quarta-feira, 27 de maio de 2009

Coração Satânico - By Véio China -


- Zig, conforme o que combinamos.... estou aqui – Disse o demo.

Aos poucos vi o seu rosto surgido no meio de nuvens multicoloridas. E e as fumaças psicodélicas seguiam na direção do teto e criava na sala uma atmosfera toda especial, assim como estivesse na primeira fila dum show dos Stones. Não sabia ao certo as emoções que experimentava, ou de fascínio, ou do horror. Aos poucos fui distinguindo o contorno do seu corpo.

Evidente, a “coisa ruim” viera cobrar a nota promissória, uma dessas dívidas que só os bêbados contraem. Eu bem me recordo daquele dia dos infernos. Nada, absolutamente nada dera certo em minha vida, principalmente os empregos que desperdiçava como mãos que acenam para esses ônibus que não param no ponto. Talvez nem mesmo os patrões fossem os culpados, e ainda mais levando em conta o meu jeito de poucos amigos além de me suporem dispersivo e improdutivo, talvez imaginando que eu estivesse em seus empregos por mero oportunismo, subvertendo a ordem,  sobrevivendo à custa dos esforços  dos outros, exceto o meu. Talvez até acreditassem que me contentava com as migalhas dos salários de fome que mal davam pra comprar alguma comida e pagar o aluguel da casa de um dormitório.

Se os empregos nunca foram bem, o que falar sobre as mulheres? Simplesmente eu não dava a menor sorte com a maioria delas. apesar de nunca me manter distante de uma. Se, demasiadamente carinhoso e compreensível me olhavam desconfiadas, afinal o que poderia sugerir um sujeito que beirando aos cinqüenta jamais tivera uma mulher  a quem tratasse por "minha mulher"?  Porém se me manifestasse num cara durão, desses que batalham uma mulher com a faca nos dentes e as mãos dentro do sutiã, aí sim me tinham por um brutamonte, um casca grossa, insensível. Evidente, Zelda, a mulher que morava comigo jamais se preocupava com essas sensibilidades, fineses ou cultura, e ás vezes eu supnha  que suas pernas pensavam mais que o cérebro.  Enfim, não faltavam problemas para mim, e por falar em problemas, lá estava eu com o mais recente deles.

-Senhor Zig, sentimos muito, mas somos obrigados a demiti-lo - Informou-me um daqueles almofadinhas do escritório. Olhei para o seu rosto repleto de acnes e para um pavoroso terno dois números maiores ao que deveria ser. Ele esperava por alguma reação minha.

-Certo! – Concordei –

De lá nos dirigimo-nos ao Depto. Pessoal onde fui notificado oficialmente da demissão. Ainda me trocava no vestiário quando surgiu o encarregado da nossa turma:

-Zig, por favor, ao sair deixe as botas em cima do banco. – Eu olhei pra ele e nada falei

Aqueles caras do setor automotivo eram incríveis!  A insensibilidade humana mais uma vez  me causava problemas ao se  preocupar com um maldito par de botas que deveria ser deixado sobre o banco do vestiário. Eu não era ladrão! Por que os homens não se preocupavam com coisas mais relevantes como a cura do câncer ou os loucos perdidos na multidão, ou mesmo com esses assassinos em série e que, apesar das evidências jamais são encontrados pela polícia. Não, não me surpreenderia se naquele mesmo instante houvesse um corpo esquartejado no porta mala dum Chevette 73 pronto para ser desovado às margens do Guarapiranga.  Porém não era isso o que  lhes interessava, nem mesmo á polícia, mas  sim um maldito  par de sapatos que deveria ser deixado num banco de vestiário.
Enfim, talvez fosse mesmo a melhor solução - Pensei - Ao mesnos me livraria das incomodas botas que causavam-me imensas bolhas, provavelmente por fornecerem-nas dois números menores ao que também deveria ser. Nesse quesito eu e o almofadinha nada  devíamos um ao outro.

-Ok! Estão aí! – Respondi jogando o calçado no banco.

Assim que abandonei a fábrica peguei um coletivo que me largou na estação ferroviária. De lá para casa mais hora e meia num ônibus apinhado de gente até descer no meu ponto, defronte à farmácia – “Hoje eu vou escrever” Disse comigo mesmo à caminho de casa, afinal eu gostava de escrever quando alguma coisa me emputecia. Ah sim! Também me julgava um escritor, sem talento é verdade, mas escritor. Livros publicados mesmo que fracasassados? Não, nenhum, eu er apenas um sujeito que peregrinava e deixava cópia de contos pelas editoras e jornais de bairros com um ar de cão pedinte, vadio, porém jamais obtive algum retorno. Talvez nem lessem o que eu escrevia e jogassem meus textos  na lata de lixo assim que lhes dava as costas..

E foi com esses pensamentos cheguei ao portão de casa e entrei pelo pequeno jardim e pressenti algo estranho - O safado do Jason não estava lá para me receber - Jason era o meu cão, enorme e mentalmente retardado,  Jason vivia dando cabeçadas por todos os cantos, um destruidor nato, principalmente das roupas estendidas no varal. Nele,  tudo eu podia suportar, menos a sua passividade com os gatos da vizinhança e a promíscua liberdade que lhes dava para que lambessem o seu rabo grosso e peludo. Ah, aqueles gatos!  Eu ficava furioso ao ver as pragas amotinadas pelo meu quintal, tagarelando entre si, algumas vezes com longos e agudos miados, talvez até trocando informações  sobre a movimentação do meu desmiolado cão.

Entrando em casa tudo permanecia da mesma forma quando saíra para trabalhar. Os quartos  bagunçados, na sala o chão sem encerar e  na pia da cozinha uma montanha de engorduradas louças. Procurei por Zelda, afinal ela deveria ter explicação razoável para tanto desleixo.
Fui para o quarto, nada! Nenhum vestígio dela. Abri o guarda-roupa e seus vestidos e blusas haviam desaparecido. Ao dar meia volta  percebi uma folha pousada na mesa de cabeceira.

