domingo, 28 de dezembro de 2008

Confissões do Rei deposto.



Eu conhecia à todos e muito bem. Os longos anos de circo me ensinaram que a vida nada mais era mais que um chega e sai de cidades e um interminável sobe e desce lonas, fosse com sol, chuva ou ventania

Afrânio era como me chamavam. Eu, o rei supremo e o mais ameaçador dos 3 colegas que contracenavam comigo, ali, presos numa jaula e bem próxima do picadeiro central. Descendente de estirpe nobre eu me tornara um brutamontes descomunal, dentes pontiagudos, rugido feroz, que vibrava ao ver o pavor estampado nos rostos daqueles que viam minhas garras afiadas chisparem a milímetros de estraçalhar o meu algoz.
Ele e nós éramos a grande atração do circo: O grande domador de leões.

Com o passar do tempo eu percebi que a arte circense era a essência da minha própria vida. Ela me impregnava de tudo: da comédia dos palhaços, das aventuras dos malabaristas e até alguns enganos esporádicos que se tornavam o drama de todos, tal qual numa vez onde o ombro de uma assistente foi perfurado pelo erro grosseiro do atirador de facas.

“O show deve continuar! Sempre! – Dizia-nos invariavelmente o Sr. Galindez, um mexicano septuagenário e dono do espetáculo. E continuava ele - “Nós circenses vivemos da arte e devemos nos caber e protagonizar os papéis bem próximos da perfeição. Haja o que houver!” – finalizava com aquele olhar rabugento de contador de moedas e sabedor das coisas do mundo -

Portanto, partindo dessa premissa era mais que justo que o domador me mantivesse subserviente aos seus caprichos e aos estalos do hediondo chicote. E eu, o rei, catequizado, precavido e ainda mais - conformado - sabia quando era chegado a minha hora de atuar, e então subia numa espécie de plataforma de tecido marrom., e lá, sentado sobre meu próprio rabo eu desferia poderosos “jabs” ao ar como se querendo alcançar e destroçar o opositor que me desafiava. Porém, sabia também que tudo não passava de “Misancene “ – um jogo de cartas marcadas e cujo epílogo estávamos cansados de saber. Evidente, eu não era bobo e apenas me deixava submeter. E o vendo tão próximo, tão ao meu alcance eu poderia ter a sua vida em minhas patas. E a sua vida me apresentaria como tantas outras que abatera e que faziam eu sentir saudades do gosto de sangue e da carne tenra dos alces brejeiros.

Mas, calejado, malandro velho que me tornara resignava-me com a carne de 5ª, quase apodrecida que me ofereciam e que era obrigado a devorar para continuar vivo. Desde a minha captura aprendera no cativeiro que a lei dos homens era bem parecida com a nossa – A lei necessária à sobrevivência-

E isso me era o suficiente para fechar os olhos e concentrar-me para que minhas patas, seguindo a intuição da sua natureza não avançassem demasiadamente durante a apresentação. Eles me fizeram entender e eu captara muito bem que os ínfimos milímetros que me mantinham distantes da pele enrugada do domador faziam toda diferença. E a distância, rotineiramente calculada em menos de meio centímetro me absolvia da morte.
O que eu poderia querer mais que a vida? O que poderia querer mais do que estar ali, além dos aplausos a que tanto me acostumara? Acredito que nada. E assim terminávamos o nosso show; de um lado o sorriso mentiroso do vencedor, do outro um lamento consternado: eu poderia tanto, mas previdente, não podia nada.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Eu não matei Pablo Escobar



Eu não matei o deus da coca, aliás, nunca matei ninguém e o mais perto que cheguei disso foi quando num compreensível acesso de fúria esganei minha mulher, ou melhor: a mulher que estava comigo. Da tragédia quase cômica ficaram apenas as marcas dos polegares aprofundados na pele branca de sua garganta. Eram traços indeléveis da natureza de um homem que se perdia nas inconseqüências dos seus atos. E esses acessos de fúria me surgiam de um momento para o outro e poderiam ser incitados a qualquer instante e por algo tolo e corriqueiro como a bebida. E eu me encontrava bêbado, ébrio o suficiente para tentar e não conseguir engolir aquele sentimento que me atingia. Uma sensação horrível, insuportável, como se repentinamente eu fosse nocauteado em pé diante de uma saraivada de golpes de Mohamed Ali: eu me sentia surradamente traído.

-Seu filho da puta! Você quase me matou - Disse com os lábios trêmulos, esparramada no sofá, joelhos dobrados sobre as coxas, deixando à mostra a a calcinha cor de rosa um tanto desgastada.

Claro, Carla também estava ébria. Eu e ela acabávamos de enxugar três garrafas de um vinho licoroso e excessivamente doce que ganháramos numa rifa de natal, juntamente com um peru. Eu ruminava aquilo que acontecera algumas horas antes até que o álcool não mais permitiu me controlar.
Eu a olhei com cara de macho. Talvez naquele momento até Gisele Büdchen sentisse ameaçada por esse meu lado sombrio. E foi aí que esganei-a.
E assim lá estava ela choramingando no sofá, me xingando de todos os nomes imaginários ou nao.
Eu já estava tanto de saco cheio daquele blábláblá, e antes mesmo que continuasse o rosário de lamentações, despachei-a:

-Filho da puta é a puta que te pariu, sua vaca! Pensa que não te flagrei roçando o rabo nas calças do gerente por entre as geladeiras?

-Euuuuuuuuuu? Como pode falar uma coisa dessas de mim? Ele apenas estava me mostrando um novo modêlo!

Retrucou com um olhar beato. Não sei porque, mas naquele momento pensei em Joana D’Arc.
Nessas horas, nas horas do efeito da bebida eu me suplantava na eloquência:

- Te peguei sim! Te peguei quando eu te olhava pelo ouyto corredor. Peguei você e esse teu rabo descomunal!– Berrei, novamente avançando em sua direção.

-Eu não fiz nada! Isso é mentira seu maldito mentiroso! - Se defendeu tentando esticar o braço e apontar-me o dedo de forma acusatória.
- Não obteve sucesso - O seu braço ficara gravitando por instantes no ar, para depois tombar e voltar ficar rente ao torax - Ela também perdia para a bebida -

E revivendo aqueles momentos anteriores, aquela maldita porta de geladeira ocultando dois seres dos olhos do mundo, me dera essa sensação. A sensação de ter visto Carla se esfregando no sujeito. Porém ( e eu sempre levava isso em conta) o ciúmes poderia estar equivocado e ter obrigado a minha consciência a ver somente o que ela quisesse ver. Talvez ela não estivesse se esfregado no sujeito. Talvez o único culpado ( se é que houvesse algum) fosse o tamanho exacerbado da sua bunda, as suas protuberantes nádegas que esbarravam na gente mesmo que não quisessemos.
E assim continuei olhando pra ela, largada lá onde se encontrava. Fixáva-me nos seus suplicantes olhos amendoados, nas suas lágrimas de crocodilo que vertiam lentas como um video de conta gotas em final de uso.

Repentinamente eu ri. Ri alto e descompassado. Eu olhava praquelas coxas demasiadamente grossas e bem torneadas e me perguntava como Deus conseguira a proeza de fundir um estupendo par de pernas numa curvatura descomunal daquela. Provavelmente ele criara Carla para torná-la o martírio de pobres diabos como eu, ou dos passageiros de ônibus que circulavam por nossa vizinhança, como numa ocasião que estávamos num deles. Ao entrarmos no ônibus lotado o diabo bateu palmas e o inferno ardeu em brasas a partir da roleta e do cobrador.

-Dá licença moço! – Ela pediu a um sujeito que se encontrava a sua frente, estacando firmemente a outra perna no chão, para se necessário dar cabo ao serviço.

Aliás, o tom demasiadamente alto e autoritário era subtendido como ordem, e não uma solicitação. E, se as pessoas continuassem inertes e sem lhe dar passagem, como aquele, Carla, amparada pelos pés estancados em posição estratégica simplesmente remexia as nádegas de um lado para o outro como se fosse um espanador, abrindo assim o caminho à nossa frente, diante de olhares incrédulos e de alguns surpresos “óhs “. Foi dessa forma que nos deparamos com esse sujeito. Um sujeito que exalava uma dessas lavandas baratas e de cheiro nauseante, provavelmente comprada num desses mini shoppings de produtos pirateados.
Carla, como de hábito ao pedir o “Dá licença moço” reparou que e o sujeito agiu como não fosse com ele. Era mais que o sinal para que as revigoradas nádegas entrarem em ação. E o rapaz cheirado à perfume ordinário, desprevenido, sentiu o impacto daquele conjunto contundente. Fortemente tocado, foi arremessado para o lado, indo parar no colo de uma senhora dos seus 70 e poucos anos, que mais desprevenida e assustada que ele, berrou:

-Socorro! Estou sendo atacada por um tarado! Socorro! –

O rapaz, mais assustado que a pobre senhora tentava desesperadamente levantar do seu colo, sob o olhar furioso de Carla. Todos os passageiros que se concentravam na cena viram quando a velhinha retirou a sombrinha da bolsa e a bateu-a sucessivas vezes na cabeça do pobre rapaz:

-Sai daqui seu tarado! Sai daqui seu monstro dos infernos –

E o rapaz, constrangido e envergonhado tentava desesperadamente levantar-se e cair fora dali. Mas, o ônibus abarrotado e um motorista apressado, que costurava o transito de um lado para o outro, ora freando para depois arrancar bruscamente, não permitia o equilíbrio necessário para que o rapaz lograsse algum êxito e saísse do colo da velhota. Portanto, assim Carla o venceu seguiu adiante, amparando-se nos dorsos das pessoas, abrindo um clrão a nossa frente como se fosse um corredor polones. Sentindo-nos vitoriosos chegamos próximos da saída quando ouvimos uma voz de sotaque nordestino. Olhamos para trás: era o nosso sujeito:

-Oxe! Desculpe dona. Que coisa aperriada essa mulher mal educada. Ou eu dava passagem pra ela ou pra bunda dela. – Dizia para a velha na tentativa de se justificar.

A velha o fitava com olhos esbugalhados, mantendo a sombrinha em riste, na posição de ataque. O sujeito insistia:

- Vige, dona! Pelo meu Padim Ciço! Não dava pra passar as duas. Ou passava uma ou outra. Pras duas não tinha como! – Justificou-se mais uma vez, conseguindo equilibrar-se após o onibus parar para embarque, conseguindo assim se desvencilhar do colo da mulher.

-Monstro! Sai daqui seu tarado! – Ela grunhia sem dar a mínima atenção pras suas explicações. Mais que isso: tentando acertar novamente a cabeça do sujeito.

E após todo alvoroço eu me senti desconfortável - eu nunca gostara de baixarias públicas – Portanto fiz-me de desentendido e não falei ou respondi qualquer coisa para Carla. Eu, durante algum tempo apenas fiquei atrás da bunda que havia limpando o caminho. Ao chegarmos perto de nossa casa demos o sinal e descemos. Quando o ônibus partiu, uma cabeça grisalha saiu por uma das suas janelas e gritou:

- Ô gostosa, vem dar um tranco no titio! Vem! - Carla ainda teve tempo de apontar-lhe o dedo médio. Eu, como era de se esperar, berei-lhe um “Vá tomar no cu”. Afinal, eu tinha que provar pra ela o quanto eu era macho.

____________________________________________________________________


-Ai paizinho! Não briga comigo. Eu não tive culpa daquele gerente vir se esfregando em mim! – Disse-me ela chamando-me à realidade, acordando-me do episódio do ônibus.

-Ah é? Então o que eu vi não foi miragem.? Foi real! mMito real, diga-se!

-Ah papai, não! Não vamos brigar novamente, por favor! -

Disse num tom concilatório, conseguindo levantar ambos os braços e deixá-los planados no ar, como se me chamassem “Vem, vem papai!”. Mas não satisfeita, para deixar-me mais louco ainda puxou a saia para cima, ficando à mostra a barriga e o umbigo, acima da tal calcinha rosásea. Eu não sabia exatamente o motivo, mas aquela cor me excitava.

Olhando aquelas pernas mágicas percebí que o futuro estava em minhas mãos. Ou eu continuava brigando, ou abria mão daquele ciúmes exacerbado e ia de encontro da felicidade e do seu corpo. - Era uma decisão difícil -Pensei por alguns segundos:

-Papai tá indo mamãe! – E me enfiei no meio do seu peito, sentindo suas mãos tocarem as minhas partes, fazendo algo que estava adormecido crescer. Ficamos nos bolinando, sentindo seus dentes morderem meus lábios e sua lingua ir de encontro da minha, num duelo de cobras loucas e enfurecidas. A noite prometia. Ah, e como prometia!

