando em parte as acusações que lhe seriam imputadas. Ele, ainda jovem e rico, herdeiro duma das mais tradicionais famílias do estado só não detinha o dom da premonição, afinal, aquela linda garota de olhos azuis haveria de crescer.

Enfim... um futuro imprevisível para ele, afinal, Laura era tão inteligente, tão impetuosa............

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Febem: Uma fábrica de assassinos?


Num prato, o arroz, o feijão e dois pedaços de lingüiça o olhavam e sem que isso lhes causasse qualquer reação.
-Aê mano! Não vai comer essa porra? -
Era o "Mão Leve" que se encontrava ao seu lado há uns 5 minutos e em não vê-lo se preocupar com o prato de comida. Escolado do jeito que era percebera o sentido da pergunta e sabia onde o companheiro queria chegar.
-Vai nessa, Mão. Pode pegar! – Era o que ele queria ouvir. Rapidamente puxou o prato de comida e se debruçou nele como se fosse um cão faminto. Ele, ainda meio desatento fixou o companheiro e reparou pela milionésima vez que todos ali eram parte de um bando de animais, inclusive ele. E o companheiro, meio gente, meio animal, indagava.
-Qualé, Mane? O que ta pegando? –
Ele, que não estava pra conversas, falou uma bobagem qualquer e se livrou dele. No pátio, onde estavam agora, ele se pegou sozinho num canto e não participou de qualquer roda. Alguma coisa o preocupava e não estar entre eles era o sinal que havia algo de muito estranho. Jose Carlos da Silva. Fora esse o seu nome de batismo, mas ali, há 8 anos ele era o Fininho. Foi o apelido que lhe deram no primeiro dia de detenção naquela instituição chamada Febem. E ele se recordou como se fosse hoje, como tudo aconteceu......

Zanzava com mais dois amigos no largo da Concórdia, por volta da 4 da tarde quando os homens chegaram.. Claro, as roupas os denunciavam meninos de rua, misturados ali entre centenas de barracas e camelôs. Foram pegos de surpresa e tentaram correr mas, um dos comerciantes, um sujeito corpulento e alto, supondo que houvessem roubado algo, se interpôs e ele ao passar em carreira sentiu a sua perna ser tocada pela perna do sujeito logo abaixo do joelho e isso o fez perder o equilíbrio e estatelar no chão. Foi uma cena que, trágica não fosse seria hilária, afinal, foi engraçado ver aquele homenzarrão debruçado em cima do corpo frágil de uma criança com 41 quilos e quase 11 anos de idade. E assim como ele os outros foram pegos entre as barracas , agarrados pelas mãos dos camelôs que acharam que estivessem ali para praticar furtos. Naquela mesma tarde foram encaminhados à instituição correcional e, evidente, o corpo mirrado de metro e meio do garoto justificou o nome de guerra pelo qual passaria a ser conhecido daquele instante em diante. “Fininho”.

-Fininho. Fininho. – ele balbuciou para si e sorriu ao se lembrar daquele inesquecível e fatídico primeiro dia. Lembrou dos outros amigos, Tião e o Zaca, que anos mais tarde participariam de uma fuga bem sucedida, mas, mortos por questões ligadas ao tráfico de drogas, se verdadeira fosse a informação dada por um recém interno, já que todos moravam naquela mesma favela. Ele ouvira o relato e acreditou no fato, afinal e, se veridico não o fosse o mais provável seria vê-los retornados à instituição já que, fatalmente, seriam pegos em alguma transgressão. Encontrava-se perdido nessas lembranças, quando.
-Aê fino! Seguinte mano. Tu, saindo daqui, pode dar um recado pra minha véia? E então o companheiro pormenorizou como ele poderia achar a sua velha e assim, pedisse para que que voltasse a visitá-lo já que há mais de ano que ela não aparecia. Ainda desatento às explicações fixava-se nos lábios abrindo e fechando sem precisar exatamente o que o amigo lhe dizia. E, talvez tenha sido aquele pedido que o fez descobrir o motivo pelo qual se encontrava daquela forma. –Liberdade- E ela, à medida que se aproximava o deixava mais ansioso. Ele a temia. Temia ao saber que lá fora e não haveria ninguém por ele. Não haveria o seu pai, assassinado na favela de Heliópolis, morto pela guerra do tráfico de drogas. Não haveria a mãe que desaparecera logo após o assassinato e que provavelmente teria voltado ao nordeste, terra natal dos seus avós.