"Querido Zig, foi impoçível continuar assim. Minha vida com você se rezume em lavar e paçar roupas, alem da limpesa da casa que tem que pareçer um brinco. Você abuzou demais de mim. Beijos! Até um dia.
Z"

Fiquei olhando para o inacreditável bilhete; Zelda gostar de assinar o seu nome com apenas a letra “Z” assim como o seu ídolo "Zorro". Bem, de resto eu já me acostumara com as trocas das letras, principalmente o  Ç, S, e o Z.
No fim do bilhete a última observação – “Estou levando O Jazom, pois sei que você não toma conta dele direito”.

Foi dessa forma tanto melancólica que ambos saíram da minha vida. Não mais teria a companhia da balzaquiana Zelda e nem do cão que, se humano fosse bem poderia ser taxado de esquizofrênico ou lunático.  Com muita dificuldade dormi. Ao amanhecer sozinho, sem a voz de Zelda reclamando de algo, sem os frenéticos e inexplicáveis latidos de Jason, entrei em colapso. O que poderia fazer além de lavar as louças e arrumar a casa? Chamar a vizinha para saber da sua vida com o marido ou o aproveitamento das crianças na escola do bairro era uma opção? Que merda! 

Passava das 13hr quando sentei pra almoçar. A casa estava limpa, as louças lavadas, e até o chão encerado. Procurei na geladeira e em vasilhas plásticas encontrei prontos o arroz, feijão e alguns pedaços duma lingüiça calabresa mal assada. Não, eu não iria almoçar. Irritado, tirei do armário  da cozinha um garrafão de vinho tinto “Sangue de Boi” que comprara na mercearia há uns poucos dias.  Talvez passasse das nove da noite quando  quando 3/4 do volume do garrafão se esvaíra. E isso significava que eu havia bebido demais. Num impulso tentei me levantar da cadeira da cozinha e tudo girou ao meu redor - Esbocei alguns passos e iria até a gaveta do armário do banheiro à cata de comprimidos pra dor, mas a deficiente coordenação não me permitiu ir muito além. Atirei-me ao sofá e trazendo curvo o tórax coloquei a cabeça entre os joelhos – Foi pior; O cérebro latejava como estivesse sendo martelado. Eu podia sentir cada pancada dos pinos penetrando as mãos de Jesus –

Deus! Eu jamais experimentara dor tão intensa. Aliás, eu até rezara dois padre nossos para me livrar dela, porém Deus deveria estar de folga ou em horário de janta, não sei ao certo, só sei que de nada adiantou. Eu sentia a cabeça massacrada e estava ao ponto de enlouquecer quando por desabafo evoquei:

-Satã, eu faço um pacto com você. Quer a minha alma? Livre-me dessa dor infame – Roguei em alto e bom som. Talvez as ferroadas em meu cérebro tivessem me afetado os miolos e eu continuei pedindo ao vento:- Também quero um emprego bom, a burra da Zelda de volta e o cabeçudo do meu cão– Pedi com voz mole.

Repentinamente o meu corpo incendiou, e eu me senti tostado, uma pizza saindo do formo à lenha. Antes de desfalecer lembro-me de ter vomitado no esgarçado tapete da sala.


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TRIMMMMMMMM... TRIMMMMMM......TRIMMMMMMM  - Era o maldito telefone que me acordava às 8 da manhã.

-Merda! Ainda não cortaram essa porra! – Ruminei. As contas estavam com três meses de atraso. Levantei com um gosto de papelão na boca e a uma sensação de ter a cabeça três vezes maior do que era. Peguei o telefone.

-Alô, é o senhor Zig? – Perguntou-me um sujeito de voz nasalada.

-É – Respondi mal humorado.

-Senhor Zig, quem fala é Afrânio, da Editora Newdymon. Gostamos muito dos seus contos e gostaríamos de publicá-los. Se tiver interesse poderia passar em nosso escritório para conversarmos melhor. É possível? Ah, nós mudamos de endereço – Finalizou -

-Claro! Claro! – Retruquei mais atencioso – Anotei o endereço da Newdymon e desliguei. Pensei sobre a ligação; Só agora eles davam retorno pros mais de 20 contos que lhes enviara há mais três anos.

Ansioso, não perdi tempo com outras divagações. Tomei banho e saí de casa vestido no meu melhor terno: um obsoleto modelo de ombros quadrados, bem ao estilo dos anos 70. Chegando à editora fui atenciosamente recebido pelo Sr. Afrânio. Depois de algumas amabilidades, cafezinhos e burocracias saí de lá com um contrato assinado e um novo nome artístico; Zig Borowski. Também assumira a obrigação contratual de apresentar num prazo de 12 meses outros 20 contos inéditos para um outro livro. O acordo, a meu ver, foi  em condições satisfatórias - uma renda mensal de 4.500 pratas, mais uma porcentagem fixa caso o livro superasse os 10.000 exemplares.  Antes de sair de lá e  atendendo o meu pedido a Newdymon providenciou um cheque no valor de dois salários - Finalmente o homem lá de cima começava olhar por mim. – Sorri –

De volta para casa pensava no vomito no tapete; Seria nojento limpar aquela coisa ressecada e mal cheirosa. E além do mais eu estava com um belo cheque no bolso  e não deveria me preocupar com os sapólios ou desinfetantes. Convicto, fui atrás dona Ernestina, faxineira das boas e que residia no início da  nossa rua.
Chegando ao seu portão bati palmas e fui atendido por seu filho - um pirralho 9 nove ou 10  anos - Como não estava, deixei o recado para que sua mãe desse um pulinho no núemro 420 pois tinha um bom serviço para ela. – Foi estranho, mas me sentia acima da carne seca ao falar com o guri que,  espantado só me olhava.