E antes que fossemos curar totalmente nossa ressaca debaixo de uma chuveiro de água fria, recordei os meus tempos de ginásio e uma poesia que eu e um colega de classe criamos em homenagem da professora de literatura. Clotilde era o seu nome. Uma deusa de rosto e corpo perfeito. A professôra Clô era fascinada por poesias e personagens da literatura francesa. E mulher, mais que professôra, colocava a nós e aos nossos pênis estudantis à toda prova. E sabia como fazê-lo.


Essa lembrança me fez sorrir e com a poesia ainda em mente recitei para Carla. Queria ter a certeza que o meu francês ainda era razoável e se não havia fugido completamente de mim. Pigarreei garganta para desobistruir qualquer substância das cordas vocais. Assim que me senti apto, iniciei:

"Ils me n'intéressent les amours
de Simone de Beauvoir
Et Jean Paul Sartre

Fascine me plus ton talent
Tes jambes indécentes
Qui me gênent l'odeur
acide et perverse
de ta grotte
Flamboyante"

Ao ouvi-la por completo os seus olhos marejaram:

-Ai amor! Como você é romântico! Ameiiiii! – Disse-me efusivamente, beijando, tentando embaralhando novamente as cobras ferozes.

Eu, mesmo sufocado por sua língua tive vontade de rir, mas me segurei. Afinal, Carla não entendera uma única palavra daquele poema erótico, onde retratávamos que não nos interessávamos pela paixão entre Simone e Sartre, além de libidinosamente mencionarmos o cheiro ácido e perverso que imaginávamos emanar da vagina de Clotilde. Ao ouví-la e vê-la choramingar devo ter parecido um idiota quando lhe respondi:

-É sim meu amor! Esse eu fiz agora e só pra você!

Ela sorriu, levantou-se ainda meio cambaleante me puxando pelas mãos. Assim que me vi em pé ela se despeiu e fez o mesmo comigo.

As suas nádegas rebolavam deliciosamente à caminho do chuveiro, quando reparei que um furo de tamanho razoável adornava o lado esquerdo da calcinha cor de rosa. Era etranho analisar o contraste daquilo. Tom sobre tom: um rosa forte e por baixo um rosado claro, quase bege. Não me contive e bradei:

- C'est la vie ! –

Assim que ouviu, ela retrucou:

-Ah sim! Eu também te amo meu amor!

Eu entrei calmamente no banheiro, abri o registro até o fim e uma ducha gelada me esperava com cara de má. Ao enfiar o corpo debaixo da água fria tive vontade de gritar "Mon Dieu ! Il est très froid ici !" mas eu nada falei. Provavelmente ela entenderia do seu jeito e retrucaria no seu velho e impreciso português:

-Eu não! vá você pegar o shampoo! Está na segunda gaveta do armário, ao lado dos sabonetes de glicerina!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Arco-íris & Estrela e os sorvetes da ilusão.



A tarde caiu mormacenta após a tempestade que perdurou das 15 às 17 horas. A água, debatida em cimento quente fez brotar uma sensação de quentura, não só no corpo onde o suor dava cabo, mas no ar que meus pulmões inspiravam. Eu me encontrava naquela cidade de interior que nem o nome sabia, salvo que ainda permanecíamos dentro do estado. E eu estava lá às custas de uma passagem, comparada de forma aleatória junto a um guichê de ônibus, na rodoviária de São Paulo. E a tinha adquirido com parte do dinheiro do meu acerto de contas com a última firma que trabalhara e que me despedira.

-Senhor Dubuski, sinto, mas não necessitaremos mais dos seus serviços – Disse-me o senhor Franz, em sua sala de gerente, 30 minutos antes do expediente se encerrar.

-Ok! – respondi - Me pagarão o aviso prévio? – Perguntei com cara de imbecil

-Claro! - Disse com cara de poucos amigos - O aviso prévio, férias, 13º e tudo aquilo que o senhor tenha por direito – Despachou-me um tanto entediado e com aparente má vontade.

Evidente, mais uma vez eu me encontrava desempregado e o motivo eu sabia – minhas intermináveis sonolências – E nessa, os 10 minutos de cochilo improdutivo ferraram minha vida, afinal eu deixara passar mais de 300 peças defeituosas que rolaram na esteira e desembocaram no setor de montagem. Assim que a besteira se consumou fiquei imaginando o quanto isso deve ter deixado maluco o pessoal de lá, já que aquelas peças jamais se encaixariam naquilo que se destinavam. Além disso, o maldito cochilo também foi o responsável por me encontrar ali, naquela hora, já que perdera o reembarque do ônibus:

-Pessoal, 40 minutos para o almoço! As 14:10 partiremos. - Comunicou-nos o motorista ao estacionar o veículo na rodoviária da tal cidade.

Portanto, sem mínima intenção de gastar meu dinheiro com fast-food, atravessei a rua da rodoviária e procurei por um boteco ordinário para emborcar os meus dois habituais “rabos-de-galo”. Tragados, abri uma compota que abrigava sardinhas à escabeche e enfiei duas, goela abaixo. Terminado, acendi um cigarro, voltei para a rodoviária e procurei por um banco distante das pessoas - odiava aglomerações - E, como era de se esperar, para alguém que quase nada comera, o álcool surtiu seus efeitos e me fez cair, novamente em sono profundo.

Ao acordar o ônibus já havia partido. Sem nada por fazer resolvi dar umas voltas pela cidade já que o próximo embarque só se daria no início da noite Foi então que a tempestade me pegou. E veio impiedosa, após uma manhã e início de tarde de sol devastador, pegando-me desprevenido, obrigando-me permanecer debaixo de um imenso toldo fixado na paredde frontal de um atacadista de queijos. Assim que a chuva cedeu, um tanto nauseado pelo a cheiro me retirei. Ao sair, avistei no fim da rua a cruz de uma igreja e me dirigi até ela, e, lá chegando vi abrir diante de mim uma esplendorosa praça com jardins floridos e bem cuidados – positivamente, aquilo só poderia ser a Praça da Matriz – Surpreso ainda, caminhei pelas curtas alamedas e fui acompanhado das mais belas e coloridas borboletas que voavam sobre mim sem demosntrarem receios, apenas gravitando no ar, como se fossem saídas do mais espetacular arco-íris que se formou detrás da igreja. Aquilo surtiu os efeitos em mim e eu me encontrava encantando com a bucólica paisagem, inspirando forte e enchendo os pulmões com o cheiro do mato, percebendo a beleza nas flores, coisa que nunca me impressionara antes, curtindo a cidade interiorana, sensível a paz que ela me trazia. E assim eu percorri cada milímetro dos belos jardins, me sentindo plenamente “zen”, até que encontrei um dos seus enormes bancos guardado sob a mais frondosa árvore do lugar. Olhei para os lados e não havia ninguém, então me sentei. Não tardou para que dois meninos viessem por uma das suas vielas, trocando passes curtos com uma pequena bola de futebol e sentaram-se no mesmo banco que eu – tagarelavam e riam bastante –
Assim que acomodaram-se um falou para o outro:



- Luis, ta vendo o arco-íris?

-Claro, né! Não sou cego, ô! – Respondeu o garoto.

- Então! Você sabia que é a minha mãe que toma conta dele? –

-Nossa! É mesmo? – Surpreendeu-se Luis com os olhos arregalados.

- É sim! Meu pai me falou que é ela que cobra os ingressos pra gente escorregar naquela faixa azul, a maior e mais bonita delas – Disse para Luis, apontando a primeira faixa de uma tonalidade celeste delicada.

Luis permaneceu pensativo, fixando as estupendas faixas coloridas. Assim que pareceu dar-se por achado saiu-se com essa:

- Lauro, você já viu aquelas estrelas que riscam o céu nas noite de lua cheia? – Evidente, Luis se referia aos cometas - Com a cabeça meneando positivamente, Luis continuou:

-É o meu pai quem dirige elas. Foi minha mãe que disse. E ela falou também que só quando a gente morre é que pode entrar nelas. E que lá tem um monte de bancos e janelinhas de vidro. Mas, pra gente poder viajar a gente também tem que pagar passagem. – Disse Luis, olhando para o firmamento, como se procurando o seu velho a bordo da direção de uma estrela.

Claro, percebi que Luis se referia ao seu o pai, falecido também.
Os dois continuavam olhar para os céus quando Luis concluiu para Lauro:

-Puxa Lauro! Então vamos ter que juntar dinheiro pra quando a gente morrer. E quando morrer, primeiro vamos nas estrelas do meu pai... depois pedimos pra ele levar a gente no arco-íris da sua mãe! – Finalizou Luis, o mais sensatamente possível.

Ao ver e ouvir todas as cenas tive vontade de gargalhar, e só não o fiz porque seria descarado demais e eu também não queria e nem seria justo terminar com uma fantasia daquelas.
Então eles se levantaram e antes de irem Lauro me interpelou:

-Moço, o senhor pode ajudar a gente com um dinheirinho? Sabe, é pra quando a gente morrer.. Sei que o senhor não sabe, mas minha mãe toma conta de um arco-íris e.......

-Claro, claro! – Cortei, abortanto a sua estória – provavelmente ele me teria contado toda a estória novamente – Tirei 10 reais do bolso e o enfiei no bolsinho do seu short de 7 ou 8 anos.

-Obrigado moço! – Responderam conjuntamente e se foram pela alameda, trocando novamente os passes com a bola de futebol.

Ao vê-los partir eu vivi a magia daquele momento. Vivi a paz, a paisagem exuberante, vivi todas aquelas borboletas me volteando como se eu fosse a santidade do lugar. E assim, levantei e segui por uma das alamedas até me deparar com a rua principal da cidade. Caminhei mais um pouco e parei no sinaleir e aguardei o sinal abrir, quando vi do outro lado da rua os fascinantes garotos. Eles pareciam alegres saindo de uma casa de tons pastéis - Na placa, na altura da marquise se lia - "Sorveteria da Jurema" - Firmando as vistas notei que eles carregam enormes sorvetes – daqueles feitos em máquinas do tipo italiana – e um deles carregava a bola debaixo do braço. Diante da cena inesperada escondi-me para que não me vissem, afinal, demasiadamente pequenos, não queria que provassem da tese “ o crime não compensa” – E evitando, eu transferia para o futuro tal responsabilidade, caso eles se decidissem a trilhar um desses cxaminhos.

Bem, eu os vi irem emnbora e sumirem dos meus olhos ao dobrarem a esquina. Mas, o que valeu nisso tudo foi a lição que me deram e que ficará marcada para sempre em minha memória. Eu fora vítima de golpe de uma dupla mirim de espertalhões - um legítimo “171" infantil” - Foi como me alertassem: “ Cara, te liga! Não vacile no ponto”
E vacilar, eu sabia, era o maior dos meus problemas. Não só o vacilar no sentido “sonolento” da coisa. Mas o "vacilar" com as situações, marcando bobeira, dando bandeira e coisa e tal.

Assim que o ônibus das 8 entrou na plataforma eu me encontrava mais que acordado. Eu tinha, a partir agora, prestar mais atenção nas coisas do mundo. Eu tinha que prestar mais atenção, acima de tudo, em MIM. Eu era a peça mais valiosa do quebra-cabeça que permiti minha vida se tornar. Eu tinha que andar mais ligado, antenado com tudo, com atos e pessoas que me cercavam.

Ao entrar no ônibus eu me disse: “Cara, não durma no ponto” .
E então o ônibus partiu e logo pegou a estrada eu pensei naqueles pequenos espertalhões e sorri. E olhei pela janela e para o alto e a noite caiu com beleza magnânima. Firmei os olhos no firmamento e tive a impressão que um cometa cruzara os céus por entre aquelas estrelas iluminadas, Insisti com os olhos, fechei-os e os abri firmemente - quem sabe eu não poderia vislumbrar o pai do Luis - Sorri novamente - O ônibus seguia solitário por uma estrada de mão simples e os faróis altos lumiavam árvores ainda distantes de nós, e conforme a distância era coberta elas chegavam rapidamente em mim, umas após outras. Foi a última vez na noite que pensei naqueles garôtos - e o sorriso me veio fácil - Eles sabiam das coisas.
Eles sabiam tudo - confessei a mim mesmo -

domingo, 30 de novembro de 2008

Selvagemente doce


- Por favor, algum cervo no acervo? – Questionou Alfredo Aurélio.

-Não! – Foi a resposta de Mario Augusto, um tanto ríspida, e mais ainda: afetada.