E ela se foi sem se preocupar com ele e , ele a culpava e achava incompreensível aquela decisão. Será que sofrera? perguntava-se. Talvez tenha sentido o medo dos três passarem fome ou não haver qualquer asaída- tentava se conformar. Mas, sempre que tentava justificar a decisão da mãe não chegava a qualquer conclusão e eram tantas as dívidas mas que nunca lhes deram as respostas que gostaria de ter.
Então se lembrou dos tempos que chegava da rua, próximo das 7 da noite e, que ao chegar, trazia sempre um pouco de dinheiro pra casa e aqueles 15 cruzeiros ajudavam na compra de comida já que o pai estava sempre ausente e às vezes desaparecido por semanas e que demostrava que ele não estava "nem aí".
Sim! ele trabalhava e não era um vagabundo como o pai, não. Ele trabalhava nas esquinas. Todos os dias as 7 da manhã lá estava ele com um balde, água, sabão e um pequeno rodinho na tentativa de limpar os vidros de automóveis que paravam no semáforo.E era comum perceber o terror dos motoristas ao vê-lo se aproximando e isso o deixava confuso, afinal ele não entendia como uma criança tão frágil quanto ela poderia amedrontar caras tão grandes como aqueles. E aí sim, quando notavam que ele estava com os apetrechos em mão se tornavam tranqüilos e até lhes davam algumas moedas ou notas de pequeno valor como pagamento. E às vezes, mesmo não sendo feito o “serviço” pintava alguma grana, já que a água encardida e engordurada usada pelos "flanelinhas" mais sujava do que limpava aqueles vidros. Mas nem sempre a sorte lhe sorria e tinham aqueles que saiam no lucro e que, mesmo com o vidro lavado não lhes pagavam já que davam a sorte do farol abrir antes mesmo que ele tivesse tempo de cobrar. Ele riu ao se lembrar e era como se visse de rodinho na mão e a sua imagem refletida nos vidros dianteiros daqueles automóveis. De repente tornou-se sombrio e recordou no mais infeliz dos dias. Como sempre, chegou com os habituais cruzeiros e não havia mais ninguém no barraco. Ali, no único cômodo e não havia nem sinal da mãe e nem de Ticiane, sua irmãzinha de 4 anos. E dessa forma foi que ele se tornara mais um órfão jogado neste mundo hostil. O barraco foi retomado pelo “proprietário” e pra ele só restaram às esquinas, as pontes, viadutos ou qualquer outro lugar que conseguisse encontrar para descansar o corpo. E, naqueles tempos difíceis, uma de sua preocupações era fugir da polícia, o que invariavelmente conseguia por ser lépido e conhecdor de todos aqueles atalhos, vielas, muros e telhados e, assim, enganava os sacanas. Mas como nunca existiu crime perfeito, houve o dia que sua carreira de fujão terminou e foi lá entre os camelos do Largo da Concórdia.
E agora, após todos esses anos olhava à sua volta e percebia que só lhe restara à convivência com aqueles garotos maus. Havia os bons? Claro! e sempre os haverá, mas que são contaminados tal qual tomates sadios colocados em contato com um que esteja podre. E mesmo quem não fossem potenciais “marginalzinhos” ao entrarem ali, fatalmente os seriam ao sair e, era essa herança, maldita, já estava entranhada em si. E também já não era mais aquele garotinho que assistia a mãe levar surras do pai quando este estava bêbado ou chapado de drogas. E ela chorava e os soluços abafados lhes doiam e, o pai, ainda mais furioso com o choro dava-lhe outros tapas com a mão espalmada e assim só lhe via o espasmo do corpo como se estivesse sofrendo algum tipo de convulsão . E então tudo acabava e nada mais se ouvia que não fosse o ronco do pai, acompanhado por um filete de baba que lhe escorria do canto da boca e ia morrer na fronha do travesseiro. Relembrava a cena dolorosa quando foi tocado no braço pela mão do companheiro
-Entendeu mano? Então fala pra ela que quero que ela me venha visitar. Porra! Ela é a minha mãe, né? – Ele, voltando do transe assentiu com a cabeça dando a impressão que entendera tudo. Feito, o companheiro lhe virou as costas e foi zoar com uma roda que se encontrava próxima. Novamente sozinho, levantou e caminhou em direção do “campinho” onde alguns internos tiravam um racha. Sempre gostara de jogar e mesmo ali, na Febem, com o passar dos anos se fez jogador pra lá de razoável, daqueles que sempre eram escolhidos pra jogar no time dos mais fortes. E assistia ao racha e como se fosse um vídeotape outra cena lhe voltou a mente. Fora uma "treta" há mais de dois anos com um malandro alcunhado por Pinga. Era o decisivo jogo final do campeonato dos internos e ele estava na posse da bola quando sentiu por trás a entrada criminosa que o deixou se contorcendo em dor e a batata da perna rasgada pelas marcas das travas de chuteira. Saiu do jogo por 10 minutos e ao retornar, assim que o Pinga passou ele revidou de forma mais violenta a agressão sofrida daquele sujeito com fama de mau. E o Pinga, mais encorpado, partiu pra cima dele e ele teve tempo de se desviar do soco e então ele viu exposta a guarda do Pinga e enfiou uma poderosa direita no fígado. O sujeito, sentii o golpe e se curvou deixando o rosto exposto e foi aquilo que ele precisou para massacrar o rosto do sujeito que necessitou de algumas semanas de recuperação até lhe ver a feição lhe voltar ao normal. Ficou a rixa? Claro! e eles se pegaram à tapa mais umas duas ou três vezes até que numa delas o garoto corpulento levou vantagem e foi necessário levá-lo à enfermaria para receber pontos no supercílio.