Chegando em casa  qual não foi minha surpresa ao ver Jason latindo no portão?  Ele parecia feliz ao me rever e o seu rabo se agitava mais que nunca.
Entrei e dei umas tapinhas na sua imensa cabeça e ele pulou em mim sujando-me com as patas, tanto a calça como o paletó do terno. Não liguei, estava feliz ao reencontrar o safado. Demonstrávamos  mútua afeição quando ele percebeu os gatos entrando pelo jardim. Foi o suficiente para desinteressar de mim e saltitar feliz ao encontro daqueles felinos pavaorosos. Ainda eu o olhava e ele ameaçava avançar nos animais, mas os gatos não estavam nem aí com ele não dando bola para os seus latidos.
Outra surpresa; Na sala,  Zelda me aguardava num vestido amarelo canário –
Em suas trêmulas mãos um outro bilhetinho. Ela o deu para mim.

“Zig! Me desculpa amor, Eu não sei onde estava com a cabesa para tomar aquela desição. Me perdoa amor, eu te amo muito! – Diziam as frases escritas por uma caneta Bic com a  tinta falhando –

Assim que terminei fixei-me nela por alguns segundos e lhe abri um sorriso. Foi o sinal que aguardava para atirar-se em meus braços. Seus lábios carnudos avidamente procuravam minha boca enquanto duas grossas lágrimas despencaram daqueles bonitos olhos escuros.
Surpreendentemente a casa já estava impecável. Tudo limpo, lavado e cheirado á desinfetante de lavanda – Nos atracamos novamente – Foi uma tarde mágica e fim de noite melhor ainda, talvez uma de nossas melhores trepadas. Depois pegamos no sono.

Repentinamente acordei e me senti em estado febril. Levei a mão sobre a testa e ela parecia em brasa. Um cheiro estranho  invadia o quarto. Olhei para Zelda e ela roncava como uma porca. Era um ronco estranho e finaliza num longo e pavoroso assovio. Levantei e fui para a cozinha – eu precisava urgentemente de água gelada – Após uns três copos eu voltava para o quarto quando ao passar pela sala  vi e o show de fumaças coloridas. Jesus Cristo! O que era aquilo? Sonho ou pesadelo?

-Zig, conforme o que combinamos... estou aqui – Ele disse, grave, austero.

Eu olhava para ele e tudo pareceu inacreditavelmente surreal. Eu sempre imaginei satanás como aquele da minha infância, vermelho, par de chifres, tridente, capa engra  e uma feição aterradora - Eu me enganara - Bem afeiçoado, barba grisalha e voz de galã, Satanás mais parecia um Brad Pitt cinquentão. Magnânimo e autoritário olhou-me friamente naqueles olhos azuis e sentado de pernas cruzadas na minha poltrona favorita inquiriu:

-Está pronto Zig?

-Pronto? Pronto pra que?  - Eu tremia. Terminara o encanto

-Zig... Zig! Com o diabo não se brinca! – Advertiu-me. Momentaneamente os seus olhos ganharam uma tonalidade rubra,  olhos de rubi.

-Não, não me leve a mal, mas não estou brincando... senhor, senhor, senhor..-  Nervoso eu tentava fazer-me de desentendido. Talvez o diabo fosse compreensivo.

-Demon! Charlie Bob Demon – Apresentou-se autoritário. Os seus olhos rubis me fulminavam. Eu tinha que falar alguma coisa.

-Pois é senhor Bob, num mundo de tanta gente ruim, desalmada e assassina, o senhor vem cobrar dívidas de um pobre e desafortunado trabalhador? – Claro, tolas chantagens emocionais. Restava apenas saber se satã era sensível.

-Zig, Zig! Não seja tão dramático e chantagista. Aliás, o nosso acerto nada tem a ver com essa coisa da humildade do trabalhador. Estou aqui apenas pelo nosso trato comercial. Toma lá, da cá, lembra-se? - Depois continuou:

-Para mim tanto faz o sujeito ser malandro, punguista, médico ou um metido a escritor. O fato é que meus serviços têm um preço e eu apenas estou cobrando. _ Disse polindo as enormes unhas numa camisa de manga curta num estilo florido e havaiano.

-Mas, mas, mas... - Eu tentava replicar, convencê-lo que eu era um zero à esquerda, um sujeito desimportante para o inferno, porém com o terror a voz quase não se ouvia.

-Sem, mas, mas, mas! Palavra é palavra e têm que ser honrada! – Replicou num riso diabólico. O cheiro de enxofre que desprendia dele era insuportável e impregnava a casa dum olor acre. Muni-me da derradeira coragem e apelei:

-Poxa vida sr. Bob Demon, o senhor não poderia levar em consideração que me encontrava completamente embriagado e fora do meu juízo perfeito?

-Oras, oras Zig!  Cu de bêbado não tem dono... não é assim que dizem entre vocês? Então.. estou aqui para te provar ao contrário. O teu têm e é meu!  – Sentenciou arrogante

-Mas seu Bob, por favor, me dá mais uma chance. O senhor sabe que o álcool nos faz cometer loucuras. – Ele me olhava impassível. Eu tentava ganhar tempo, gozar de sua simpatia


– Façamos o seguinte Sr. Demon! Esqueçamos essa dívida e eu vou ao mercado buscar um bom vinho italiano e discutiremos o assunto com mais calma O que acha?  –Sim, foi uma proposta pra lá de imbecil, contudo era a minha cabeça que estava a prêmio -

-Nada disso Zig! Se afrouxar  com você,que credibilidade terei junto a outros devedores? E olha, eles são milhões por todos os cantos dessa terra de Deus! - Justificou-se.

Pareceu-me estranho ouv´-lo  falar em Deus com tanta cerimônia. Então  levantou-se da minha poltrona  e a transformação manifestou-se. A aparência de Brad Pitt cinquentão foi consumida e em seu lugar chifres pontiagudos cresceram logo acima da testa. Sua pele, antes clara,  agora se tingia de vermelho e sua boca lançava labaredas que me tostaram alguns pêlos do peito. Agora sim o Sr. Charlie Bob Demon era o satanás, a imagem da minha infância.
Em pé, Bob abriu a sua manta  negra  com adornos vermelhos e eu vi o seu coração exposto e ladeado  por chamas que eram expelidas do seu peito..