-Bem, e nenhum alce a ser alçado? – Alfredo insistiu novamente.

-Não! Definitivamente não! – Persistiu grosseiramente Mario Augusto, deixando cair de lado uma franja tingida de castanho escuro com reflexos louro acinzentado. – “Oras! Será que esse garoto não percebeu o ridículo de suas perguntas? Que sujeito mais cafona me arrumaram!” – pensou enquanto olhava para o rapaz com certo desconforto.

-Bom, senhor Mario Augusto, tudo me leva crer que será totalmente inócuo perguntar-lhe sobre os veados – Continuou Alfredo, batucando sistematicamente a ponta da caneta Bic na folha da prancheta, numa tentativa de mostrar-se o mais eficiente possível.

Ao ouvir a frase, os olhos esverdeados de Mario Augusto brilharam como clarões da lua. E sua resposta, ainda mais afeminada em nada lembrou a rispidez de momentos antes, ao contrário, procurou soar doce e harmonioso:

-Olha senhor Alfredo Aurélio, sobre esse assunto tenho plenas condições de instruí-lo à contento! –

Claro, afeito à sutilezas maiores, Alfredo Aurélio percebeu nitidamente a insinuação do doutor Mario Augusto, que continuou explanando, esticando e recolhendo os braços tanto curtos, olhando-o firmemente nos olhos:

- Quanto a isso meu querido te respondo sem pestanejar, mas, antes terei que saber das suas intenções – Concluiu jogando mais uma vez a franja para o lado, ajeitando na cintura a calça de um terno de tons rosado, no mais perfeito estilo “Saint Tropez”.

Dainte da cena, Alfredo Aurélio, um tanto constrangido, sorriu-lhe timidamente, no que foi retribuído no cumplice e escancarado sorriso à-toa. Olharam´se novamente e desta feita o constrangimento se foi tão rápido como viera. E assim, bem mais à vonatde Augusto Aurélio ofereceu um cafezinho ao jovem, autorizando-o sentar-se com um breve aceno indicando a cadeira. Masculinamente Alfredo Aurélio sentou-se defronte da mesa do chefe, que fez questão de manter o dedo mindinho esticado ao tocarem com cumplicidade as xícaras de café.
E o rapaz pareceu satisfeito com aquele seu primeiro dia como assistente administrativo de uma repartição executiva do Ibama.

Lá fora os bichos continuavam à solta e dizimados pela humanidade. Dentro, a pantera cor-de-rosa rugia docilmente mantida em cativeiro.
Ironicamente, caça e caçador se mantiveram frente à frente num safári de intermináveis burocracias. Em suas feições nada que indicasse o duelo mortal, necessário à preservação das suas espécies e naturezas. De um lado o caçador com suas longas botas de cano alto e um rifle sem qualquer munição a ser deflagrada. Do outro, apenas um felino, cinquentão, lascivo, palpitando ansioso e de rabo abanado.

Ao tocar os lábios nos da pantera, Alfredo Aurélio riu-se do ridículo daquela situação.
Ele provava a si mesmo que era um jovem determinado, obstinado a alcançar o sucesso fosse a que preço fosse. E no estreitamento dos corpos que se deu a seguir alguma coisa dizia-lhe que havia começado com o pé direito. Evidente, Alfredo Aurélio necessitava de dinheiro, não para o leite das crianças, afinal nem casado era, mas, vaidoso, gostava de vestir-se bem e vez ou outra curtir com a namorada um bom motel de lençõis limpos e vidros blindex. E no mais, discretos como pareciam ser, tinha a certeza de não estar prejudicando e nem ferindo ninguém, apenas gozando da mais absoluta e louca legalidade de dar asas à imaginação e ao seu instinto de auto-preservação.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O Vagabundo, A Primeira Dama e uma ficção


-Hei seu cara de cu! – Disse ele, saído de uma viela lateral, e num pulo de gato feroz postou-se bem à minha frente.

Olhei para ele e ficou claro que aquele sujeito batia das bolas menos que eu. Continuei apenas fitando, vendo-o “sassaricar” e pular como se fosse o crioulinho de uma perna só. Talvez ele esperasse de mim, mais que surpresa, uma reação de susto e como não conseguiu balançava a cabeça rapidamente, mostrava-me a língua e urrava sem parar:

-Eu trepei com a mulher do presidente! Eu fodi a mulher do presidente – Enquanto gesticulava, dando voltas ao redor de mim, sem cessar. Realmente me impressionava todo seu vigor físico, e eu jamais conseguiria me movimentar como aquele rapaz de barbas longas, cabelos emaranhados e calças encardidas. Evidente, estava ali um desvalido da vida, um sujeito mais miserável que eu

-Eu fodi a mulher do presidente! Eu fodi a mulher do presidente ! - Insistia

Fitei-o novamente e aqueles seus olhos azuis denunciavam que poderia ter havido um passado glorioso naquela carcaça de mendigo. E eu me convenci disso à custa de estatística que criei, ali e por conta própria: Em cada grupo de 100 mendigos, talvez só tenha um com o privilégio de ter os olhos daquela cor.

-Eu enfiei o pau nela e ela gemeu “Urgh! Urgh!” E eu não quis nem saber e soquei ainda mais forte e quase varei ela do outro lado. – Dizia como um ator, apontando para o pênis, andando rapidamente em círculos, mirando cada um dos rostos das pessoas que se aglomeravam.

-Eu fodi a mulher do presidente, senhoras e senhores! E pasmem e não enrubesçam....Ela é uma biscate! Uma troglodita vagabunda – Bradava, apontando o dedo indicador para cada um na platéia..

Bem, o que eu poderia lhe dizer? Está certo que a mulher do presidente me parecia um tanto vulgar com aqueles seus peitos de melões, que insistiam saltar dos seus vestidos pra lá de decotados, que mostrava, mesmo diante de câmeras da Tv. E isso me fazia pensar no tipo de relacionamento que mantinham e eu imaginava quais poderiam ser os “acertos” pactuados com a permissividade do senhor presidente e o seu ar de “ingênuo vitorioso”. E ele, uma figura sorridente, daquele que parecia não se dar conta que os seios da esposa tornaram-se tão ou mais carismáticos que a sua própria figura de estadista. Tudo bem! Ele podia ser até um frouxo, mas, daí, dizer que a Primeira Dama fosse uma prostituta de quinta e que fodesse com qualquer maluco como aquele, parecia-me um absoluto exagero. E outra coisa: talvez todo aquele visual erótico nada mais fosse que uma perfeita jogada de marketing político; uma cruzada de pernas: um voto a favor da criação de um novo tributo; Um decote generoso com mamilos praticamente à vista: um voto pró algo que alijasse o povo do seu direito. Afinal, isso não surpreendería-nos, já que estávamos cansados de saber que políticos (com raras e honradas exceções) só não vendem suas mães porque elas se encontram etiquetadas no setor de penhor da Caixa Federal.

-Eu comi a Primeira Dama! Juro que eu comi! – Berrava ele enquanto as pessoas se acotovelavam, empurrando umas as outras diante do estardalhaço que ele fazia.

E logo a população se deu conta do quanto aquilo estava se tornando ridículo e engraçado, e então a zombaria se iniciou.

-Ce fodeu quem, ô pé-de-cana? – Gritava com sotaque um senhor gorducho e de meia idade. O suor escorria em bica pelo seu rosto nordestino – E o povo gargalhou a intervenção para logo após vê-lo completar: - Ô maluco beleza! Vai ver cê trepou foi com um muro de trepadeiras!-
“Mais um? Meu Deus! Esta cidade está cheia de loucos!” – sussurrei inconformado.

Um outro, sentindo incentivado com a gozação não deixou por menos:

-Imagine cê você trepou a mulher do presidente? Tu deve ter sonhado com uma sirigaita qualquer. A mulher do presidente não é qualquer um pra ta na boca de um sujeito assim como você – E um tanto ofendido continuou – Pra fazer amor com a Primeira Dama tem que ser inteligente, saber de cor todas aquelas estrelas da bandeira e ainda por cima não errar no hino nacional!! –
“Oh pai! O exército dos imbecis jamais se rendera!” – Ruminei puto da vida -

Foi então que o mendigo parou de pular e olhando para os céus e deu de questionar:

- Por que teve que ser assim? Por que isso, senhor? –

Logo o seu semblante tornou-se sombrio e ele começou a discorrer sobre economia, planos de governo, câmbio, valorização do dólar, juros, FMI e política internacional. E aquilo me fez pensar que sujeito era ele. Que tipo de indivíduo seria aquele rapaz dos seus 40 anos, um tanto maltratado, apesar dos olhos azuis. Quem poderia ser a pessoa que discorria eloquentemente e sem interlocutores sobre assuntos tão complexos? E o povo se divertia e o cercava cada vez mais, incitando-o gritar e continuar com a fanfarronice. E ele, como se fosse um político assimilando a necessidade do seu povo, recomeçou:

-Foi sim, minhas senhoras e senhores! Eu não minto! Saibam que eu fiz amor com a mulher do presidente, e faltou pouco para rachá-la no meio! - Dizia, movimentando os braços, curvando os cotovelos sistematicamente para frente e para trás, enquanto com os quadris simulava o ato sexual.

E esse espetáculo, deprimente, o povo zombando do palhaço perdurou uns 10 minutos, até a chegada da polícia. Do carro branco e negro saíram uns bruta-montes que lhe socaram o rosto até que esse vertesse sangue pelas narinas. Logo após, violentamente jogaram-no no camburão diante das gargalhadas e apupos das pessoas que, espremidas, não queriam perder qualquer sopapo da grotesca agressão.
E então a viatura partiu a ponto de me deixar notar o pobre desgraçado socar o vidro traseiro, bater violenta e sucessivamente sua cabeçada contra vidro, até a insistência dos impactos abrirem uma fenda em sua testa, e impregnando-o com um sangue viscoso, formando manchas irregulares e assimétricas como se fosse uma obra de arte moderna.

Terminado o show a multidão se dispersou e eu fiquei ali, pensativo, questionando os motivos que o tornaram naquilo.
E tudo não me pareceu tão simples como na infância, quando brincamos de esconde-esconde e localizamos um amiguinho. E isso me fez sair dali e retomar o meu caminho.


No dia seguinte, ao ler as notícias policiais de um desses jornais da “imprensa marrom” me deparei com um artigo no canto inferior direito da primeira pagina. Ele dizia o seguinte:

“Amâncio Neto, 42, bisneto do eminente e falecido senador Amâncio Carlos Camalhães, foi detido na tarde de ontem, na Rua Martha Cassaby - centro da cidade - Ele se encontrava foragido a quase três meses da Clínica Renascer, onde se reabilitava.
Segundo sua família, a personalidade de Amâncio Neto sofreu drástica transformação comportamental após seu envolvimento amoroso com uma mulher de identidade misteriosa.
De lá pra cá, a obsessão com fracassado relacionamento desorientou o promissor economista, que encontrou no vício a resposta para seus dramas pessoais. E nesse quadro é comum tê-lo fugindo de clínicas e vagar sem rumo e mendigar até ser novamente encontrado. Segundo os médicos, o dinheiro que ele arrecada com a mendicância é amplamente destinado ao vício da bebida e do crack”

E o artigo me fez pensar que o barbudo, talvez, não tivesse mentido: Ele poderia sim ter transado com a mulher do presidente. E a Primeira Dama era uma vagina qualquer, sem privilégios, uma fenda entre pernas, adornada por libidinosos lábios vaginais.

E mais do que isso, estava mais que na hora de eu rever minhas posições quanto à humanidade e seu comportamento. Rever minhas discriminações, os relacionamentos homossexuais, entender e aceitar e que um beijo e um pênis no rabo de outro macho possa ser tão excitante como fazer amor com uma mulher. Aceitar nos jovens, os não tão jovens, suas tatuagens e piercings dependurados em seus loucos umbigos, narizes, e em algumas partes genitais. Afinal, aqueles penduricalhos não perfuraram minhas carnes e nem alteraram o meu visual e sim os daqueles que encontraram algum prazer nisso.

E esse complexo conjunto de coisas deveria ir muito mais além e não se tornar obstáculo a me eximir de repensar a história e as posições de Hitler, Guevara, Pinochet e até o 11 de Setembro. Afinal, não sei exatamente se somos todos sãos, mas contaminados por insanidades que afloram em nossas naturezas, ou apenas matéria, parcialmente dotada de algum tipo de inteligência, pró ou contra, boa ou má. Não sei se a história se faz de justiças, injustiças, como em Nagasaki e Hiroshima, onde os americanos lançaram a bomba atômica. Onde povo oriental e sua obsessão disciplinar imaginaram-se supremos e bombardearam, antes, Pearl Harbor – “Olho por olho, dente por dente” dizia meu avô. Foi desumano àquela aniquilação toda, mas para o pobre Japão, tudo era uma questão obsessiva tanto quanto a bravura dos suicidas kamikazes. Como se eles pudessem fazer toda diferença , que não fizeram, e apenas morreram.

