quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Bar Flower


Nina estava à procura de Joyce a noite toda e havia passado por muitos lugares e até que se lembrou do “Flower”.
O “Bar Flower” era uma espécie de bar-boate um tanto democrático, anarquista até e agitado por pessoas sem qualquer compromisso com a estética, cultura e sexualidade. Aliás, o descompromisso podia se notado ali na irreverência de pessoas em trajes multicoloridos que contrastavam com os garotos e garotas naqueles seus cabelos vermelhos, verdes e com os rapazes um tanto “voyeur” em ternos de tons sóbrios e mulheres em blazers executivos. O local mais lembrava a psicodélica Londres e seus bares underground do fim da década de 60 e, o único compromisso daquela gente, se é que havia algum, era o de tentar parecer feliz. E no espírito que vingava nessa multiplicidade, homens que beijavam homens, mulheres acariciavam mulheres e homens e dentro da normalidade, homens e mulheres se bolinavam em liberdade total , isentos de censura. Nina já estava lá há algum tempo e só não se aproximara antes ao perceber que Joyce, sorridente, conversava com um rapaz e parecia se divertir e estar feliz como há muito tempo ela não a via. Sem que Joyce percebesse, Nina acomodou-se numa mesa de canto e permaneceu observando suas atitudes. Continuou lá, quieta remoída de ciúmes dos olhares sensuais que o casal trocava até que o fato começou perturbá-la. Tudo se tornou ainda mais insuportável quando percebeu Nina e o rapaz se dirigindo para a pista de dança e lá, ela encostar o seu rosto na face daquele jovem atraente. Era uma noite de músicas antigas, um verdaeiro “flashback” e então rolou uma do MacCartney, “My Love”. A música, excepcionalmente romântica, além de aproximar os rostos unia também os seus corpos. Nina sentiu-se apunhalada ao ver Joyce grudada naquele sujeito, cruzando a sua nuca com suas mãos perfumadas.
Doía percebê-los na sensualidade da dança. O fato de notar as delicadas mãos deslizando num vai e vem pela nuca do rapaz causou-lhe desconforto. E esse inconformismo se traduziu em algum tipo de sofrimento. Era o sofrimento de uma dor que incomodava dessas que não se curam através de médicos ou de algum processo de curandeirismo. Era uma dor invisível, impossível de se extirpar, daquelas que fazem doer à alma. E assim, a sensação de ser sentir algo jorrado dentro de si; a dor da traição. Estavam juntas há cinco anos, portanto a conhecia o suficiente para sentir que algo estava ocorrendo, aliás, algo que a fazia sentir amargurada.
E, aqueles sentimentos tão ambíguos já que ao mesmo tempo em que destilava a sua amargura, também não se permitia ver a sua companheira com outros olhos que não fossem o da possessividade e da proteção. Era como sentir a necessidade de proteger a sua cria contra todo e qualquer perigo que a existência nos imputa e às vezes de forma surpreendente, até. Nina, nervosamente olhou no relógio; quase duas da madrugada. Pressentindo cada vez mais o perigo que aquele rapaz e representava, relutou por alguns minutos. Decidida se encaminhou para a pista de dança onde eles permaneciam. Num movimento rápido e brusco retirou o braço de Joyce do pescoço do rapaz e a puxou para si. Eles, dançavam de rostos colados e surpresos com o ato sentiram-se desconsertados.

-Cai fora, cara! – Ordenava Nina. Olhava para o rapaz com um certo ódio, enquanto ele, atônito, tentava dar-se por achado.

-Por favor, poderia nos deixar a sós? – Joyce pediu gentilmente ao rapaz. Ela sempre fora assim; feminina e conciliadora.

-Que aquele filho da puta queria com você? – Exasperou-se Nina, se certificando que o rapaz afastáva-se de ambas.

-Nada, meu amor! – Tentou contornar Joyce com os olhos fixos nos dela e se permitindo no despontar de uma lágrima que suave atravessou a maçã do rosto e foi morrer numa das extremidades dos lábios.