-Venha para mim Zig! Venha! – Ele ordenava. - Venha! - Charlie Bob Demon insistia

-Não, por favor! Agora não seo Bob! – Eu me debatia, transtornado – Agora não! Agora não! - Eu suplicava. Não...não...não


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-Acorde homem! Acorda! Ta ficando louco? – Zelda me dava pontapés por debaixo do cobertor

Olhei no relógio, assustado – Eram 3 horas da madrugada –

-Que merda, Zelda! Eu estava tendo um pesadelo com Satanás! – Disse com o peito arfando enquanto o  suor me descia no rosto

-Ah! Larga de bobagens homem! Sonhos com o Diabo? Era só que me faltava – Exclamou Zelda.

Depois ruminou um tanto aborrecida e sonolenta: -  Agora vê se dorme e deixa a gente dormir. Você tem que levantar cedo! – Dito isso virou para o lado oposto onde eu estava e em minutos roncava novamente.

Fiquei olhando para ela e ainda sentia meu corpo febril e exausto - Parecia que eu havia tomado uma surra de um peso-pesado – Levantei lentamente e fui á direção do bolso da camisa e não havia qualquer cheque em seu interior. Confuso caminhei até à janela do quarto e a abri; eu precisava de ar, de brisa fresca. Olhei para a noite e ela estava bela. Ainda confuso exalava um ar gélido enquanto minhas vistas focavam as estrelas daquela noite de lua clara e que resplandecia de forma que jamais vira. Num céu forrado de astros  procurei pelo  Cruzeiro do Sul e o seu conjunto de estrelas era fabuloso. Esqueci as estrelas e fixei-me num canto perdido do quintal e me surpreendi ao reparar que Jason estava fora da sua casinha.  Firmei as vistas ainda mais e procurei pelos habituais gatos, mas não os achei, pois talvez até eles ficassem com o saco cheio das boboseiras do Jason –   Olhei para o meu cão e ele para fazer gracinha rastejava o corpo na grama do jardim e depois  esfregava o dorso na relva enquanto emitia pequenos ganidos – Aquilo tudo era novidade para mim, e talvez Jason estivesse em comunhão com a natureza

-Jason, vem cá! – Chamei-o carinhosamente estalando os dedos.

Assim que me ouviu ele se levantou daonde estava e a claridade me permitiu ver os seus movimentos – E lá vinha ele, ele e o abano do seu imenso e peludo rabo –
Assim que chegou próximo  Jason levantou o focinho e eu vi o seu olhar –  Os olhos faiscavam e estavam vermelhos como tomates maduros. Um calafrio me  percorreu. Foi então que entendi que Jason havia comprado a briga por mim e assumido o meu posto. Se dúvidas eu tinha, agora nehuma mais; O cachorro era o melhor amigo do homem.
Claro, como seria de se esperar fiquei apreensivo tanto pelo jason quanto à  minha potencialidade, afinal e de alguma forma o Sr. Demon achara que a alma do meu cão fosse mais interessante que a minha. 

-Valeu Jason! Devo-te essa! – Disse-lhe virando o polegar para cima e olhando praqueles olhos tão vermelhos como os carros de Maranello– Repentinamente a tonalidade rubra foi perdendo a coloração até voltar à seu castanho natural.Eu nada podia fazer.

Possessão findada e a alma entregue Jason abana o rabo e dispara na direção de uma das roseiras do jardim – Ele ouvira longos miados dum gato recém chegado –
Assim que Jason o descobriu juntou-se  a ele. Em seguida o bichano postou-se atrás do meu cão e lambeu o seu rabo peludo e grosso. Eu ri miseravelmente daquilo tudo. Eu tinha que voltar para a cama e tentar dormir pelo menos mais 3 horas, pois ás 6,30 eu tinha compromisso com o ônibus e a necessidade de arranjar um emprego.

Voltei para a cama,  deitei-me e suspirei fundo.  Adeus aos best sellers, salários, comissões. Fora uma noite insana, sobrenatural, eu conhecera o demônio e ele me vencara ao tirar-me tudo e ainda de quebra levar a alma do meu perturbado cão. Claro, eu deveria saber; O diabo jamais faz negócios para ter perder. 
Sorrateiramente ajeitei-me debaixo do cobertor e tentei ser cuidadoso para não acordar Zelda novamente.  Sutilmente ao me encaixar nela cutuquei o seu rabo com um dos joelhos - "Humm" - ela resmungou e eu, esperto, não fiz qualquer outro movimento. Depois fiquei olhando para o teto como se  tentasse vislumbrar algo - Nada – Fechei os olhos, talvez eu procurasse Deus e sua semelhança com Sean Connery. Eu tentava dormir e não conseguia, mas apenas pensava e os pensamentos me corroíam e eu questionava aquela loucura toda. 

Então só me restou torcer para que não demorasse a pegar no sono. talvez fosse aquele o momento de demonstrar alguma fé e eu rezei para quando o relógio me despertasse às 6 da manhã eu pudesse dar sorte e encontrar um emprego decente. Mas não era só isso. Não, eu também rezei e acima de tudo que eles estivessem por lá quando eu voltasse – Quem sabe eu encontrasse no portão uma Zelda apaixonada, que me beijasse com fúria naqueles lábios vermelhos e carnudos. Ah, como seria bom! E eu também  estaria feliz e a faria girar sobre o próprio corpo só para ver a sua beleza numa  saia  negra com quatro dedos acima dos joelhos. Meus olhos cintilariam e eu diria um “Uauu” e sorriria e daria uma palmadinha em seu bumbum arrebitado e sussurraria um "Eu te amo" no seu ouvido esquerdo. Ela, vaidosa,  retribuiria com um olhar de "cara, você é o sujeito mais incrível desse mundo" e nos acariciaríamos e minhas mãos percorreriam suas curvas e seus olhos faiscariam de desejos e paixão.