E isso vai mais adiante e então nos adentramos no pútrido poder, nos filhos das putas que ganham bilhões sem criarem um único emprego, sem sustentarem uma única família miserável. E isso me faz divagar e então me pergunto do tempo que se trocava carneiro por pescado de bacalhau, espigas por fígados de boi e fico imaginando como poderia ter sido.

Mas a fatalidade foi destinada à nós e aos tempos de hoje, onde um peido dado por um banco dos Estados Unidos tem o poder de feder e infectar o mundo todo. E isso me faz crer que a raça humana é nada mais que escória: eu, você e o nosso vizinho não temos alternativas e nem a supremacia de escolhermos e sermos enterrados em urnas de boa qualidade.
E é geralmente assim que acabamos. Fazem-nos homenagens, coroas multiflores, rosas vermelhas, brancas e os dizeres de algumas boas orações. Olhares pesarosos nos ladeiam, mas, ansiosos, se preocupam em voltarem para casa antes do jogo das 16.
E então toda uma vida se foi e aquilo que fizemos e deixamos aqui é sacramentado pela pá de terra que se bate à exaustão e até o seu último grão. E quando tudo termina, quando todos vão, as flores solitárias choram – só, elas e nós e assim o último adeus é consentindo num tipo de : “Ok, xará! Bem ou mal, finalmente está tudo acabado”

E foi pensando em todos esses mistérios e mitos que acreditei na possibilidade do pobre mendigo ter fodido a Primeira Dama. E mais ainda, desde o começo eu percebera a aristocracia daqueles olhos azuis e de antemão algo me dizia que mesmo isanamente, não mentiam

Talvez as mentiras ditas por ele, em algum tempo de sua vida, transitaram no mundo do “desgraçadamente viável” Talvez tenha manipulado situações que envolvesse dinheiro, poder ou corrupção. Não sei.
Mas, eles não perceberam a tempo que não se manipula uma mulher.
E ela, talvez esperta, sacou o jogo assim que ele começou. E isso a fez deixar que o pobre olhos azuis a manipulasse e se sentisse acima da carne-seca. E ela, provavelmente, vestidas de todos seus sorrisos irônicos tudo soube, e dos seus lábios murmurou-se aquilo que seus ouvidos jamais ouviriam: “Vá se ferrar, trouxa! Vai!”

E assim são elas, e assim somos nós. Mais que nós, mulheres são perigosas e deveriam virem etiquetadas com rótulos “Danger”. Há mulheres que, por vezes te fazem provar de um sexo que vai te enlouquecer, te dizimar mais que o Vietnã e Iraque, juntos.
E esse poder de fogo nada tem a ver com a força bélica. E elas simplesmente aniquilam a sua sanidade. E as armas? Ah, as armas apenas dizimam a matéria.

Portanto, para mim, lá estava a prova quase cabal que aquele homem houvera copulado a Primeira Dama
E, refletindo nisso tudo me dei por satisfeito. Afinal, mesquinho, não queria estar na pele do miserável, apesar de deslumbrar-me com o poder de destruição que, certamente, emanava do corpo daquela mulher.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

O Orfão, o palhaço e os eucaliptais


-Hey tio! Veja como a lua tá bonita – Disse o fedelho.

Olhando pro garoto tornava-se curioso notar o efeito que aquelas dezenas de pigmentos causavam em seu rosto. Nele,as sardas, os olhos azuis e vivos como o mais claro dos céus sobresaiam e os cabelos vermelhos da cor de fogo, cheios no alto e raspados na altura da nuca conferiam-lhe a feição das mais insólitas e irrequietas desse mundo. Era nisso que ele pensava ali na beira do lago, admirando a lua e procurando entre as estrelas aquelas que se derramavam como pequenas lágrimas, num quadro esplendoroso, parido sem qualquer magia, algo tão descomunal e absoluto que faria o mais humilde dos ignorantes acreditar que há um maestro à reger toda aquela sinfonia de coisas perfeitas e exatas. Mas, mesmo estando ali com a lua a espelhar seus reflexos nas águas, mesmo ali com os vaga-lumes desfilando diante dos seus olhos a incessante alegria do piscar de luzes ele não conseguia se manter feliz. Estava farto de ser solitário, palhaço, cansado de trocar sua vida por ninharias, exausto de conviver com os outros dois companheiros, alcoólatras e palhaços iguais a ele que roncavam no trailer de estado deplorável, de 1963. Para ele o que restava era mais um fim de tarde sem esperanças, igual aos milhares suportados em sua vida. Para ele era nada mais que um início de noite,sem ninguém,acompanhado unicamente por seus botões e pelo jargão que ecoa em sua mente - E o “Como vai, como vai, vai, vai? Tudo bem, bem, bem ?” - Um slogan, plausível, o único elo de sua comunicação com o mundo - que agora lhe doía a cabeça, resvalava nas paredes do cérebro, exaurindo sua mente – justo dele – que naquele dia fora merecedo dos aplausos e estrondosas gargalhadas da meninada.

E assim disperso pensava nessas e em tantas outras coisas quando foi acordado dos pensamentos e chamado à realidade por uma pedra atirada pelo garoto. E a pedra saiu em disparada, saltitando na água, ricocheteando na superfície, parecendo um atleta olímpico vencendo seus obstáculos. E a pedra, após uns 4 ou 5 ricochetes afundou e isso o fêz achar graça na destreza do guri. Girando a cabeça, voltou na direção do guri e olhando por cima do topete do menino observava ao fundo a imenso e antigo prédio, construído às custas da Igreja e que abrigava uma centena de meninos órfãos, taais qual aquele que se postara ao seu lado. – “Graças à Deus, meus pais, ao menos eu os tive” – Murmurou para si. Afinal, as coisas poderiam ter sido bem piores – Concluiu conformado e ao ser novamente interpelado pelo garoto:

-Tio, você sabia que meu pai e minha mãe moram naquela estrela? – Disse apontando o dedo indicador na direção da mais reluzente das estrelas.

-Não, não sabia. – Respondeu reflexivo.

E a beleza cruel da frase proferida pelo garoto ainda ainda reverbava em seus: como podia a morte ser tratada com tanta simplicidade? - ele se questionou - enquanto o garoto continuava com o olhar fixo no firmamento. Mas, ainda não lhe tinha dito tudo:

-É sim, tio! Eu queria estar lá, mas não puderam me levar - disse num tom resignado, para depois continuar - A Madre Antonia disse que não me levaram porque lá não há lugar para brincar. E além disso falou que lá é tão pequeno que mal há lugar para a uma cama de dormir – Referiu-se numa expressão crédula, meneando a cabeça afirmativamente - Mas, sabe tio? Eu tenho fé que ainda virão me buscar num dia. - Completou num sorriso esperançoso e tímido.

E dito, um alarme o fez sair em desabalada correria, afinal acabara de soar o sino para a garotada se recolher na sede. Assim que o menino partiu olhou no relógio e percebeu o adiantado da hora. Então permaneceu ali, observando as perninhas magras e lépidas correrem até desaparecerem ao entrar na construção, mofada por umidade e de chuvas. E Também já era a hora de partir – Até as 19:00 hrs – havia lhe comunicado a madre – Portanto, faltando 30 minutos já era a hora de retornar ao trailer, acordar os amigos, recolher os poucos aparatos e sair em busca de mais sobrevivência numa cidadezinha qualquer – E foi isso que fez –
Antes porém, cuidadosamente se dirigiu ao imenso prédio e olhou através dos vidros e uma enorme janela e por sorte notou que o garoto das estrelas, já vestido num surrado pijama flanelado, zanzava solitário pelo saguão – “Talvez à procura de algo perdido” – pensou sem perder o garoto das vistas. Foi então que deu conta que estava ali não por conta do acaso, mas sim para praticar a maior das suas “palhaçadas”.

-Psiuuuuuuuuu! Psiuuuuuuuuu! – Chamou a atenção do garoto, batendo suavemente no vidro. O menino percebendo o barulho aproximou-se da janela e destravou o trinco interno.

-Garoto! Ainda quer visitar seus pais? – Perguntou-lhe. A voz doce e o olhar meigo pareceram ter comovido o garoto.

-Claro Tio! – Respondeu arregalando os olhos enquanto com a ajuda de uma banqueta subia até a base da janela para depois se jogar nos braços do palhaço. E ele pode sentir naquele pequeno e apertado abraço pequeno toda a esperança de uma vida. Sabia que num futuro bem próximo enfrentaria problemas com o menino, afinal, ele acreditava piamente que estavam indo para a casa dos seus pais. Mas, um sentimento bom e de afeto se manifestou em ambos naquele rápido encontro no lago. Percebendo não ter ninguém à espreita, e com o garoto em seu colo e agarrado ao seu pescoço, correu e rapidamente entrou no trailer e partindo tão rápido e atabalhoado que os solavancos do trailer acordaram os amigos.

-Você ficou louco, Raimundo? – Perguntou-lhe Osmar, um dos amigos palhaços, ainda exalando o bafo do álcool, ao ver o garoto sentado no banco dianteiro

-Acho que sim! – Respondeu-lhe um sorrindente Raimundo. Acho que a vida não tem a obrigação de se resumir em tristezas e amarguras, apesar de sermos fortemente compelidos a elas - respondeu resoluto para depois abrir um amplo sorriso e exclamar - A vida tem que dar aos seus consumidores uma certa dose de esperanças?

-Dose do que? Não entendi! – Quis saber Nonato – o terceiro palhaço – que pegou unicamente a frase final das ponderações de Raimundo, imaginando que esse se referia a uma bebida desconhecida.

Raimundo olhou complacente para aqueles dois alcoólatras – Realmente eles nunca entenderiam nada, por mais que nada houvesse a se entender – conformou-se num sorriso cúmplice e consentido.

-Rumo às estrelas, guri? – Perguntou ao garoto, dispersando momentaneamente a atenção na estrada

-Claro, tio! Na direção daquela estrela que brilha forte – Exclamou o garoto dando pulos no banco, apontando o dedinho na direção do parabrisa, procurando pela estrela de maior luminosidade.

Raimundo, satisfeito apenas sorriu para ele que curioso voltava a olhar pela janela, vislumbrando a noite, contemplando o luar que projetava as sombras dás árvores que ladeavam os dois lados da estrada, enquanto seus pequenos pulmões, sadios e ainda isentos de vícios se contaminavam pelo mais puro ar dos ramos dos eucaliptais.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Holly, o estranho escritor da 1/2 noite.


Terminei! – Disse o Sr. Holly ao finalizar com um ponto a extensa obra que acabara de produzir.

Feito, espreguiçou-se na poltrona e salvou “As pegadas” em arquivo "word", fechou a pasta virtual e dirigiu-se à cozinha onde um merecido chá de maçã verde o aguardava no esmero de um jarro de cristal. Era o seu prêmio por ter escrito 15 horas a fio o derradeiro capítulo do seu romance. Mas, como de praxe aos autores, algo ainda o incomodava e no curto percurso entre o escritório e o chá de maçã, ocorreram-lhe outras idéias para o romance - se viu pela primeira vez em sua vida de escritor sujeito a mudar o enredo e por vontade render-se ao clichê dos finais felizes - E isso vinha de encontro da sua necessidade de modificar os destinos, literariamente perversos com os quais geralmente brindava os seus anti-heróis personagens. E munido do sentimento que apaziguava seu espírito e solucionava definitivamente a conturbada e doentia relação entre Julie e Wasford, que juntos com um estranho e indecifrável escritor protagonizavam a trama – afinal, a sua alma inquieta não se satisfizera com os destinos que lhes destinara na peça. Ansioso, puxou uma cadeira e anotou no inseparável bloco de notas todas as mudanças em pouco mais de 40 minutos. Terminado, sorriu tanto satisfeito ao sentir que cada uma das novas frases alterava drasticamente a estória. Revisada a última linha retornou apressadamente ao escritório, equilibrando as pernas e o chá de maçã que num bailado insano ondulava no copo mantido em suas mãos.