Ah, Pinga! De malandro e valentão tinha muito mas pagou o seu preço ao acabar esfaqueado e morto por um fedelho mirrado que com uma faca improvisada enfiou-lhe na na barriga e no peito 7 ou 8 estocadas. Nós ouvíamos-lhe os gritos de dor e ao cair, aí sim foi mortalmente esfaqueado por mais 2 ou 3 vezes próximas do coração. E aquilo foi tão surpreendente e rápido que foi necessário uns 4 ou 5 funcionários voassem pra cima do moleque e lhes tirasse o objeto perfurador antes que ele continuasse esfaqueando o sujeito. E foi inacreditável ver aqueles 4 ou 5 marmanjos tentando dominar o guri que lhes deu um belo suador.
E assim eram as coisas na Febem. Era a lei do cão onde cada qual tinha que se manter sempre atento para não ser destroçado por aqueles garotos fodidos e maus. E ele aprendera desde cedo o esquema e ficou sempre na sua e criou moral entre eles e não marcava bobeira com ninguém e que ninguém marcasse com ele também. Ah, sim! as drogas. Elas eram drogas “infiltradas” lá dentro mas, geralmente paravam nas mãos dos grandes, dos caras cruelmente maus. E muitos desses vendiam imunidade pra algum “bunda mole” e esse se via na obrigação de fazer “aparecer” a droga. Geralmente os escolhidos eram os garotos cujas famílias aparentavam um melhor poder aquisitivo.E então nas visitas as deogas vinham dentro de cuecas, sutiãs, calcinhas e elas eram convencidas a trazê-las para não verem o “seu menino" amanhecido com a boca cheia de formigas. Ele mesmo já usara desse artifício algumas vezes e obtivera sucesso e, sabia como funcionava o esquema da “facilitação” afinal, tudo por lá tinha o seu preço e assim se pagava o preço e não se tocava mais no assunto. Nesse interim saiu um gol de um dos times e os gritos foram tantos que o fizeram retornar ao presente, mais uma vez. Nisso, se fez à hora de se recolher para o seu respectivos pavilhão e, andando calmamente ele pensava como seria lá fora
Deveria procurar a mãe? Ele nem sabia por onde começar e, mesmo que a encontrasse, do que serviria? Cobraria algo? Por que?
Se questionou e chegou à conclusão que deveria dar por terminada essa história e, se a vida estava sendo assim, era porque assim ela deveria ser.
Mas como viver lá fora? Haveria alguma chance ? Ele bem sabia que suas chances eram nenhuma. Ele sabia que não haviam culpados e se houvesse provavelmente seria ele, afinal, fora ele que ai marcar bobeira entrou naquela escola de bandidagem. Fora ele o garotinho que sem a menor noção do seu destino se encontrou mergulhado em sonhos de menino por todos aqueles anos. Um menino que sem noção de coisa alguma e que achava que num dia seria um famoso jogador de futebol e, ganharia dinheiro, encontraria a mãe e compraria uma casa enorme e teria um carro conversível. Isso nunca existiu. Foram somente sonhos de uma criança perdida ali nos meio daqueles pavilhões, em becos fétidos, presenciando curras indecentes, choros de meninos espancados, rasgados, sodomizados com se fossem putas juvenis. Foram somente sonhos, sonhos de todos aqueles desgraçados que gostariam de ter uma casa, uma família, de freqüentar uma escola e até chupar a porra de um picolé. Foram tantos os sonhos que a todos pertenceram mas que um dia mais cedo ou mais tarde descobriram que aquilo fora uma grande mentira, tremenda tapeação.