Joyce, com o olhar penetrado em Nina, fazia-se a pergunta que nunca calara dentro de si -Por que eu sou assim?- Era essa a questão que Joyce levantava quando se via em situação que os seus sentimentos se mostravam inseguros. E desta feita não foi diferente e a resposta veio a mesma de sempre - Não sei! - Definitivamente ela não sabia quais eram ou foram os motivos que a tornaram lésbica, mas, supunha que deveriam existir diversos fatores e sentiria a alma leva, feliz até se os motivos da sua opção fossem descobertos. Chegou pensar em fazer análise, mas, a sua timidez em falar de si e do seus problemas deixaram-na distante dessa opção. Além do mais, a sua relação com Nina vinha sofrendo um certo desgaste, talvez pelo seu ciúme doentio, ou quem sabe pelo fato dela mesmo sentir-se em desacordo com a natureza onde reza a cartilha que mulheres são destinadas aos homens e vice-versa. Ainda que a sua condição lésbica nunca fora conhecida e nem assumida diante de terceiros. Ela mesma era por demais cortejada pelos os colegas do escritório de engenharia onde trabalhava e, eles jamais imaginariam a sua opção sexual. Lembrava-se ainda eu há um ano tivera problemas com Mauro, um engenheiro da empresa que, só desistiu dela após um cem números de negativas para que tomassem apenas um chopp.
Com esses pensamentos na cabeça e isso, invariavelmente. não há levando a nada desviou-se do questionamento e se concentrou nos olhos de Nina. O beijo veio, apaixonado. Um beijo longo, visceral, saboreado naquelas bocas entre abertas e de línguas que se contorciam tal qual um par de cobras furiosas. Tocavam-se com as mãos, acariciavam os seus rostos e permaneciam dançando, juntas, fundidas como uma única peça forjadas no mais puro e indestrutível aço.
O rapaz, um tanto próximo, ainda as observava surpreso. Olhava atentamente para Joyce e para si não havia qualquer dúvida; de todas, ela era a garota mais linda do lugar. Elas continuavam naquele insano jogo de sedução e seus corpos cada vez mais se esfregavam um no outro, e as luzes de efeitos pirotécnicos transformavam aquelas duas mulheres em diabas, como se fossem iniciar a qualquer momento um ritual de acasalamento. As cenas se tornaram tão incrivelmente sedutoras que foi impossível conter a libido e o seu pau se tornou rijo, mesmo que disfarçado dentro da calça larga e de pregas italianas. O jogo erótico continuava e ele vislumbrava a olho nu, Nina massageando as nádegas de Joyce. As pessoas em volta, dançavam e pareciam não se dar conta do fato, aliás, davam, mas, não se importavam com o que acontecia, já que estavam mais preocupados com as suas vidas prazeres do que com aquelas duas malucas.
O rapaz, um tanto aborrecido por ter sido preterido olhou para Joyce pela última vez e ele bem sabia que teria feito qualquer loucura para que conseguisse foder aquela garota de corpo monumental. Sabia que deliraria em ter aquela mulher em cima de uma cama de lençóis limpos e cheirosos. Sabia de todas as posições que utilizaria para penetrar naquele corpo voluptuoso. Repentinamente saiu do transe e desviou seu olhar de Joyce e fixou-se momentaneamente em Nina. Atendo-se em seus detalhes viu nela outra bela mulher. Os cabelos eram curtos e seios exuberantes se exibiam num decote pra lá de generoso. Teve vontade de tocá-los com os lábios e essa visão o convenceu que ela também seria uma trepada fantástica, apesar de Nina não ser tão sensacional quanto à outra. Elas permaneciam na pista de dança e os seus pés praticamente não se movimentavam e apenas os leves meneios nos quadris faziam-nas perceberem que dançavam. Seus corpos continuavam colados e ao som de “Lady Jane” se bolinaram com maior agressividade. Retribuindo, Joyce acariciava as protuberantes nádegas de Nina, que sobressaiam deliciosamente num linho negro de uma justíssima saia com um corte lateral. As pernas de ambas se pressionavam e era visível aquele naco de coxa bem torneada que fugia sensualmente da abertura para encontra-se com as pernas de Joyce. Ambas demonstravam a loucura de uma paixão e seus olhos não se desgrudavam e nem perdiam qualquer movimento uma da outra. O amor se tornou soberano e, não houve a partir daí qualquer espaço para a sensação de traição. Lentamente o rapaz voltou as costas para a pista de dança e caminhou lentamente em direção do bar. Lá pediu o seu drink e sentou-se numa das confortáveis poltronas que se fixavam em frente ao balcão.
De onde estava ainda admirava a sensualidade que vertia daqueles corpos de mulheres. Sentado, olhou para a braguilha da sua calça e ainda pode observar um leve movimento do pau, que ainda latejava por dentro dela. Percebeu um vulto encostar ao seu lado. Uma garota de lábios vermelhos e de aparência pra lá de atraente acabava de sentar-se na poltrona ao lado da sua. Olhou pára ela e foi retribuído pelos magníficos olhos esverdeado da jovem. Misericordiosamente sentiu o frágil e delicioso perfume de mulher invadir a atmosfera. Era o cheiro da fêmea sensual, expelido por aquele corpo de pernas perfeitas, adornadas num vestido curto de jeans. Sorriu para ela e num olhar cúmplice foi retribuído. Ofereceu-lhe um drink e ela aceitou e dando início ao jogo da sedução, charmosamente jogou os cabelos para trás. As primeiras frases foram ditas por bocas lindas e dentes bem cuidados. Sorriram novamente já demonstrando alguma intimidade. Ele nem mais se lembrava de Joyce e ela nunca poderia imaginar tudo o que se passara naquela noite. A sorte continuava ao seu lado, aliás, ao lado de ambos, e eles bem o sabiam. O barman sorriu ao servir-lhes os drinks. Feito, seus copos se tocaram ao outro com o mesmo prazer daquelas duas mulheres. Ele sorveu o primeiro gole do seu Absinthium 1792 e seus olhos cerraram-se pressionados. Ela pareceu suportar melhor o trago do lendário Jack Daniels.
A noite prometia ser mágica e quente.
O "Bar Flower", tradicionalmente orgulhava-se de servir bem os seus clientes.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A mangueira.