E mais: A certeza que estava fazendo o correto, a sua firme convicção que aquele casal, desta vez merecia um destino melhor - E ele o sabia – seria amplamente compartilhada com seus milhares de fãs - "O público é e sempre será afeito aos finais que tornam as pessoas felizes" - sussurrou para si - E ele mais que ninguém sabia disso, como sabia que geralmente, por detrás desses finais perfeitos escondem-se as partes amargas e jamais alcançadas pelo ser. E eles os leitores, redimidos nesses finais sentem-se vingados e o “bem sempre há de vencer o mal” gera-lhes uma sensação de felicidade, como se houvessem estado na pele do personagem e como ele sofrido as mesmas emoções e amarguras, mas, para no fim sobreporem às tragédias e saborearem o triunfo - Concluiu reflexivo ao entrar pela porta do escritório e encaminhar-se para a mesa de trabalhos. Andou menos de 2 metros tamborilando a caneta na capa do bloco de notas quando um calafrio lhe percorreu o corpo:

-Não é possível! O que aconteceu com o monitor? – Exclamou ao notar que havia um imenso rombo na tela.

A fim de verificar se não tratava de engano, esfregou os olhos com as palmas das mãos e afirmou bem as vistas – talvez o reflexo do sol ao atravessar a sala tivesse afetado momentaneamente a sua visão –

-Não. Definitivamente há um rombo aqui! – Exclamou surpreso ao ver que o buraco ainda permanecia lá.

Perplexo, sentou-se na poltrona e percorreu com o dedo indicador o local onde deveria estar o vidro – nada – Só havia o vazio de uma cavidade escura. Procurou por cima da mesa e pelo chão, mas não se via qualquer resquício de estilhaço de vidro, o que tornava o fato amplamente incompreensível. Atônito, enfiou a cabeça dentro do rombo de 17 polegadas na tentativa de encontrar algum indício que o fizesse entender – novamente, nada – apenas vislumbrou o oco, o escuro, exalou o cheiro característico dos componentes eletrônicos, inclusive, sentindo-se incomodado por ele. Lentamente retraiu a cabeça que juntamente com as costas retornava a posição original quando sentiu uma mão pousar em seu ombro.

-Senhor Holly? – Perguntou-lhe um rapaz loiro e de tipo atlético.

-Sim, ele mesmo – Respondeu assustado e sem dar conta de como aquele rapaz viera dar ali.

O rapaz, imediatamente postou-se ao seu lado, e ao mesmo tempo desse breve diálogo perceberam passos vindos pelo corredor, e os ruídos produzidos por saltos altos dos sapatos de uma mulher se fizeram ouvir. E o senhor Holly sem saber exatamente aonde e em quem se fixar virou levemente a cabeça a tempo de perceber que uma jovem de corpo bem moldado sorria-lhe amistosamente. Próxima, postou-se atrás da sua cabeça e suas mãos, cheiradas à fragrância de fino perfume francês, surpreendentemente começaram a pressionar seus ombros numa espécie de massagem. Naquele instante o toque firme da mão feminina pareceu confortá-lo. E foi assim, pressionando nervos e músculos sob a pele flácida que ela, finalmente, se dirigiu a ele:

-Ah, então é o famoso senhor Holly? – Perguntou. A sua voz, sensual e harmônica preenchia o vazio, misturando-se magicamente ao perfume francês, enquanto os dedos empregavam maior volume de força, dando continuidade àquela inesperada massagem.

-Sim, já disse que sou. Mas, o que significa isso, podem dizer? – Inquiriu o Sr. Holly, nervoso e um tanto apreensivo. Os dois olharam-se maliciosamente e sorrriram. A moça foi a primeira a se manifestar para dirimir as suas dúvidas:

-Sr. Holly, muito prazer em conhecê-lo pessoalmente. Antes só o conhecíamos através dos textos! – Disse simpaticamente, descendo o pescoço por detrás dele, roçando suavemente o pontiagudo par de seios em sua nuca, enquanto o rapaz enfiava a cabeça pelo buraco, como se procurasse entender o que se passara.

A moça se fixava nele quando deu a volta ao seu redor. Volta feita postou-se à sua frente. Agora sim ele podia vislumbrá-la por inteiro. O belo rosto era marcado por uma indisfarçável cicatriz que nascia no canto externo do olho para morrer meio centímetro depois, próximo da orelha. Os cabelos, fartos, oxigenadamente loiros, contrastavam estupendamente com os lábios rubros e carnudos, mas que denunciavam nela uma feição tanto depravada. No corpo, um justíssimo e curto vestido vermelho deixavam expostas magníficas coxas através da fenda do corte frontal. Ela sorria simpaticamente, e isso pareceu surtir algum efeito nele e ao ponto de tranqüilizá-lo quase de imediato. O senhor Holly, sentiu-se mais seguro e olhava amistosamente para o casal, detalhando agora que o rapaz, apesar de bonito, trazia no rosto um ar de "anos 50", um bigodinho a lá Rodolfo Valentino, algo um tanto démodé e sem uso nos dias de hoje e que lhe conferia certo surrealismo. Quanto a ela, ele se dedicava aos detalhes e percebia que no alto da farta cabeleira da cor de fogo repousava uma bela rosa, igualmente, vermelha. Sentindo-se confiante como um avô em presença de netos, perguntou:

-Ah! Então posso concluir me vejo diante de um simpático casal de meus leitores?

A dupla, outra vez se entreolhou divertido para em seguida ceder o ar simpático para dar lugar à ironia do casal:

-Nós? Consumidores dos seus livros? Ah! Não, não é exatamente isso, senhor Holly - Reagiu o rapaz que agora pressionava fortemente os ossos dos seus ombros, fazendo-o sentir demasiadamente desconfortável.

-Bem, então quem são vocês? – Inquiriu-os, mais assustado que curioso.

-Oras! O senhor nos conhece tão bem, senhor Holly! – Posso dizer até que nos é uma espécie de pai - Sussurrou-lhe no ouvido a loira. Em seguida, abriu a bolsa que trazia, procurando por alguma coisa.

Como assim?- Quis saber o escritor. Aquilo, do jeito que estava começava tomar um rumo imprevisto e preocupante –

O rapaz percebendo a sua aflição abaixou-se em sua frente e de cócoras, olhando-o firmemente nos olhos apresentou-se:

-Muito prazer senhor Holly! Sou o Wasford, ao seu dispor! A garota, incentivada pela atitude do amigo, antecipou-se e esticou o braço na direção do escritor, como querendo que ele correspondesse ao cumprimento. Seu braço permaneceu estendido no ar sem que fosse correspondido. E ela então, trazendo de volta o cumprimento recusado riu-se num riso estranho, quase insano:

-Prazer também, senhor Holly! Sou Julie, a sua criada! – Apresentou-se diante de um senhor Holly, atônito, mas com senso de espírito o suficiente para em segundos digerir tudo aquilo e achar que aquele "teatro" nada diferia do que se propunha a oferecer em seus romances: fantasias. Certo de que aquilo se tratava de algo sadio, perguntou com o mais amplo dos seus sorrisos:

-Vocês estão brincando comigo! É gozação, não é? Alguma brincadeira de algum amigo meu. Vamos! Digam-me logo quem é o safado que está lhes pagando para isso. Vamos, digam! - Completou gargalhando.

O casal mais uma vez se entreolhou, perplexos com a conclusão do escritor. A moça, voltando à realidade, continuou procurando por algo perdido na imensa bolsa a tiracolo até que achou. Tateava com prazer o objeto que, aos poucos foi sendo puxado até surgir, cintilante: uma adaga de prata, afiada e que ostensivamente se curvava na extremidade.

O senhor Holly olhou-os aterrorizado: era aquela adaga que ele descrevera no conto. Era a arma branca usada na diabólica trama do seu livro. E fora com ela que o escritor matou a prostitua Julie, com cortes profundos em ambos os pulsos. Um pouco antes havia se livrado do gigolô Wasford, acertando-lhe a cabeça com uma pesada estatueta de bronze. Mas, não o matou, afinal, precisaria dele, já que sobre ele recairia a culpa da morte da prostituta - Teria que deixá-lo desacordado e a tempo suficiente para a chegada da Polícia - E foi exatamente assim que as coisas se deram - E o pobre Wasford foi pego com a adaga em mãos, chorando sobre o corpo da amada, banhado por um sangue que jamais fora o seu, enquanto o nobre e insano escritor, usando uma das duas passagens que comprara, embarcava para Paris sem levar Julie, o amor da sua vida - Ele jamais permitiria dividí-la com alguém -

Era exatamente isso que Holly relembrava quando foi acordado da real pesadelo que enfrentava:

-Então pensou que tudo terminaria daquele jeito, Holly? Você me mataria, culparia Wasford, e sairia numa boa? Vamos, desembuche! Matou mais alguém em Paris?

Holly estava aterrorizado. Aquilo não podia estar acontecendo:

-Mas, mas, entenda. Não era eu! Jones foi um personagem que criei. Um escritor...por coincidência – Holly tentava convencê-la.

-Coincidência? – Exclamou um raivoso Wasford ao ouvir as justificativas do escritor. – Deixe-me ver até onde vão essas “coincidências” – E dito, percorreu o apartamento de Holly a procurava de evidências que se tornassem mais que meras justificativas.

-Chama isso de coincidência Holly? O mesmo perfume Paco Rabanne? Os mesmos sapatos de couro italiano? E ainda por cima o inconfundível terno Hugo Boss? Coincidências uma ova! Era você Holly que estava na pele daquele escritor. Eu sei! Eu sei! Confesse! - Berrava Wasford ao trazer consigo todo o aparato de coisas do escritor.

Holly suava frio. Do alto da testa um filetes e filetes de suor escorriam na direção da face.

-Sim! Tudo bem! Mas o que isso tem a ver? São meras coincidências!– Gaguejava Holly.

-Tem a ver sim, seu velho filho da puta! – Gritou Julie – Tem a ver porque todo escritor discrimina os desvalidos da vida. É sempre assim, e a corda sempre rompe do lado mais fraco. E quem paga a conta? Somos nós! As putas, gigolôs, trombadinhas de esquinas e outros miseráveis. Inclusive pagamos com o próprio sangue. Você me fez pagar com sangue, Holly - Insistia ela num fôlego só -

Desabafo jorrado, cintilou a adaga de prata diante da luz e a posicionou na jugular de Holly, que mesmo na imensidão do seu metro e noventa, se tornara um velho frágil e seus 74 anos já não impunham qualquer resistência.

Julie, num golpe preciso dilacerou a jugular de Holly que, desesperado tentava estancar o sangue com suas próprias mãos: não queria morrer. Wasford, morbidamente sorriu ao sentir o sangue de Holly esborrifar no seu rosto - vingava-se por Julie - E Holly, sentindo o sangue esvair, tomado por uma sensação repentina e gélida como se fora a mais pura pedra de gelo, percebeu o mundo girar em torno de si. E foi então que percebeu que estava partindo. E antes de ir, não podia deixar as coisas naquele estado. Foi então que se lembrou do bloco de notas adormecido ao lado do mouse. Então sorriu para Julie e fez sinal para que ela o pegasse.
Julie entendeu o gesto e então, de posse do bloco de notas leu em voz alta o que estava escrito nele:

“Wasford, mesmo não sendo tão forte quanto o escritor, desviou-se da pesada estatueta de bronze, que riscou sua cabeça como vento em tempestade. E, num golpe preciso de "chave de braço" resgatou a adaga das mãos de Jones e a cravou no seu coração. Julie, ao lado, chorava: sabia que sua vida estava fora resgatada por Wasford. Tinha a certeza agora que não deveria ter cruzado o caminho daquele estranho escritor. Sabia que apesar da podridão que sempre cercou a sua existência estava fadada a ter um final feliz. Seria com Wasford? Isso ainda não sabia. Soube sim, naquele momento que ele a amava e isso a faria tentar. E foi assim que ela olhou para Wasford, que cansado ofegava num canto do quarto e olhava atônito para as mãos vermelhas pelo sangue do escritor e para a adaga que jogara ao chão. Jones respirava com muitas dificuldades, principalmente agora quando sentia o aproximar do seu fim - Que pena! quase fomos à Paris - lamentou-se com as luzes lhes fugindo dos olhos e fazendo os rostos perderem suas feições. E então, com extrema dificuldade puxou pelo pouco ar que havia e inspirou o último cheiro do Paco Rabanne que impregnava o seu Hugo Boss. O aroma, másculo e famoso penetrou em suas narinas e isso o deixou feliz. Vencido, porém tentando manter certa dignidade deslocou a sua atenção na direção donde julgava vir os gemidos e sussurros do casal - sabia que a paixão fora a mais forte e vencera e eles copulavam ignorando o seu estado terminal - E então imaginou olhar para eles e pareceu vislumbrar cada estocada que se davam e penetravam. Sentiu cada um dos beijos que flamejava como tábua em fogueira. Ouviu todos os sussurros e murmúrios e daí sorriu. E nessa hora pensou na batina de um padre e em extrema-unção. Pensou em seus pecados e em arrependimentos, mas o tempo não lhe coube. Como nada mais se fazia necessário ele se foi. E o par, diante do corpo imenso e flácido vorazmente se amava, pisoteando sem perceber a imensa poça de sangue que ele se tornara"

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Crônica: Homenagem aos Solitários, Poetas & Escritores



Há ocasiões que me questiono sobre a solidão e o que talvez ela possa operar em mim.
Em muitas vezes sinto-me farto de ter-me só e acompanhado unicamente dos meus pensamentos e resoluções. Noutras, o maior dos idiotas ao fitar o imensurável vazio e
e ter-me nos devaneios de sempre, e onde o maior deles me traz o doce que poderia ser me dado; Uma Sofia Loren provocante e sensual que, sorrindo me fita
através da janela de um trem.
Vez ou outra me pergunto se a solidão é capaz de enlouquecer um homem. – Acho que sim – concluo. E pra não deixar que isso me aconteça de forma tão indefesa valho-me de alguns artifícios e das partes desse mundo virtual e faço o bálsamo que preciso, um Dorflex cibernético E como a solidão para mim é o sinônimo dos notívagos, digo; meia noite jamais será quatro da manhã. Portanto, a maioria pessoas, diferentes e mim, como janelas virtuais se fecharão e adormecerão no pátio de suas necessidades.