Jason, o nada implacável exterminador de gatos também sorriria, dessa vez diferente, olhos grenás, olhos que faíscavam q que àqueles gatos ainda teriam o desprazer de conhecer. Dessa vez eu me compadeceria dos pobres bichanos. E a vida continuaria,  assim como persistem os passos que nos levam sempre para algum lugar. Sim, em minha mente continuavam fervilhando as dúvidas e talvez a minha única certeza fosse de que o diabo preferiu o  meu cão a mim. Sim, o diabo me rejeitara,  e talvez a única salvação do heróico Jason fosse algum exorcismo com algum padre acostumado com o diabo. Contudo antes que isso ocorrese eu gostaria de ver como ele se sairia com aqueles gatos.

Até lá ainda tínhamos algum tempo.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O Mocassin

I – FOGO CRUZADO; AMOR E PRECONCEITO -


- Manoel! É sábado e preciso que me empreste algum dinheiro para tingir meus cabelos -

-Dinheiro pros cabelos? Tu pensa que sou banco? Quantas unhas e pés fez nesta semana?

-Seu desalmado, não te interessa! Por que não me falava isso quando eu ainda tinha curvas e um belo bumbum empinado? – Choramingou Glória, manhosa.

-Mulher, cada coisa no seu tempo. Naquela época eu era capaz de dar tudo por você, até assaltaria um banco se fosse preciso.

Glória o olhou surpresa - Ele, num ar de zombaria a fitava pelos cantos dos olhos. Os olhos cansados de um carregador de mudanças numa média empresa transportadora.

-Hum... Ainda bem que você  não vai levar! – Resmungou travando o bolso com a mão diante a brincadeira dela em assaltar o seu bolso.

-Ah amor! Cinquenta reais ao menos. Olha como meu cabelo está feio –

Glória tentava espichar os cabelos descoloridos, um tom quase avermelhado na parte de cima juntando com o negro da raiz que, também não escondia alguns fios brancos.

-Jesus Cristo! Já percebi que não será neste ano que vou comprar os malditos sapatos italianos –

Brincou Manoel Pereira ao tirar da carteira uma nota de cinquenta e deixar guardada outra nota do mesmo valor. Não, não havia brincadeira nisso e um dos seus desejos nessa vida era um dia ter dinheiro suficiente para comprar um belo par de mocassins italianos.

-Sonhos e fantasias. Somos unicamente isso!  – Exclamou ao ver a mulher lhe dar as costas para ir ao salão da Justina, a cabeleira mais barateira do lugar.

Antes que saísse, ranzinza como sempre o marido lhe perguntou:

-Cadê o safado do seu filho?

-O Pedro?

-Uai, larga de ser besta mulher... E nós temos outro?

-Ah, o Pedro Augusto ta por aí batendo perna. Esse moleque não faz outra coisa que não sair do rabo de saia da mulherada. Deve estar enfurnado na casa duma “dessazinha” por aí – Replicou.

Assim que ela se foi, Manoel sentou-se na cadeira da cozinha e diante de um café morno fincou os cotovelos na mesa e se pôs a pensar no que se transformara a vida. Quarenta e dois anos incompletos, pais falecidos e um filho que agora aos dezessete não se animava a bucar trabalho. E revivendo esse emaranhado de coisas viu-se tomado num desalento, um desencanto com a existência. Novamente abriu a garrafa térmica e engoliu mais um gole de café morno e rememorou parte de sua vida. Era como se ela fosse fragmentada, assim como peças de teatro. Relembrou os tempos do namoro. – Nisso ela tinha a razão – Glória fora um pedaço de mulher, dessa capaz de deixar qualquer homem excitado quando transitava naquela justa calças jeans, deixando sob o brim as marquinhas da sua diminuta calcinha.

Recorda também que o tempo, indelével, deixou marcas em ambos. Ele, à época morava com os pais e bem distante de onde se encontram agora. Recém calouro, freqüentava o seu primeiro semestre nos bancos duma faculdade de direito: seria advogado. Glória, manicure das boas, trabalhava num salão próximo ao cortiço onde morava. E o interesse por aquela mulher não tardou – Ansioso, ficava à espreita aguardando o momento que chegasse para o trabalho, tendo para isso que passar à frente de sua resid~encia. E ela toda faceira e percebendo que Manoel  a fitava devolvia o galnteio um excitante sorriso que expunha uma dentição alva e perfeita. - “Bom dia”- Ele a cumprimentava – “Bom dia” ela retribuía. E isso era mais que suficiente para que ele ficasse feliz e fosse pra faculdade cantarolando “Estúpido Cupido”.  Do interesse sensual para um estreitamento afetivo foi questão de pouco tempo. Apaixonado pediu-a em namoro, no que foi aceito de imediato – Foi o ponto de partida para os problemas se iniciarem. Para os seus velhos a união se traduzia num tormento inigualável: Conservadores e preconceituosos jamais consentiriam que o filho se relacionasse com uma pessoa humilde, favelada e sem família, já que seus pais residiam  nos sertões de Alagoas,
E foi desse jeito abrupto que os sonhos de Manoel Alberto começaram ruir. Os mocassins italianos ficavam distantes, inclusive uma cama para dormir.

-Ou tu largas a moreninha queimada ou vais viver às tuas custas! – O pai de origem portuguesa sentenciou, como sempre arrogante.

E Manoel, talvez pelo mesmo orgulho adquirido em berço jamais admitiu que qualquer pessoa apontasse os seus caminhos ou que escolhessem o que ou quem servisse para ele. Não ele, um futuro advogado que tinha ótimas noções sobre os direitos dos cidadãos. Claro, ao optar por sair de casa suas prioridades mudaram drasticamente, relegando os estudos para um segundo plano, afinal, teria que prover seu sustento.