Foi ali o seu refúgio
O refugio de uma infância complicada,
tão complicada que fez da mangueira,
a amiga mais amada
Foi lá, na meninice que se valeu daqueles braços,
não os do corpo, mas de ramos fortes e resistentes
Foi trepado nela que deixou parte das suas insistências,
incompreensões e desenganos.
A árvore sabia que meninos não são adultos,
 e que são sempre confusos, mas adoram brincar,
brigar e acima de tudo; vadiar como legítimos vagabundos
Então ela permitiu que a vida, pelos os seus galhos ele conhecesse
Que não temesse, pois ali ela estava para abrigá-lo
Sim! Riram juntos das tantas vezes que ela o livrou dos vergões do cinto do pai!
Ah, menino esperto! Na primeira bufada do seu Agenor,
lá ia ele na amiga se abrigar

Foi nela, numa fase que, percebendo coisas na vida aprendeu a se excitar
Pois por mais que as folhas escondessem sua irmã,
sempre foi  possível ver ela e o namorado a se bolinar
Mas também assimilou outras coisas,
e lá do alto conheceu e presenciou as mentiras, falsidades,
viu polícia trocando tiros com marginais
E com ela também vivenciou  com algumas tragédias,
 e numa delas as chamas na favela
Que ardiam altas diante um corre-corre de tanta gente
Ah! Como aquela árvore foi boa para ele,
e dele nada ou poucos fatos escondeu
E mesmo que se agitasse os galhos furiosamente
na rudeza do tempo, sim, tinha ouvidos para ele, pois confidente
participara das suas muitas aventuras
E  nada em troca lhe pediu, apenas o ouvia, quieta, meiga e cúmplice
Apenas acolhia todos os lamentos e sentimentos que dele vertiam

E ela esteve lá numa noite escura testemunhando o amargor do primeiro amor
Foi uma paixão de criança, mas tão imensa e isenta de maldade
Mas que fizeram gotas cristalinas desaguarem no rosto do seu protegido,
as primeiras dores do amor, que, definitivamente o expulsavam da inocência
E a ferida foi tão intensa que ela sentiu o baque e estremeceu
de baixo a cima, de norte a sul
Era o medo que o seu garoto não mais necessitasse dela
Todavia, antes que a mágoa se apoderasse dela,
 antes mesmo que o menino crescesse por completo
pra nunca mais voltar ali nos seus galhos, ela chorou,
Chorou por ele, pranteou uma única e derradeira vez
A verdade que aflora quando a dor é a da separação

Google.com Is God!



Talvez a melhor coisa que lhe acontecera fora se tornar ateu – Analisou, acreditando que fizera a melhor coisa para si. E, ter trocado o Todo Poderoso por aquela primeira experiência a bordo de um PC Pentium IV com mais de um giga de memória estava sendo fascinante, mesmo que adquirido com dificuldade nas intermináveis prestações mensais. E foi isso que concluiu no alto do riso irônico que lhe estampava o rosto enquanto fizia uma pesquisa no mais completo instrumento de busca da Internet.

- Pra que preciso de DEUS se tenho esse tal de "Gôgou" e "Viquipédia"? - debochou.

-E ainda foram legais comigo lá na loja ao gravarem esses dois sites nos meus "Favoritos". Tudo bem mais simples do que eu imaginava!

-E, além do mais não estamos mais na idade média onde éramos dominados pela Igreja e por seguidores fanáticos e sanguinários!