E geralmente não estou lá, no sono dos justos, pois para mim só basta ter os olhos abertos para entrar nesse extenso universo virtual, mundo esse que faz refém a mim e outros milhões de notívagos solitários. E a solidão como a onça que se acua feroz enfincará suas garras mesmo sendo você de boa família, cheio da grana ou possuidor de mil mulheres em seu harém. Portanto não serão as companhias que determinarão o quanto você pode ser solitário, mas, você próprio, pois mesmo estando cercado de pessoas e vozes não serão esses os motivos que o tornarão imune.
E assim, gente como nós, presos nos labirintos do próprio ser, doentes para os quais há a droga medicamentosa unicamente para os males do corpo, mas não para as dores da alma, teremos que nos virar nos trinta, pois a solidão pode acometer à qualquer tempo, e ela, saiba, é como andar em bicicletas, exercício que jamais se desaprende.
E se ela te machuca, fere, tente se livrar dela como um bêbado que vomita antes de ir ao A.A (Alcoólatras Anônimos) pois sempre existirá gente bem intencionada que tentará fazer-te sentir melhor e esquecer-te dela por algum tempo. Aceite iniciativas nesse sentido e isso, deixe se aproximarem, e talvez te dê algum ânimo e  faça sorrir, mesmo sabendo que esse sorriso (talvez não tão espontâneo) seja necessário à preservação do vínculo da amizade e de tantos esforços que te devotem.

Ah sim! Tava me esquecendo, claro, o que ela opera em mim?

Bem, as vezes imagino que a solidão nos torna mesquinhos tanto quanto ao gênios.
A solidão aliada ao ser notívago é nada mais que a filha do absurdo, e como tal faz proliferar pensamentos, devaneios, delírios, e até, por vezes concede alguns super poderes. E nestas fantasias você apagará mais um cigarro no cinzeiro abarrotado e se verá ganhando na mega-sena, amando e sendo correspondido, talvez até  por entre as pernas de Madona, ou tirando um solo dos bons e de blues ao lado de  Eric Clapton. Só não se imagine.fazendo parte do fantástico trio de área junto de Messi e Neymar, pois aí não seria fantasia, mas loucura.

E mais que isso: a solidão pode verter em você algum senso literário. E isso fará você escrever, transformar em textos as idéias que não param de jorrar. E, quando escrever, não se preocupe demasiadamente com que esperam de você. Se disserem que não há qualidade, lembre-se: muitos gênios foram execrados pela crítica e pelo público, portanto....
Então, não se importe muito com isso e nem leve as críticas muito à sério e apenas assuma a necessidade de textualizar seus pensamentos e escreva. É assim que funciona comigo, qualificado ou não.

E, falando em Poetas e Escritores, sempre mantive-me às voltas em compará-los e tentar decifrar-lhes. Afinal, sempre me questionei os motivos de raramente um poeta se fazer escritor ou vice-versa. E essa questão me queimou demasiadamente as pestanas até que em definitivo me convenci de uma vez por todas: Poetas são os sentimentos. E os escritores....Bem, os escritores são as vísceras deles.

Portanto, além de agraciado pela solidão, devaneie, invente, usufrua largamente pois não há limites nisso. Pense em maluquices e deixe vir à mente as maiores insanidades. Case com Madona, faça o um gol numa Copa do Mundo e recebas as reverências de Robinho e toque os blues, sem humildade, mas com sentimentos, tão bom quanto Clapton - você é o único dono da sua imaginação.



E escreva. Escreva sempre e vomite o que a solidão te ajudou a produzir.
Se acharem que ficou bom...ótimo! nem sempre a unanimidade é burra. Se
acharem que não, engula, refaça e regurgite novamente e até que o cheiro
acre incomode pouca gente. É assim que a coisa funciona.
E, acima de tudo, agradeça por todos os aplausos ou vaias à que se propôs quando entrou aqui, afinal, você foi corajoso ao se mostrar na vitrine e fazer-se apreciado como mercadoria

.
Bom, era isso e, evidente, como conheço um pouco da natureza humana sei que vou ouvir: - Porra véio, auto-ajuda não! - Ou – China, Vá se tratar, vá!
E a esses, antecipadamente respondo: vão se foder!.
Analista, não preciso. Não tive qualquer envolvimento emocional com as galinhas quando pequeno.
Auto-ajuda? Bom, se isso me “auto-ajudasse” ganhar algum e sair
da penúria que me encontro.

Aí....bem, aí quem sabe, não é?

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O livro


“A tarde caía mormacenta na mesmice de sempre . E então se foi, isenta de surpresas, tão inabalada e sem ao menos sentir-se constrangida ou culpada por testemunhar o derreter do homem de gelo”


Na sala, um sofá gasto e puído nas braçadeiras abrigava um homem que acabara de ler o seu livro. A feição, carcomida de tempo e de lembranças, suspirou longamente, o que deixava transparecer que de alguma forma se impressionara com o que lera. E ele, com os olhos grudados nas últimas linhas, saboreava as amarguras que aqueles sentimentos lhes provocavam e ao ponto de relê-los pausada e sussurradamente para si.

Lido, fechou o livro e comparou as muitas semelhanças entre ele e “Sebastian” , o personagem central do conto. E como aquele, sabia que deveria se preocupar mais com a morte do que a conta de telefone em atraso. Evidente, tanto quanto o outro, sabia que esperar algo de alguém, fosse lá quem fosse, seria como acreditar em presentes do papai noel. Pensado nisso por instantes pousou o volume ao lado da perna mantendo-se fixado na cueca, notando as nódoas incrustadas nela, resultados de uma difícil masturbada da noite anterior. O senhor Galindez, fitava aquela coisa esbranquiçada e pensava naquilo que a sua vida se transformara, ou melhor, no que ela lhe deixara como herança. Contas feitas, os resultados apontaram na direção de uma cuecas manchada de porra, algumas roupas antigas e uma filha, distantemente perdida num desses frios países europeus.

Havia também a pensão paga pel Estado, mas, sobre essa nada à reclamar, já que, às custas dela é que sobrevivia: um amargo prêmio pelo avanço da idade. Quanto a Constanza, não via a filha há mais de 20 anos, e dela também de nada poderia se queixar, afinal, a distância e o tempo eram meros bofetões que razão lhe conferia, o seu direito de colheita por tudo aquilo que semeara – Resignou-se num afirmativo meneio de cabeça -

E na amargura, geralmente lhe batia a vontade molhar a goela . Levantou, foi até à cozinha, e olhou para uma garrafa de vodca vagabunda que adormecia num dos cantos da prateleira. Desapertou a tampa, mas, antes mesmo de despejar a bebida no copo, desistiu. Olhou para o aldo oposto e em cima da mesa a garrafa térmica ainda abrigava algum resto de café feito na manhã. Destampou, tomou um gole tanto frio enquanto inspecionava o vitrô da cozinha e se recriminava por não ter substituído os dois vidros quebrados. “Poxa, estão aí há mais de 2 anos” – resmungou ,inconformado com o próprio desleixo - Terminado, empurrou o copo para dentro da pia, onde pratos engordurados aguardavam pela hora da faxina. Na superfície, alagada, boiando como náufragos à espera de socorro, restos da comida do almoço conferiam à cena um toque nauseante. Lentamente deu as costas para a bagunça e refez o caminho de volta pelo corredor. De volta à sala, sentou-se no sofá e outra vez se fixou nas manchas e permaneceu fitando-as atentamente até perceber que elas formavam um desenho semelhante a cabeça de um leão. Deteve-se mais minuciosamente nos contornos da figura até se certificar que, sem dúvidas, pareciam com o animal – Sorriu e ainda sorria ao supor que a cueca fosse uma tela, e ele o pintor, jamais conseguiria grafar aquilo : “Meu Deus! Devo estar me tornando insano” –Disse alto para o espanto do gato que, preguiçoso ronronava no tapete, enquanto ele, com o dedo indicador, persistia no contorno do tecido e do leão feito de esperma.

E ele insistiu na figura até que o desinteresse se fez e cedeu lugar à sua rotineira melancolia. E o senhor Galindez , como de praxe à todo sujeito desesperançado, tinha seus cotidianos acessos de melancolia. E assim, como estivesse em profunda reflexão fechou os olhos e se manteve em silêncio absoluto. A quietude, o ar inerte e quente e um gato que deixara de ronronar permitiram sua mente produzir uma música do seu passado: E ela parecia tão real nas vozes afinadas dos garotos de Liverpool, que ele, como se fosse o 5º elemento da banda, empunhou a guitarra imaginária, e solando cantarolou desafinado: "La,La,La,lalalala, Hey Jude" - E aquela canção de Lennon e MCartney tornou-o frágil e o momento tão propício aos fragmentos do passado que ele, mantendo os olhos cerrados permitiu que eles viessem, em flashes.......

E eles vieram como fachos de luzes, e os fragmentos atravessaram o universos, as barreiras de tempo , travestiram-se de imagens multicoloridas e se instalaram em seu cérebro, reprisando todas cenas de outrora, tornadas agora na mais cristalina das realidades. E as imagens foram se catalogando dentro de si como num filme de sessão contínua , e ele relembrava as coisas boas e ruins que lhes aconteceram. E como estivesse sentado na poltrona de um cinema assistia o vídeo - tape dos tempos das tardes furtivas e ensolaradas e de noites de lua cheia e dos ventos fortes.

E ali, sentado na primeira fileira, socando garganta àbaixo pipocas hipotéticas, recordou as magníficas portarias e as escadas dos bons hotéis que freqüentou naqueles tempos de quase nenhuma dificuldade. E nesse devaneio, saído de uma nuvem de fumaça como se fosse um astro de rock, ele se via subindo os degraus, acompanhado de todas as mulheres que ele havia levado para lá. E uma por uma elas iam com ele. E lá no topo, o tapete rubro e felpudo se estendia e os deixavam à porta da suíte e onde suas “coelhinhas” seriam abatidas. E ele, costumaz em soberba e autoritarismo as empurrava para dentro, incitava, dizía-lhes impropérios, e ouvia com prazeroso sadismo as lamúrias e justificativas por estarem ali, mesmo diante de tantas ofensas de alguém tão vil.

E eram, justamente nessas horas que a libido mais lhe aflorava. E ele, tateava com a língua aquelas bocas vermelhas, mordia avidamente seus lábios carnudos e se excitava como um animal. E no auge da sua loucura desfería-lhes palmadas nos traseiros e as obrigava desfilar com os presentes trazidos de um sexshop fuleiro. E elas, após o ritual das prendas, desfilavam suas novas e diminutas calcinhas, rebolando as nádegas ardidas em brasas, escancarando-se ao mundano, seguindo um script pré determinado, deixando dominarrem-se para depois se verem copuladas selvagemente acima dos lençóis de linho branco.