Inicialmente, mas ainda animado alugou um quartinho no mesmo cortiço onde Glória o apresentou. Logo cedo rumava para o centro a procura de empregos que pareciam desistir  dele, afinal, sem jamais ter enfrentado o batente não adquirira qualquer qualificação, muito menos experiências. Diante das dificuldades e estando próximo ao fim o valor que economizara ao sair de casa foi obrigado a engolir o orgulho e aceitar a proposta de Glória para que fossem morar juntos no quarto dela,   economizando assim  o dinheiro do outro aluguel. Sim, era amor, o amor de Glória que propunha bancá-lo até que encontrasse alguma ocupação. E assim foi. Vivendo com menos que o necessário ela o sustentou por quase um ano até o dia que ele encontrou emprego Nesse meio tempo ele se penalizava ao vê-la sair para o trabalho arrastando o corpo, afinal  era mais que comum voltar do trabalho às 21 horas. Portanto um complexo da culpa o atormentava até o dia que conseguiu um serviço. Retornou para co um sorriso estampado nos lábios e até comprou  um garrafão de vinho ordinário para comemorem o progresso.

-Ao nosso futuro! – Brindou manoel num copo americano.

-Ao nosso futuro ! – Retribuiu Gloria  na colisão dos copos

Mas o emprego de “catalisador de negócios” não perdurou mais que dois meses. Ele apenas desperdiçara tempo e sola de sapatos com aquela placa nas costas onde se podia ler “Compra-se ouro. Paga-se bem”. Foram dois meses de agonia. Os passes dos ônibus continuavam financiados por Glória e sem que ela ou ele vissem a cor de algum dinheiro. “As vendas não vão bem” disseram-lhe os donos do tal negócio, dois sujeitos corpulentos e mau encarados. Sentiu-se enganado, pensou em procurar a justiça do trabalho, mas como se nem o registraram? Metera-se numa arapuca e parecendo os sujeitos um tanto perigosos achou melhor cair fora sem mais complicações.

Depois da demissão a sua vida continuou incerta, pulando de emprego em emprego até se firmar nesse que está até hoje, há quase 20 anos.

-Nossa! Mas isso foi há tanto tempo! – Murmurou – Ah meus mocassins italianos – Disse num tom conformado –


II – O FILHO SE CANDIDATA AO SUBMUNDO -


-E aí garoto? O que tu queres por aqui no cafofo do Turco?

“Bira, o Turco” era o bom da boca, traficante maior da favela e da região. Nada acontecia naquele lugar que não fosse do seu conhecimento.

-É o seguinte seu Turco, to precisando trabalhar, faturar uma grana pra ajudar em casa. Sabe, o maior sonho do meu velho é ter um par de mocassins italianos...

-Garoto! – Cortou o traficante - Tu ta querendo se meter em coisa perigosa? Se os meganhas ou meus concorrentes botarem as mãos em você, vai estar frito e não vou poder te ajudar. É paletó de madeira e sem botões! Entende isso?

-Claro que sim seu Turco. Mas, aposte suas fichas em mim. Sou um sujeito inteligente – Disse autoconfiante e num sorriso de quem sabia o que dizia.

O traficante fitou-o por alguns segundos. Havia algo naquele garoto de pernas tortas que o fascinava. Era como se visse refletido nos seus 17 anos.

-Bom. Vamos fazer uma experiência. Se der certo, te efetivo no cargo. Se não, tu desce a ladeira e volta pras tuas negas.
Seu nome é Pedro, filho do seu Mané e da dona Glória, isso?

-Sim, é isso – Respondeu Pedro. - De fato, o Turco sabia de tudo que se passava debaixo do seu nariz. Não seria de se duvidar que Pedro nascera após os seis primeiros anos do casamento dos pais.

-Combinado então! Primeiro vamos te dar um nome apropriado. Pedro é muito surfista pro ramo – Turco olhava pras pernas tortas do garoto – É isso! Em homenagem às suas pernas te chamaremos de “Garrinchinha”.

Selado o vínculo de trabalho Turco sorriu, deu tapinhas em suas costas e abraçou o seu novo funcionário. Ainda sorria quando procurou nos bolsos de notas graúdas e escorregaram três notas de cem reais nas mãos de Garrinchinha. – Era o seu primeiro adiantamento de salário –

-Você começa agora! – Disse ao garoto ao enfiar na sua cabeça um gorro enorme com o brasão do Corinthians. Sim, Turco era corintiano fanático. Dentro dispôs algumas pedras de crack e muitos pacotinhos do pó branco, todos devidamente embalados e lacrados.

-Seguinte Garrincha, tu vai levar isso na Rua dos Tucanos 420 – Lá um sujeito chamado Louro Zé vai receber a muamba. São duas mil pilas. Se o malandro disser que paga depois tu não aceita e volta com o bagulho. Entendido?

-Entendido! - O garoto concordou. Ainda incomodava o gorro corintiano, justo ele, um fanático palmeirense! Antes que saísse ouviu do traficante:
-Hum... o sonho do teu velho é um par de sapatos? Hum.. é justo ter sonhos. Garoto, te prometo, haja o que houver seu pai ainda terá um par de mocassins italianos – O garoto apenas sorriu. Ele sabia, todos sabiam; Turco jamais faltava com a palavra nas suas promessas


III – O PRÓSPERO MUNDO DOS NEGÓCIOS –


Os negócios iam bem, muito bem. Garrinchinha ganhara a confiança do chefe. Eficiente, tornara-se o melhor pombo correio de Turco, e jamais voltava para o reduto com as mãos abanando ou tapeado ou alguém – E além do mais o garoto se acostumara com o gorro do “timão” e nem ligava pro sarro que a molecada tirava quando descia apressadamente pelas vielas.

-Ah, porquinho fajuto! – Gritavam para ele. Pedro parara e ameaçava correr ao encalço deles que saiam num desabalada correria pelas vielas miseráveis.