-Ah! E fora o fato da Inquisição! dessa eu nao quero nem lembrar! - suspirou, quando o resultado surgiu na tela do monitor:

(Your search did not match any documents) – Foi a resposta do Google.

Domingo, 18:30 hrs de um desanimado horário de verão e dum sol tênue e morno, mas que ainda refletia frágeis raios solares. O ar, um tanto abafado, juntamente com todos aqueles cinzeiros repletos de bitucas de um recém acabado maço de Hollywood travavam a sua garganta, mal os deixando respirar.

Inconformado, trocou sua bermuda e camiseta polo por uma calça e camisa social de mangas longas. Antes de sair passou gel nos cabelos sem não antes constatar que ainda vestia o par de tênis. Sorriu ao vê-los lá, desajeitos no contraste. Dirigiu-se à sapateira e o trocou pelos negros "bico fino" comprado numa liquidação, dois anos anteriores
Fechou a casa, deu ração ao gato e entrou no Fusca -1300-74.
Após cinco bombadas de praxe, ligou a ignição, deu partida e ele funcionou.
Teria que se apressar. O culto das 19:00 estava por começar e ele não queria se atrasar, já que nunca soubera uma única palavra em inglês.

"Aleluia, irmão!" - Ainda ouviram-no clamar quando o culto começou.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Insano


Para ele era algo incontido. Quantas vezes se pegou acariciando o corpo daquela garotinha nos dedos da sua mente? Ele tinha noção da sua insanidade, justo ele, o pai de uma menina de 11 tal qual essa dos dedos da sua mente. Uma garotinha, Jasmim era o seu nome, mas não estava mais aqui, não pelos males que lhe fizera e sim por outras dores de que fora acometida. E assim seguia em sua obsessão compulsiva até que num fim de tarde de uma sexta ao voltar do serviço,já que aquele era o seu caminho, defrontou-se com a menina que transtornava seus pensamentos. Era linda! Olhos negros, feição suave, serena, e o jeito de quem achava que tudo de bom estava para lhe acontecer. Sorriu para ela e foi retribuído.
Prometeu-lhe um chocolate e a aceitação veio fácil.
–Ali na esquina, vamos? – e ela foi, rindo, olhos resplandecentes de quem ia ganhar sua guloseima. Comprou o chocolate e ela lhe sorriu em agradecimento. Mais uma vez olhou com paixão praquela criatura em corpo de menina-moça, mas com o olhar de uma criança. - Ah! Quantas recordações a pequena criatura lhe trazia à mente. Recordações tristes e doloridas. Sorriu novamente para ela.
-Em casa eu tenho um monte desses. Você quer? – Os olhinhos brilharam novamente e juntamente com os passos os seguiram. Ao chegarem na sua casa, laconicamente a despiu das suas roupas de garotinha.Ela, assustada, chorava. Ele, ansioso procurou no guarda-roupa a veste de anjo que sua filhinha usara num ano anterior, o da sua morte. Encontrando-a fixou-se nela e entao lhe veio na mente o sorriso e a felicidade da sua menininha vestida de branco. Recordou-se também da pequena biblia que ela portava nas mãos e entao foi impossível deter as duas lágrimas que marejaram seus olhos.Era a roupinha de 1a comunhão. Sua memória avançou mais um pouco e lembrou-se da mulher de quem nunca mais soubera - talvez perdida numa esquina desse mundo de Deus -imaginou.
Voltou à realidade e ao percebê-la assustada a carregou pelo braço e se dirigiram á cozinha. E lá, de um dos armários retirou da prateleira um enorme pote e de lá surgiu uma deliciosa barra de chocolate. Insistiu para que ela pegasse e em se negando carregou-a novamente pelo braço e voltaram para o quarto. A garotinha, agora de anjo, um anjo branco já não mais chorava. Só os seus saltitantes soluços substituiam as lágrimas que de medo não a deixavam chorar.
-Fique em pé! Olhe para cima! – A voz soou dura, autoritária. Ela, como se hipnotizada nem se mexeu. Ele se despiu e enfiou-se numa túnica branca feita de sacos de farinha. Acima da penteadeira uma coroa de folhas secas e amareladas pelo tempo ornamentavam a armação de arames feita por ele, manualmente. Colocou-a e se olhou no espelho por uns bons dois minutos. Após, caminhou até a poltrona, sentou-se e, num riso angelical,e doçura na voz, proferiu:
- Vinde a mim oh pequena criança pois tu herdará o reino dos céus! Depois, nada mais falou, nada mais agiu. Repentinamente a singeleza do olhar foi sunbstituido por um olhar severo, rude. Seus olhos se fixaram num ponto perdido enquanto sua mente mergulhava em pensamentos profundos e sombrios. Novamente a feição o modificava e entao um sorriso um tanto satânico se apoderou de si e se imaginou salvando os pecados do mundo, livrando toda humanidade dos seus infelizes pecados. A garotinha, agora mais curiosa do que assustada desviou o olhar de um ponto qualquer do teto e o foi abaixando lentamente até encontrar os olhos daquele homem estranho. Fitou-o atentamente enquanto tentava compreender o motivo daquilo tudo, mas sem conseguir.
As mãos do homem agora subiam em direção aos céu e as palavras balbuciadas lhe abandonavam a boca, sem nexo, rápidas e sem que ela entendesse qualquer um dos seus significados. Ele já não fazia mais parte desse universo e acabava de assumir pra si a condição do Todo Poderoso.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Homenagem ao amigo João