E assim, ato posto e satisfeito, ele as mandava embora sem não antes dizer-lhes o quanto eram rameiras. E dito, na saída, humilhava-as ainda mais, esbofeteava-lhes as faces com algumas notas graúdas para depois atirá-las ao chão: " Sumam daqui putas rampeiras! Tomem o pagamento por seus buracos fétidos e mal lavados!" - Ele berrava- E elas, corredor afora, como os fervorosos em cultos, ajoelhavam-se e seus rostos quase tocavam ao chão ao recolherem as notas, para depois ouvirem o ranger e a seca batida de porta, enquanto ele, satisfeito, sorrisso de herói estampado no rosto, fumava charutos cubanos, par depois, como besta saciada, dormir e roncar..........


O ronco imaginário o fêz acordar-se assustado desse transe. Tentando firmar a visão em alguma realidade percebeu que os rostos de uma por uma iam desaparecendo da sua mente como sendo apagadas por mãos das quais não se viam os dedos. - “Sim! Eu sempre dizia para elas que eram vagabundas” – murmurou confessado num sorriso quase envergonhado

Novamente, pegou o livro e o abriu na pagina favorita. Ao reler, outra vez a tristeza estampou o seu rosto – Todas aquelas moças eram as mais fuleiras das prostitutas, mas hoje, daria o que tivesse para ter uma única delas ao seu lado: quem sabe assim terminaria aquela solidão desgraçada e e olhar para oito paredes que nunca lhe diziam nada - "Ah, se eu pudesse voltar no tempo teria feito tudo diferente!" – Concluiu olhando o vazio, sentindo repentinamente percorrer no corpo uma sensação estranha de uma dor intensa que começava na nuca, descia pelo ombro e depois morria no braço esquerdo.

E a dor que nunca sentira antes o incomodava. Inerte ele nada fez e nem procurou ajuda, e só ficava lá no aguardo de outras sensações: -"Será que vai doer ainda mais?" - Se perguntou - Ele sabia que teria de morrer um dia - E naqueles instantes de uma quieta aflição conscientizou-se que a morte estava mais ligada as dores da alma que propriamente do corpo. E, morte por morte, ele já sabia-se morto. - "È só o meu espírito que reluta, que resiste" - Convenceu-se, enquanto, mais uma vez, pegava o livro e o abria na última página -

“A tarde caía mormacenta na mesmice de sempre . E então se foi, isenta de surpresas, tão inabalada e sem ao menos sentir-se constrangida ou culpada por testemunhar o derreter do homem de gelo” - Ele ainda leu pela última vez antes que a dor desistisse do braço e avassaladora cravasse no centro do seu peito. E ela foi tão intensa e definitiva que o fez cair no chão e grunhir como um porco. Um pouco depois ele se fez totalmente imóvel. Seus olhos se mantinham inertes e arregalados, e da boca, entre aberta, um filete de uma baba cristalina corria na direção do queixo pontiagudo. O gato o olhou com desinteresse o exalar do último suspiro. E então ele se foi: Jorge Galindez, 68 anos , pensionista de um governo, não tão jovem quanto gostaria e nem tão velho quanto merecia ser.

E se foi sob um sol de uma tarde escaldante e todos os cachorros da vizinhança pareceram perceber e seus uivos de lamentos foram ouvidos como se fossem uma cantiga de adeus, e as moscas nas fétidas lixeiras zuniram alto e tão forte como se entoanssem uma irritante reverência, uma última homenagem ao velho companheiro.

E foi assim e dessa forma que ele simplesmente se foi e nada deixou de muito valor. Partiu sabendo que havia uma filha, distante, num desses países da europa e do qual nem o nome sabia. Se foi e fez retornar aos cofres do governo a miserável pensão , paga por gente, que ele sabia, nunca ter se importara com ele.

E partiu de forma tão imprevista e surpreendente que nem tempo houve, que lhe permitisse fechar o livro abandonado num canto de sofá. Uma obra que nada mais foi que um achado despretensioso, hibernado nas prateleiras de um sebo muquetrefe.
Um livro de nome e autor desconhecido, de folhas que não se faziam muitas, mas que tinha dito tanto em tão pouco que se tornou juntamente com o gato e a tarde quente que se respirava, as únicas testemunhas da sua morte. Da morte do homem de gelo.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A morte de um porra louca


Eu não gostava de me ver ali e nem de sentir o ar adocicado por um perfume natural e que eu odiava. Lentamente, levantei-me da urna, equilibrei-me para que ela e eu não fôssemos ao chão e, já no piso, olhei por debaixo da toalha de tons carregados e percebi que a minha vida se resumia unicamente naqueles 4 pés de madeira, escondidos e que mantinham-nos elevados do chão. O clima era de velório, aliás, era um velório. Lentamente caminhei e fiquei zanzando por ali, atendo-me na expressão de cada rosto e tentando descobrir o que se ocultava atrás deles.

Do meu pai, apenas as olheiras semi-profundas e convites quase furtivos para que meus tios o acompanhasse nos cafezinhos servidos na lanchonete do cemitério. Em minha mãe, olheiras terrivelmente profundas e um olhar distante, como se nada mais pudesse interessar-lhe ou que se fizesse motivo para continuar a sobreviver. Nas minhas irmãs, Tuca e Angelina, cujos relacionamentos nunca foram “aquelas coisas” , apenas olhares de uma aparente tristeza, mas sem um único par de lágrimas – Ative-me nelas por algum tempo e questionei se fazia necessário demonstrar aquele pesar todo – Afinal, estavam bem distante do curso de arte dramática que freqüentavam. Nas demais pessoas notei os olhares de condolência, salvo o de um ex-amigo ( coisa de 3 anos atrás) que parecia se divertir ao trocar impressões com a Raquel, uma ex-namorada minha ( coincidentemente, também da mesma época) E ele, ar de sacana, cochichava em seu ouvido:

-Porra! O Mendes era um completo porra louca! – Para depois completar – Pudera, né Raquel! O cara há mais de 3 anos que não saia daquele quarto. Só vivia computadores, relacionamentos virtuais e aquela sua mania de ser escritor!

Raquel o olhava com ar de um consentido pesar e apenas meneou a cabeça em sinal de concordância e depois se expressou longamente:

-É!

Olhei pra Raquel, afinal, eu gostara dela um bocado, e fiquei pensando no que não deu certo entre a gente. Talvez o nosso problema tenha surgido por de Raquel nunca ter trepado ao vivo como fazíamos diante das webcam. Ela jamais conseguiu me falar, me olhar nos olhos e ser tudo aquilo que escrevia através do teclado do seu Pentium IV – Aí, por mais que quisesse não houve jeito -

Depois dela, lembro que fiz a mesma tentativa com uma garota chamada Tânia. Ah, isso foi há uns 2, e o resultado igualmente péssimo: trepávamos legal pela Net, mas pessoalmente, a merda de sempre.
Vocês devem estar aí se perguntando: Pô, esse cara devia ser doido. Podem falar, eu não ligo... Vamos, falem - eu já morri mesmo - Bem, doido ou não, sobre as trepadas virtuais, foi que após um certo tempo notei o prazer que me dava transar por esse canal. Tudo simples e rápido, e era só ligar a cam para o processo se iniciar: papel higiênico do lado, um cestinho de lixo que eu mesmo me desfazia, e um garrafinha plástica de álcool de 250ml resolviam os meus problemas: sempre fui muito asseado comigo e com a máquina. E isso, apesar de me satisfazer, deixava-me com a vaga impressão de que não deveria ser assim, mas era assim que exatamente era.

E nessas divagações, eu constatava que amigos e mulheres deveriam ser vividos e exauridos na plenitude, e só a virtualidade me fornecia o que eu precisava. E esse tempo me fez ver que cada um dos meus amigos sabia que na virtualidade é necessário ser o mais correto possível, afinal, estamos longe da realidade e das dificuldades que ela impõe. Talvez, a vida que me fora dada na realidade tenha me mostrado o quanto existe de falso nos relacionamentos. Sobre relacionamentos amorosos, confesso: fui chifrado por algumas garotas. Algumas me traíram com amigos, com primos, e até com um ou outro professor. Por exemplo: Tânia foi um desses casos; foi com um primo meu. E pra piorar, o filha da puta me dizia: Primo, sai fora dessa mulher! Isso é chave de cadeia! – E eu, maluco por aquelas pernas bronzeadas respondia que ele estava maluco, com dor de cotovelo, até o dia que ele fez uma aposta comigo. Pois é! Tânia foi a aposta. Bem, isso nem tem qualquer importância agora. Só que hoje quem tem dó dele sou eu: ele se fodeu ao se amarrar nessa vadia, que conseguiu se tornar sua mulher.
Ah, e olha que não sou vingativo. Se fosse, teria lhe dito que passado uns dias do seu casamento, fui procurado por Tânia, que de alguma forma soube que me encontrava sozinho em casa. E ela surgiu do nada, calcinha transparente e peitos sem sutiã e tentou transar comigo. “ Chave de cadeia” – relembrei ao cair fora -

Bem, estou perdendo o meu tempo com essas lembranças carnais. Deixe-me continuar correndo o espaço e vislumbrando as demais pessoas do velório.

Ah, estou vendo mais gente interessante por aqui.
Hum...estão aqui o Cesar, a Ana Maria, o Justos, e ops!... também a gostosinha da Eledice. Sim, essa é gostosinha sim. Essa mina é poeta e escreve numa mesma comunidade que eu, lá no Orkut. Pra te falar a verdade, câmeras em ação, ela é mais eficiente como fêmea-pornô-virtual do que a poetiza que gosta de ser . Evidente, ela ainda não se tocou, mas a sabedoria que emana de si, localizá-se bem no centro das suas coxas. Portanto, o prazer em vê-la desnuda vai muito, muito além do versejar de suas poesias. Não. Não, ela não é um completo fiasco como poetiza, claro, não! Mas o que verseja nela são as formas: com a sabedoria do corpo, a mente não compete. Mas, no caso dela, há de se ter todos os cuidados, e qualquer mancada nossa é o suficiente para fazê-los cometerem atrocidades: poetas são demasiadamente sensíveis. E ela, talvez, por me julgar excessivamente louco e quase nada sensível, nunca aceitou o convite para passar uma noite no meu quarto: por ela eu abriria mão da virtualidade. Ih, olha eu aí,novamente falando de trepadas, surubas: que saco! Bom, deixe-me ver os outros. Ah sim! No caso do Cesar e da Ana, acho que só vieram por ser um sábado de manhã e não terem nada programado pra esse fim de semana. E mesmo na comuna, sempre achei esses dois uns “hiper esquisitos” tímidos em demasia, que se colocados nus diante um do outro, provavelmente agiriam com a mesma desenvoltura infantil daquele casalzinho babaca do filme “Lagoa Dourada”. Enfim, acho que se gostam, mas até que algum deles tenha coragem de se expor, provavelmente terei completado a bodas de prata do meu funeral.
Hã, sobrou quem? Ah, o Justos! Eita!....esse é esperto e bate bem nas duas; poeta e escritor. Um dos raros caras pra quem tiro o chapéu naquela comuna. Talvez ele esteja aqui, não por me considerar algo importante ou inovadora em termos de literatura, mas sim por saber que apesar dos meus erros sempre procurei ser sincero no que escrevi: a sinceridade é o filet mignon que falta na mesa dos escritores, sejam eles poetas ou não.


Nossa! Não param de chegar “coroas”? Porra! Vocês já sabem que detesto flores! Não é à-to-a que to me sentindo nauseado: o cheiro adocicado me embrulha o estômago. Ah, talvez seja um tanto psicológico, afinal, vai ver é pura frescurite, e até onde saiba: defunto não sente náusea. Mas, em todo o caso fica o registro....
Bem, vejamos agora...tios, tias, primos, ex colegas de rua, amigos do CPOR (quartel)..sei, sei.

Hã? O quê? Estou discernindo perfeitamente? Será a professora Athayde? Essa filha de uma puta nunca foi com a minha cara,a pesar de eu ter sempre ido com a cara do rabo dela: me bombou no inglês, apesar dos choramingos. Bem, tinha algo nela que nunca entendi, já que por ela, babávamos eu e toda a classe, mas, mesmo assim, ela parecia não se importar com os olhares sacanas que jamais abandonavam as curvas do seu corpo. O estranho ficava por conta da sua excessiva afeição à Juliet, uma das alunas, neta de franceses, magérrima, alta, olhos azuis e a pele tão branca, igual à avental de açougueiro saído da lavanderia. Bem, não sei, em todo o caso, na época eu estava com 15 ou 16 anos, e talvez não tenha conseguido captar todas as nuances do fato e isso me faz emitir juízo de valor, talvez até baseado em distorções que cometi. Mas pelo sim ou pelo não: bem-vinda prófe! Saiba que a senhora continua um tesão apesar dos pés de galinha que se formaram nos cantos dos olhos.