Era isso! Estava decidido e não havia um outro caminho. Sairia e lá fora reveria os amigos que se foram e lhes deram dicas onde encontrá-los. Sim, estava decido e era o melhor a ser feito e o fato de se tornar mau, de ser bandido não era uma mera questão de opção e sim daquilo que se impunha aos desgraçados desta vida, como se fosse um tipo de desafio que lhe fosse impingido, ou dá ou desce ou fode ou sai de cima. E ele sabia que ao optar pelos amigos seria guindado ao caminho das drogas, do tráfico, de fuga de policiais e de facções. Sim! ele sabia que haveria a vida e a morte e que a distância entre ambas fosse tão proxima que a terra engoliria o seu corpo se um tiro lhe acertasse a cabeça. E ele sabia de tudo isso e só podia torcer para que os estragos fossem os menores possíveis.
- Vamos, entrando, entrando! ordenava o monitor.
E ele caminhou em fila e estava próximo de entrar no pavilhão e o seu instinto de sobrevivência parecia lhe ordenar: é isso! você não tem saída. Vá e procure não morrer.
-Vamos, Fininho, entrando, entrando! Ta pensando que essa porra é o rabo da Carla Peres? ironizava o enérgico monitor.
Ele o olhou e nada respondeu, apenas sorriu e continiou caminhando.
À Liberdade o aguardava.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Um sócio pra Deus.


Há muito tempo se encontrava distante. Quanto tempo? Nem ele mesmo o sabia.
E a vida sempre o levara a lugares inusitados que invariavelmente o deixavam no nada e no mesmo lugar. E a vida não se apresentava diferente agora. Mais uma vez encontrava-se sozinho já que nem Deus sabia de si segundo sua percepção, "Ele" de fato nunca o acompanhara. Freqüentemente pegava-se perguntando o por que Deus desistira dele. Por ser um perdedor? Talvez  fosse.  Tanto ele quanto Deus sabiam que ele não passava de um fracassado. Obvio que a conclusão é oposta ao pensamento cristão, onde dizem que Deus sempre se posta ao lado dos menos favorecidos. Porém  ele não acreditava, apesar de ser este o discurso da Igreja. Acreditava sim unicamente nas coisas concretas que partissem de fatos reais, e neles tentava tirar as suas conclusões. E além dos mais, sempre fora assim, onde às ilusões e filosofices baratas submetiam-se aos fatos. Fora assim com as suas mulheres, com seus empregos e até com a pequena filha que nem ele e talvez nem Deus soubessem onde estava. Pensando na pequena, lembrou-se da última carta enviada por sua ex-mulher onde afirmava que estavam bem e que o ideal seria permanecer dessa forma. Dizia também que seria o melhor para menina. Como afirmar o melhor para a sua princesinha? Como poderia haver tanta certeza nisso? Bem, não era relevante já que havia se acostumado a ficar longe e, a última vez que estivera com elas fazia mais de dois anos. Da derradeira vez e, disso ele se recorda bem, havia sido o dia em que a procurara e pedira que reconsiderasse situação da qual não concordou. E era disso que ele se lembrava e, a impossibilidade de qualquer entendimento o fizera aceitar a decisão. E o emprego então? Aliás, a falta dele. Há muito que não conseguia algum trabalho digno que o eximisse de passar necessidades. E, também tinha a questão do dinheiro já que era aquele o último mês do recebimento do seguro desemprego. Poxa! Cinco meses desempregado? Tudo isso? E era esse o seu tormento e se não conseguisse algo urgente não saberia que rumo dar a sua vida. E era assim que se encontrava, sentado num dos bancos daquele parque acompanhado de todos esses sentimentos confusos, sabendo que as pessoas quando más, tem o poder de foder com a vida de um homem. Isso não queria dizer que a sua ex fosse uma pessoa má, isso não! De certa forma ao abandoná-lo ela o destroçara. Existia um coração, só não havia o sangue para bombeá-lo. Bateu a mão no bolso da jaqueta e retirou um cigarro do maço. Acendeu, tragou, e de onde estava avistou a cruz da Igreja de São Clemente, próxima dali. Como se fosse um videoclipe, olhou para a cruz e se viu em imagens truncadas que o remeteram a infância cristã. Como estivesse vendo à sua frente o padre Josias em seus sermões dominicais. Quanta tapeação! Quantas mentiras naqueles ensinamentos sobre