As lentes escuras, grossas denunciavam-lhe a cegueira. Não se tornara cego por acidente e nem por nascença. Estava cego por mera questão de opinião. Um ser hilário, imbecilizado, traído num casamento e alcunhado de corno. Aceitou tudo. Nunca foi covarde, foi frágil. Como pai, tanto amoro e distante pelo labor, viu o único filho se afundar nas drogas pra delas nunca mais sair. Fez o que pode, procurou clínicas, internações e todo o quanto que o seu contado dinheiro pudesse pagar. Foi um caminho sem volta e sem perdão, mas onde lhe imputaram a responsabilidade- Você foi o único culpado- se defendeu aquela que nao suportou a reciprocidade da culpa.

Do funcionário de quase 28 anos (que imagino exemplar), nada restara se não uma carta de demissão, tapinhas e olhares chorosos ao definitivamente sair pela porta da recepção. Da vida, o que falar? Que ela lhe dera supiros de algumas alegrias? Sim, verdade, mas estas nunca contrastaram com os tons cinza-enegrecidos das suas devastadoras decepções.

- Sejamos mais brandos? - disse-me sorrindo.
-Falemos de coisas mais amenas. Do Brasil, então! - aí foi ele que me fez sorrir
AH, Brasil de governantes imundos, Brasil dos corruptos e de ambulâncias propineiras!
Ah! ele poderia falar tanto e tanto, mas para que? a sua cegueira já era suficiente? Não há grau para cegueira, ou se enxerga ou não se vê - argumentou e eu aceitei.

E mesmo assim, por mais que se mantivesse nesse torpor da anestesia de um parto que não se volta, queriam-no retornado e enxergando, talvez por sentirem falta a quem espezinhar. E bastaria um único desejo seu para que isso acontecesse.
-Não, isso jamais- sentenciou. Depois que desenvolvera o dom da visão consentida seus olhos não derrubaram uma única lágrima sequer. Cego, ela mantinha o domínio sobre si, seus sentimentos, suas emoçõe. Era tão bom não enxergar - me disse num sorriso pálido
Era bom não distinguir o verde, amarelo, o amor, o ódio, a tristeza, a felicidade, a lealdade, a falsidade e tantas outras coisas que os fizeram algumas sorrir e muitas sofrer - Conseguira o inusitado, o insólito e então atrelava as imagens que não via aos sentimentos que, progressivamente permitiu manterem-se ausentes -
Era bom estar cego, mesmo que por opção - me definiu em irônica conclusão-

E foi assim o nosso último encontro em maio desse ano. Foram apenas algumas cervejas e toda a falta de alegria na opacidade daquele olhar que nem longe lembrava o brilho incandescente, as labaredas flamejantes que seus olhos golfavam nos anos 70. Eramos como quase todos jovens da época; irresponsáveis. Vivíamos para a roda de amigos na esquina, bailes, garotas, bebidas, algumas viagens e rockinroll. Enfim, típicos jovens dos anos 70.

E antes de ir, aí sim para nunca mais enxergar, acredito eu que deva ter rolado uma sua última lágrima. E se ela rolou acho que, surpreso, rapidamente limpou os olhos com as costas dos dedos e sem não antes se aperceber de tudo que passava ao seu redor. Provaveolmente deva ter visto as pessoas sorrirem, mas não para si, pois em si ninguem deve ter notado o seu lacrimejar.
E então, acho que nesse momento ele se foi. Se mandou de vez desse mundo de insanos e donde os sentimentos já nao valem mais o preço de uma garrafa de cerveja. Desistiu, abaixou a guarda pra esse universo de cegos e de gente que não consegue enxergar nada e nem niguém que naõ seja a sua mesquinhes, o seu próprio bem estar.
Vai na boa amigo. Fica na paz!