O Turco, reconhecendo sua eficiência passou a gratificá-lo melhor. Garrinchinha queria sempre mais: dera de cabular aulas para traficar à noite: O serviço rendia melhor, pois a polícia estava mais longe. Ainda mais que fora na noite que conhecera os caras mais maneiros e as putas mais sacanas, todos e sem exceção lhe ensinaram-lhe coisas. Porém ao retornar para casa sentia-se um estranho no ninho, pois a convivência com os pais se atritava ais que nunca. “Será que meu emprego me afasta deles? ’ – Geralmente se perguntava. E outra, se incomodava com as perguntas da mãe que sempre queria saber por onde esteve e com quem andou. Além do mais eles ainda não sabiam que o filho trabalhava para o Turco. Sobre o pai, o Manoel, parecia que o velho não se importava com ele e nem com a falta de proximidade – Do velho só sabia que voltava tão exausto do trabalho e que o muito que fazia era papear um pouco com a mãe, engolir rapidamente o arroz, feijão e o pedaço de lingüiça e dormir para se restabelecer para outro dia penoso. Com dona Glória não era diferente: diariamente, após atender dezenas de pés e mãos não tinha ânimo para nada que não fossem aquelas perguntas fora do alcance do pai, como se já soubesse que o garoto andava aprontando das suas Fora o fato sentava á mesa e jantava com marido para depois se ajeitarem cada qual no seu canto favorito da cama e dormirem. Com ele não, com ele era ao inverso, gostava das madrugas, pipocas e dos filmes das TVs e só tombava corpo após o último deles.

Contudo sua vida não era só o tráfico ou filmes, era família, mas sentia falta dela e duma boa convers, ms não das perguntas insistentes ou dos pais roncando cada qual eu seu lado da cama. Porém não havia família ou com quem dialogar, pensou em pedir conselhos pro Turco, mas deduziu que seria difícil tratar de emotividades com um chefão de tráfico. Lembra da primeira vez que fumou maconha, obvio oferecida por ele – “Traga e prenda no peito, vai gostar” – Ele dissera. E assim ele o fez, e a sensação de paz entorpeceu o seu corpo. Depois veio a vontade de rir, um riso que nunca foi comum em seu rosto. “Ei rapazinho, vá com calma!” – Foi o que o Turco lhe disse ao pedir naquela mesma noite um segundo cigarro. Porém o mal já estava feito e a partir desse momento passou a curtir o baseado regularmente, comum até encontrá-lo zanzando pelas vielas com um cigarrinho de maconha preso entre os lábios. Todavia o escancarado acesso às drogas o estimulava às experiências novas e com drogas mais pesadas – Primeiro optou pela cocaína – A sensação foi terrível; o coração disparava como bateria de escola de samba, para depois vir àquela sensação de euforia e dum poder absoluto. Porém o dinheiro não dava para sustentar essa droga, mesmo por um preço especial. Daí não houve outra saída a não ser viciar no crack, forma menos pura da cocaína e com um poder infinitamente maior de gerar dependência. O efeito do crack era mais rápido, instantâneo, pois a fumaça chegava ao cérebro com velocidade e potência extrema. Desde a primeira fumada sentiu um prazer intenso e efêmero, urgente de repetição. Aquele sim acabou se tornando o seu vício favorito e talvez gastasse mis com o crack que cocaína, visto a alarmante rapidez que se consumia a pedra.

-Menino, menino, você está se enterrando de cabeça, deixando a coisa ir longe! – Turco o alertava. Ele percebia a olhos nus o quanto o garoto estava se tornando dependente da droga – Geralmente o abastecia para depois admoestá-lo:

-Garrincha, malandro que é malandro não se droga, trafica!

Enfim, mesmo que desse ouvido agora já era tarde, e Garrinchinha não conseguia parar, afinal, seguira por um caminho sem volta, estrada de mão única sem direito a retorno.

Com o tempo os seus pais vieram, a saber, porém Pedro, alias Garrinchinha causava mais o sentimento da apreensão que propriamente da comiseração. Passaram-se quase três anos, e ele, agora com 20 se via transformado num homem frio e calculista. O garoto esperto cedera lugar para um indivíduo que crescera consideravelmente em músculos e envergadura. Quem o visse diria que aquela aparência cansada e de olheiras profundas se escondia um homem de mais de 30 anos. Convém salientar que a transformação no plano físico veio acompanhada pela quebra da fidelidade ao patrão, agora o chefe de um trapaceiro que lentamente se tornaria pedra no sapato. E isso porque Turco fora avisado por um dos policiais de sua lista de propinas que Pedro comprava drogas mais em conta de outro fornecedor, passando a traficar essa droga por conta própria - O Turco percebera algo estranho e começava desconfiar já que as pedras não vendidas retornavam para o cafôfo. Será que o garoto estará aprontando alguma?  - Ele se perguntou – Ainda mais pelo carinho que nutria por Garrincha que por duas ocasiões retornou com as mãos abanando alegando que não recebera dos clientes. Na primeira, Turco aceitou sua alegação mesmo sabendo que poderia não ser totalmente verdadeira. Com a premonição aguçada, Turco ainda tentou alertar Garrincha que no mundo das drogas credibilidade e a lealdade são primordiais para o funcionamento dos negócios, e que permitir exceções poderia abalar a sua reputação diante da comunidade.

Porém a gota d’água foi o zum de que suas drogas estavam sendo batizadas e que não mais causavam o efeito de antes. Claro, Garrincha não contente de revender muamba de outro fornecedor dera de misturar substâncias á própria cocaína do Turco, aumentando o volume e embolsando diferença. Ainda alertado pelo policial corrupto e em conluio com um dos seus usuários fez o teste na muamba que Garrincha havia entregado. Com tudo em mãos Turco comprovou a adulteração. – Agora com a certeza de que estava sendo passado para trás passou a acompanhar os passos de Garrinchinha até descobrir que esse havia montado um pequeno laboratório num dos cômodos da casa de uma prostituta.
E eles o descobriram numa noite em que Pedro e a prostituta foram jantar numa churrascaria. Daí ficou fácil de entrar num quarto mal conservado de uma casa no centro velho da cidade. E era ali na casa da meretriz que ele rebatizava toda a droga que Turco lhe confiava, adicionando bicarbonato de sódio e talco inodoro, o que não modifica a sua textura e aparência. 


