terça-feira, 30 de setembro de 2008

O Orfão, o palhaço e os eucaliptais


-Hey tio! Veja como a lua tá bonita – Disse o fedelho.

Olhando pro garoto tornava-se curioso notar o efeito que aquelas dezenas de pigmentos causavam em seu rosto. Nele,as sardas, os olhos azuis e vivos como o mais claro dos céus sobresaiam e os cabelos vermelhos da cor de fogo, cheios no alto e raspados na altura da nuca conferiam-lhe a feição das mais insólitas e irrequietas desse mundo. Era nisso que ele pensava ali na beira do lago, admirando a lua e procurando entre as estrelas aquelas que se derramavam como pequenas lágrimas, num quadro esplendoroso, parido sem qualquer magia, algo tão descomunal e absoluto que faria o mais humilde dos ignorantes acreditar que há um maestro à reger toda aquela sinfonia de coisas perfeitas e exatas. Mas, mesmo estando ali com a lua a espelhar seus reflexos nas águas, mesmo ali com os vaga-lumes desfilando diante dos seus olhos a incessante alegria do piscar de luzes ele não conseguia se manter feliz. Estava farto de ser solitário, palhaço, cansado de trocar sua vida por ninharias, exausto de conviver com os outros dois companheiros, alcoólatras e palhaços iguais a ele que roncavam no trailer de estado deplorável, de 1963. Para ele o que restava era mais um fim de tarde sem esperanças, igual aos milhares suportados em sua vida. Para ele era nada mais que um início de noite,sem ninguém,acompanhado unicamente por seus botões e pelo jargão que ecoa em sua mente - E o “Como vai, como vai, vai, vai? Tudo bem, bem, bem ?” - Um slogan, plausível, o único elo de sua comunicação com o mundo - que agora lhe doía a cabeça, resvalava nas paredes do cérebro, exaurindo sua mente – justo dele – que naquele dia fora merecedo dos aplausos e estrondosas gargalhadas da meninada.

E assim disperso pensava nessas e em tantas outras coisas quando foi acordado dos pensamentos e chamado à realidade por uma pedra atirada pelo garoto. E a pedra saiu em disparada, saltitando na água, ricocheteando na superfície, parecendo um atleta olímpico vencendo seus obstáculos. E a pedra, após uns 4 ou 5 ricochetes afundou e isso o fêz achar graça na destreza do guri. Girando a cabeça, voltou na direção do guri e olhando por cima do topete do menino observava ao fundo a imenso e antigo prédio, construído às custas da Igreja e que abrigava uma centena de meninos órfãos, taais qual aquele que se postara ao seu lado. – “Graças à Deus, meus pais, ao menos eu os tive” – Murmurou para si. Afinal, as coisas poderiam ter sido bem piores – Concluiu conformado e ao ser novamente interpelado pelo garoto:

-Tio, você sabia que meu pai e minha mãe moram naquela estrela? – Disse apontando o dedo indicador na direção da mais reluzente das estrelas.

-Não, não sabia. – Respondeu reflexivo.

E a beleza cruel da frase proferida pelo garoto ainda ainda reverbava em seus: como podia a morte ser tratada com tanta simplicidade? - ele se questionou - enquanto o garoto continuava com o olhar fixo no firmamento. Mas, ainda não lhe tinha dito tudo:

-É sim, tio! Eu queria estar lá, mas não puderam me levar - disse num tom resignado, para depois continuar - A Madre Antonia disse que não me levaram porque lá não há lugar para brincar. E além disso falou que lá é tão pequeno que mal há lugar para a uma cama de dormir – Referiu-se numa expressão crédula, meneando a cabeça afirmativamente - Mas, sabe tio? Eu tenho fé que ainda virão me buscar num dia. - Completou num sorriso esperançoso e tímido.

E dito, um alarme o fez sair em desabalada correria, afinal acabara de soar o sino para a garotada se recolher na sede. Assim que o menino partiu olhou no relógio e percebeu o adiantado da hora. Então permaneceu ali, observando as perninhas magras e lépidas correrem até desaparecerem ao entrar na construção, mofada por umidade e de chuvas. E Também já era a hora de partir – Até as 19:00 hrs – havia lhe comunicado a madre – Portanto, faltando 30 minutos já era a hora de retornar ao trailer, acordar os amigos, recolher os poucos aparatos e sair em busca de mais sobrevivência numa cidadezinha qualquer – E foi isso que fez –
Antes porém, cuidadosamente se dirigiu ao imenso prédio e olhou através dos vidros e uma enorme janela e por sorte notou que o garoto das estrelas, já vestido num surrado pijama flanelado, zanzava solitário pelo saguão – “Talvez à procura de algo perdido” – pensou sem perder o garoto das vistas. Foi então que deu conta que estava ali não por conta do acaso, mas sim para praticar a maior das suas “palhaçadas”.

-Psiuuuuuuuuu! Psiuuuuuuuuu! – Chamou a atenção do garoto, batendo suavemente no vidro. O menino percebendo o barulho aproximou-se da janela e destravou o trinco interno.

-Garoto! Ainda quer visitar seus pais? – Perguntou-lhe. A voz doce e o olhar meigo pareceram ter comovido o garoto.

-Claro Tio! – Respondeu arregalando os olhos enquanto com a ajuda de uma banqueta subia até a base da janela para depois se jogar nos braços do palhaço. E ele pode sentir naquele pequeno e apertado abraço pequeno toda a esperança de uma vida. Sabia que num futuro bem próximo enfrentaria problemas com o menino, afinal, ele acreditava piamente que estavam indo para a casa dos seus pais. Mas, um sentimento bom e de afeto se manifestou em ambos naquele rápido encontro no lago. Percebendo não ter ninguém à espreita, e com o garoto em seu colo e agarrado ao seu pescoço, correu e rapidamente entrou no trailer e partindo tão rápido e atabalhoado que os solavancos do trailer acordaram os amigos.

-Você ficou louco, Raimundo? – Perguntou-lhe Osmar, um dos amigos palhaços, ainda exalando o bafo do álcool, ao ver o garoto sentado no banco dianteiro

-Acho que sim! – Respondeu-lhe um sorrindente Raimundo. Acho que a vida não tem a obrigação de se resumir em tristezas e amarguras, apesar de sermos fortemente compelidos a elas - respondeu resoluto para depois abrir um amplo sorriso e exclamar - A vida tem que dar aos seus consumidores uma certa dose de esperanças?

-Dose do que? Não entendi! – Quis saber Nonato – o terceiro palhaço – que pegou unicamente a frase final das ponderações de Raimundo, imaginando que esse se referia a uma bebida desconhecida.

Raimundo olhou complacente para aqueles dois alcoólatras – Realmente eles nunca entenderiam nada, por mais que nada houvesse a se entender – conformou-se num sorriso cúmplice e consentido.

-Rumo às estrelas, guri? – Perguntou ao garoto, dispersando momentaneamente a atenção na estrada

-Claro, tio! Na direção daquela estrela que brilha forte – Exclamou o garoto dando pulos no banco, apontando o dedinho na direção do parabrisa, procurando pela estrela de maior luminosidade.

Raimundo, satisfeito apenas sorriu para ele que curioso voltava a olhar pela janela, vislumbrando a noite, contemplando o luar que projetava as sombras dás árvores que ladeavam os dois lados da estrada, enquanto seus pequenos pulmões, sadios e ainda isentos de vícios se contaminavam pelo mais puro ar dos ramos dos eucaliptais.

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