os dogmas, carestias, crenças, irmandades e principalmente do tanto que haveria de se ter fé. Fé? Oras! Esta nunca o alcançara e nem ao menos lhe dizia a que vinha ou o que seria. Acabou o seu cigarro, jogou a bituca e ao se levantar sentiu as pernas levemente dormentes. Ritimadamente bateu-as no chão e caminhou pelas alamedas do parque. O cheiro do mato e a beleza das flores lhes trouxeram um certo conforto. Vencidas as pequenas alamedas, seguiu em frente na direção da cruz. Atravessou a quadra que separava o parque da Igreja e se viu diante do templo. Alguma coisa o fez entrar. Entrou e tudo estava calmo, silencioso. Percorrendo os corredores, inspecionou as imagens e elas lhes trouxeram uma certa angústia. E ele a sentia mas não destinguia o motivo e isso lhe pareceu a mesma coisa que não ter fé. Sentado num dos bancos percebeu alguns fiéis em fila da água benta. Instintivamente, sentiu sede e a sua boca reclamou por água. O líquido contido na pia não lhe parecia tão puro e talvez o estivesse contaminado por todos os pecados do mundo. Isso, de certa forma o preocupou. Mesmo assim não sentiu aplacado na sede e ela, zombeteira, o incitava; -Estás com sede, muita sede-. Observou o templo e ao não se ver percebido dirigiu-se a pia onde bebeu até saciar-se. Algo de espantoso acontecera e o seu corpo levitou em pleno ar. E foi assim que os fiéis o encontraram. Alguns pares de joelhos dobraram diante de si e, ele se tornou o alvo de adoração. Orações e aleluias sucederam e fiéis vindos não se sabe daonde aglomeraram-se e, todos dedicaram-lhe orações. As preces, aos poucos, foram perdendo espaço para as reivindicações. Os pedidos não tardaram. Ficou impressionado e confuso com enxurradas de “Me dê isso, me dê aquilo, me dê saúde, me dê dinheiro” E as súplicas se tornaram tantas que ele nem mais se dava ao trabalho de memorizá-las. Aquilo o irritava profundamente à medida que as súplicas tornavam-se ensurdecedoras e insanas. O sangue lhe subiu à cabeça e foi impossível controlar-se:
-Calem-se! gritou.
E o silêncio veio, sepulcro e inexorável.
Ali, flutuado no nada, meditou. Sim! De certa forma a fé tinha lhe tocado.
Mas,ela seria tudo? Meditou novamente. Terminado e com os olhos direcionados à cúpula, se justificou:
-Táquepariu! To fora! O que o SENHOR está querendo é um sócio!

Acordou apavorado. Olhou o relógio e passava da meia noite. Ainda assustado pensou em tudo, e a sensação obtida tinha sido tão real que, por momentos, imaginou que houvesse acontecido. Ali, deitado na cama, olhando o teto, imaginou-se naquela loucura toda. Mas, o bom senso lhe dizia que era tudo tão absurdo e, a hipótese de ter estado naquela igreja, ainda mais pairado em pleno ar soava à insanidade. Riu de si, levantou-se, e foi à cozinha e do fogão retirou uma panela e sorriu ao ver os desbotados coxas de frangos adormecidas acima do arroz. O contraste das cores entre o branco do arroz e o bege das coxas lhe pareceu estranho. Revirou a comida e ela não lhe apeteceu, o que indicava que estava sem fome. Abriu a geladeira e retirou a meia garrafa de vodca. Despejou a bebida num copo e voltou para o quarto. Pensou no aluguel e que não haveria dinheiro para saldá-lo. Uma única opção entre comer ou pagar o senhorio. Evidente, ele preferia alimentar-se. Sorveu a bebida em tragos generosos, imaginando a forma de se ver livre dos problemas. Caminhou em direção da janela e deu o último gole debruçado no parapeito. Novamente pensava no aluguel. Inclinou ainda mais o corpo e o tórax avançou janela afora e então deixou o copo escorrer por entre os dedos. O som do vidro se estilhaçando na calçada pareceu incomodar o silêncio da noite. Lá fora, olhado da janela, quase não se viam farois e, vez ou outra algum exibicionista acelerava o motor do seu carro. Voltou para a cama, agasalhou-se no ralo cobertor e tentou não pensar em nada. Fitava o teto e nada existia que não fosse a negritude do quarto. Talvez tenha durado 15 a 20 minutos até seus olhos se fecharem. Segundos após um ressonar se ouviu. Era um sono de ansiedade, de dúvidas que fatalmente persistiriam ao amanhecer. A fé, talvez houvesse morrido, ele, ainda não.