Mãe! Por favor, vai! Pare de chorar, pelo amor de Deus! Vá dar um giro lá fora, tomar um ar fresco. Vá dar uma "sapeada"no papai. Veja ele lá no canto, sorriso tímido, conversando com meus tios ( Nego-me à assoprar pra ela que meu tio Onofre está comentando sobre a bunda da mulher melancia) Vá lá então mãe. Pegue no braço do velho e faça ele te levar pra um cafézinho: ele já pagou uns 10, que eu vi – E outra coisa mãe...Café é estimulante, deixa a gente ligadão. Lembra que a senhora me encia o saco por eu tomar café e fumar o dia todo? E toda desgraça pouca é bobagem: Meu filho, isso mata! Dizia apontando para o cigarro que um após outro ardia no cinzeiro. Pois é! Pois é, dona Julia! A senhora estava certa.

Caracas! Ah não! O Padre Zezinho, nãooo! Poxa, pai! Tu sabe que há um bom tempo eu larguei mão desse lance de religião. Por favor, mandem o sujeito embora! E além do mais eu não estou a fim de ser ungido com a água benta ( sempre questionei o processo de feitura da água benta. Será que o líquido é destilado, pelo menos?)
Ta bom! Não tem jeito de se livrarem do padre! Tá bem!....Pelo jeito vou ter que me conformar com isso: morto, jamais impõe suas posições filosóficas


Puts! E não é que o Padre me fez lacrimejar? Acho que os momentos finais do meu velório me sensibilizaram. Ele falou tão bonito, tão calmo. Acho que acabei sendo injusto com o Padre Zézinho, afinal, ele me conhece desde pequenininho. Lembro que carregado de pecados e de uma forte convicção católica ( por insistência da minha falecida avó) eu ia nas missas de domingo e sempre confessava algum pecado qualquer; ou tinha roubado a barrocha de alguém, usurpado a esferográfica de outro, e até mesmo sumido com a "Bola Pelé" do meu amiguinho Tinho. E nessas horas o Padre Zezinho me salvava o paraíso. Ele era massa! - Toma lá! – Vá e não volte aqui sem rezar 10 ave-maria, 5 padre-nosso -( ele sempre se recusou a se referir como.. pai-nosso)- E não volte à pecar! Estamos conversados? - Ele finalizava, questionando-me

Opa! Mas, mas, mas! Já querem tampar o meu caixão? Como? Sim?
Ah, claro! Já se faz a hora, né! Tem outro velório agendado para às 16 horas e não podemos deixar a sala ocupada. Sim, entendo sim! Há a necessidade de se fazer uma faxina nas coxas, arrumação de cadeiras, dispor as coroas que já estão à caminho...sei, sei. Tudo bem! Tudo bem!
Bom, então antes de ir deixem-me olhar pela última vez para a luz do sol. Já reparam como o sol arde bonito lá fora? Então.

Está certo, vi. Podem tampar agora. Devagar, devagar, estou morto mas persisto sensível. Devagar com essa tampa...isso! Nossa! Perfeita escuridão aqui! É um bom teste para ver se me acostumo com a escuridão completa, né? Uma experiência, como se fosse a provinha do Enen – sei como é! –
Eita! Por favor! Não chacoalhem caixão dessa forma! Putz pai, não teve jeito né? Isso tem cara sua: Vou ter que ir ladeado por esse monte de flores, é? - Claro! Claro! Vocês não tão nem aí com renite de morto. É! é ilusão, eu sei! Tudo bem! Então, só não chacoalhem tanto....Aqui dentro tudo está saindo de lugar, e tenho pétalas enfiadas até no nariz.
Ta bom! Ta bom! Estou sendo implicante, eu sei.

Ta certo. Enterrem-me agora. Compreendo que chegou o momento da minha segunda verdade: a primeira foi de quando nasci.

Só lhes peço que me deixem ficar lá embaixo, ao menos, com a sensação de sempre e que carreguei por toda a vida : de que nem tudo está fora de lugar.


By Véio China
set/2008

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Os novos gênios serão os donos do mundo


-Manhêê! – Resmungou o garoto para depois completar: -Por que o dele vai bem mais alto que o meu? – Enquanto apontava para o garoto que ao seu lado imprimia tal velocidade ao balanço que se elevava cada vez mais.


Dona Laura, afeita a satisfazer todas as vontades e mimos do fedelho, tentava em vão empurrar as suas costas na ânsia de fazê-lo voar alto e cada vez mais longe – Impossível! Não atingiam o objetivo –

E assim, impassível e contrariada ela se ateve aos movimentos do garoto ao lado e a sua perfeita coordenação de um conjunto  de pernas e tórax que, ritmados, faziam-no ir  longe. E lá ele pairava absoluto como se um condor tivesse subido aos céus para arrojar-se no mais espetacular dos rasantes. Porém a sua contínua eficiência  começava a incomodá-la ao ponto de achar  melhor retirar o filho dali para irem num novo  brinquedo. Conhecedora das rabugices da cria procurou por algum divertimento que não estivesse sendo compartilhado com outras crianças. Encontrado, caminharam para o gira-gira.

Gira-gira era uma espécie de carrossel, um desses que rodam em círculos e que as crianças os empurram e os alçam em pleno movimento. E assim foi, e tão  logo o filho tocou no novo brinquedo, ela, contrariada percebeu que o outro garoto largara a sua cadeira de balanço para vir brincar justamente no brinquedo que  escolheram. Chegando, arteiramente retirou o chorão do gira-gira com um empurrão nas costas e agarrou-se a uma das hastes metálicas do carrossel e imprimiu tal velocidade que Dona Laura sentiu vertigens só ao vê-lo girar. E evidente, o seu menino, impressionado com a agilidade daquele atleta dos brinquedos postou-se carrancudo ao lado da mãe,  declarando o seu aborrecimento:

-Manhêê! Esse menino deve achar que o mundo é só dele!

Dona Laura,   concordando com a opinião do filho olhou sisudamente para o intruso, porém obteve como resposta apenas um olhar vencedor do pequeno exibicionista,  que se expressou sem a necessidade de afirmar: “Dona, apesar de seu filho ser bem maior, eu sou melhor que ele”. E para a persistência do seu desconforto o garoto insistia em mantê-la  fixa em seu olhar. Dona Laura, tentou, tentou,  mas não conseguiu se esconder do seu olhar zombeteiro. E então como se acusasse o golpe,  questionou: “Por que meu filho não é tão esperto?”
Bem! O seu filho poderia não ser o melhor em tudo, afinal,  seria demais exigir isso dum garoto em idade tão tenra  – “E ele já me dá grande alegria ao ser um filho carinhoso, educado. Gosta até de literatura ô danadinho!” – Justificou consigo mesma ao olhar apaixonadamente para o seu guri.  Sim, aquele era o seu filho, seu sangue, alguém gerado com todo amor que se possa imaginar, e  não um exibicionistazinho qualquer – Murmurou entre dentes, satisfeita ao relembrar que o filho terminara a leitura de “O Pequeno Príncipe” – “Imagine! Apenas nove anos e uma leitura dessa?” – Balbuciou consigo e riu-se patética, orgulhosa.

Foi então que um sentimento de redenção tomou conta dela e a fez relembrar que também fora amante da literatura. Foi na juventude, idade de acalentos, de sonhos, de se tornar uma escritora de sucesso tal qual a Zélia Gattai, seu ídolo. Porém o sonho sucumbiu aos obstáculos impostos por críticas amadoras, o desinteresse de algumas editoras e de alguns pareceres nada lisonjeiros de alguns escritores amigos de seu pai, um renomado professor da língua portuguesa. Portanto,  os castelos em sua imaginação ruíram como os feitos de areia e que se desmancham sob a maciez das ondas,  guardando a necessária distância da amizade dos escritores, restringindo-se  unicamente  a admirá-los enquanto exercício de criação, posto   para ela que a literatura fabrica egocêntricos,  narcisistas, desvios que sempre passaram ao largo da sua natureza correta e leal.
Assim, vacinada contra aquela gente ela  aprendeu a relacionar-se e respeitar cada traço de caráter,  agora despoja dos sonhos impossíveis, libertando-se  das miragens que se locupletam quando os olhos se fecham, principalmente da maior de todas: de que um dia poderia se transformar numa autora de sucesso.

-Manhêê! Agora quero ir à gangorra! – O filho a resgatou das recordações apontando o dedo em riste para outro brinquedo. Ela assentiu com um meneio de cabeça e rumou com ele na direção daquele.

Caminhando, persistia certa curiosidade sobre o menino prodígio. Repentinamente parou e olhou para trás e sorriu ao notar que o serelepe ainda permanecia por lá rodando de forma insana aquele brinquedo maluco– “Que fique aí, seu feio, e deixe a gente em paz!” – Resmungou consigo  –
Contudo seu sossego não perduraria e terminaria justamente quando viu as ágeis e encapetadas pernas infantis  desistirem do gira-gira e virem correndo  aonde estavam . E tão logo chegou sentou-se numa das pontas da gangorra e impulsionou a parte inferior das pernas, elevando-se no ar. E do alto, ao descer  e não utilizando  os pés como freio para amortecer o encontro do assento contra o chão fez o garoto da outra ponta subir repentinamente e em  completo desgoverno. E como já era de se esperar,  na outra extremidade se encontrava  o filho de Dona Laura, que ante o violento  golpe da madeira contra o chão o fez  voar em direção à terra,  estatelando-se no chão.

-Manhêêê! Olha que esse menino me fez! – Gritou enraivecido ao tentar se erguer no corpo dolorido.

Ao conseguir erguer-se reparou que no tombo raspara o  joelho e que em  algumas fissuras vertiam  pequenos veios de sangue. Ao notá-los vermelhos o guri chorou até não mais não poder.
Para dona Laura foi a gota que transbordou. Ainda mais diante do ar zombeteiro que parecia que nascera no rosto daquele pequeno malfeitor. Desta vez não se conteve:

-Mas que diabos, guri! Você é impossível, mesmo! Parece-me evidente que com essa tua natureza darias num tremendo dum escritor fanfarrão! – Disse-lhe com severidade.

O garoto além de não sentir-se abalado ainda mantinha no sorriso um deboche que lhe emoldurava o rosto.
Contudo, ainda não foi o pior: Qual não foi a surpresa de Dona Laura ao ouvir daquele pirralho de nem  10 anos, a resposta:

-Escritor, eu? Jamais! Eu os acho vaidosos! – E continuou para o desespero da mulher:  Eu serei um teatrólogo! Desses escritores ególatras  só quero os textos, afinal, terei que adaptá-los! –

Mas o pirralho ainda não se deu por satisfeito:

-Claro! A senhora não teria como saber, mas, estou no meio da minha primeira experiência, tentando adaptar o mais comum dos  contos de Hem ; O Velho e o Mar. A tia já ouviu falar? - E dito isso, saiu em disparada na direção de alguns meninos que jogavam futebol, metendo-se entre eles, chutando a bola para longe diante o reclamo geral da gurizada

Perplexa, dona Laura permaneceu parada, sem ação, sem reflexo, sem nada, apenas reverberando dentro de si as derradeiras palavras do garoto – Hem, ao que o garoto se referia era nada mais, nada menos que Ernest  Hemingway!
Porém o que Dona Laura não sabia e jamais poderia  supor é que a poucos metros dali um irrequieto par de olhos a tudo acompanhava. Aquele garoto não deveria ter mais que onze ou doze anos dentro de um rosto desordenado, engraçado,   olhos protegidos por um enorme óculos de armação negra  e com lentes tão potentes que  pareciam o fundo de uma garrafa de cerveja. E o garoto usava  os polegares e os indicadores de ambas as mãos e com eles formava uma figura semelhante ao retângulo e a usava essa janela como se fosse uma câmera, a qual movia  de um lado para o outro na tentaiva de focalizar a cena num ângulo que lhe parecesse perfeito. Assim que julgou ser aquele o momento  manteve-se com os braços e dedos inertes enquanto que a sua boca fazia um barulho semelhante ao ruido dessas claquetes que se usam nos sets de filmagem.

Ninguém poderia imaginar, mas ali  naquele instante o destino lhe incumbia de registrar um fato de grandeza maior  ante as cenas tão pueris: Ali, aos dez de idade ela  via nascer o mais espetacular cineasta que o mundo haveria de reverenciar.
E o que ela  também não sabia era que,  Fellini, Scorsese e Spielberg jamais lhe seriam sombra.