IV – O MOCASSIM ITALIANO –


Não tardou e naquela mesma semana o seu Manoel e dona Glória caíram em si ao testemunharem a degradação física e moral do filho ao flagrarem-no consumindo cocaína dentro da própria casa. E o sentimento de culpa por tantos desencontros e distâncias os desesperou, e ele tudo fizeram,  até levaram-no para uma igreja evangélica que frequentavam – Era obra de satanás – Diziam-se – Foi tudo em vão. Agora sabiam de tudo, mas viver ali e sob a tutela de Turco significava silenciar-se. E eles pretendiam sobreviver, pois permanecer na comunidade significava não quebrar regras, não ter olhos, não ter boca. E o pior; para os dedos- duros um terno de madeira –
Como era de se esperar, os boatos que Garrincha traía Turco começaram a espocar. Ora! Se muitos sabiam, era mais que certeza que Turco soubesse. Preocupados rogaram ao filho que abandonasse aquilo, afinal estava se metendo com assassinos. Nem precisariam alertá-lo – Pedro já o sabia, e melhor que seus pais – Porém, obcecado pelo dinheiro fácil e pelo raro e equipado Mustang 78 que acabara de adquirir, preferiu nem tomar conhecimento dos pressentimentos dos seus velhos. E sua impetuosa teimosia fez seus velhos aguardarem pelo pior. E o pior veio numa gélida madrugada de outubro - Pesadas batidas na porta sobressaltavam o sono do casal -

-Seu Manoel hoje é o dia do seu aniversário, certo? – Disse Turco ao ser atendido por este.

Seu Manoel, apreensivo e sonolento concordou.
Sob a precária claridade vinda do alto do poste Turco lhe fez a entrega de uma caixa embrulhada por um colorido papel presente. Os dizeres impressos no cartão pareciam de ser de um idioma que ele desconhecia.

-Por favor, abra seu Manoel! – Pediu-lhe gentilmente Turco.

Os dedos nervosos do seu Manoel abriram a caixa. Dentro descansava um reluzente par de sapatos importados.

Antes que pudesse compreender e empreender qualquer reação, Turco se antecipou:

-É um presente nosso para o senhor. Cuidamos bem dos nossos vizinhos!

O senhor Manoel o olhava surpreso. Turco continuou:

-Quanto ao seu filho, ele me pediu para dizer que partiu para uma longa viagem e não mais retornará. Apenas disse isso e também que os ama muito.

Após o comunicado e antes de despedir-se do casal solicitou à Dona Glória que fosse buscar as chaves e os documentos do Mustang.
Ao recebê-los meneou a cabeça em agradecimento e apressadamente seguiu pela viela, acompanhado de outros membros da quadrilha.

O casal se olhou angustiado. Arcados um sobre o outro se abraçaram emocionados ao lamentarem a triste sina do filho. Lágrimas pesadas escorriam por suas faces - Eles sabiam o que havia ocorrido.  Trôpegos, agarrados um ao outro ao retornaram para a cama ainda quente. Exaustos, choraram até não haver mais lágrimas e nem o fato para se lamentar. Com os espíritos dilacerados adormeceram -

O dia logo amanheceu e antes dele o seu Manoel já estava de pé. Lá fora os tímidos raios de um sol ainda morno davam-lhe a  certeza que ainda estava vivo. Esse mesmo sol que acabaria por arder nos seus braços de carregador de carroceria de caminhão, dura rotina na labuta que arranca nos suores do rosto ensopando camisetas. No apito do meio dia e para a sua fome haveria a marmita aquecida num equipamento de banho-maria.
Depois dum refrescante copo de água gelada o serviço voltaria exigir a sua presença e ele olharia para os móveis inertes sobre a caçamba do caminhão e compreenderia que aquele dia teria que ser tão normal quanto todos os outros da sua vida. Sabia que não haveria cerimônia fúnebre e nem as despedidas num velório com meia dúzia de gatos pingados. Lá não estaria o pastor José, a única amiga de Glória, e nem mesmo seus companheiros de suores. Anônimos, ele e a esposa continuariam chorando a perda do filho. De um filho que eles nem sabiam onde se encontrava, ou se no fundo de uma vala dum local ermo ouse  carbonizado num porta-malas de um abandonado Corcel 73.

Como lembrança de um dia tão especial apenas a presença daqueles reluzentes sapatos, um puro par de mocassins italianos.
Certamente ele olharia para a razão de todos os seus devaneios assim como o olha agora, insensível.

Copirraiti19jan2013
Véio China©
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sábado, 2 de maio de 2009

O escritor e o alter ego - Uma morte anunciada


- Que merda!  Por que tem que ser assim? – A pergunta ecoou num canto do bar. E quem a questionou foi um sujeito calvo, barbas grisalhas e que aparentava estar na casa dos  57 ou 58 anos. A queixa é dirigida para um sujeito mais velho numa tom descompensado, ébrio, o evidente sintoma da bebidas ingerida até aquele momento.

O seu aborrecimento poderia ser traduzido como as angústias do escritor ao não mais escrever ( e há muito tempo) coisa que prestasse. Nos momentos sóbrios de sua solidão até que tentou textualizar contos que fossem bons, porém hoje o que o acompanha são apenas ideias confusas e num vocabulário notálgico e chulo, e isso o deixa numa sinuca de bico como se o corpo estivesse entregue às chamas num teatro onde a única rota de fuga apresenta o piscar de numa placa de letreiro em neon onde se lê - Sem Saída -.

E é essa a constatação do próprio fracasso, uma isenção de criatividade que o deixa perplexo e entregue às  lamúrias e aos tapas de luva de pelica da sua herança abarrotada de textos sujos e personagens pervertidos. Sim, talvez a vida estivesse sendo rude com ele,  pois para um escritor reconhecer o seu fim equivale a constatação que sua escrita atingiu o prazo limite da validade.
Claramente há a saudade do ontem, mas os seus  leitores de antes não são os de agora, pois muitos daqueles ainda militam pela vida,   próximos e quem sabe de gordas aposentadorias. No entanto alguns devem ter tido mais sorte ao ostentar nas paredes dos seus estabelecimentos ou consultórios placas indicando os seus nomes e os títulos honoríficos a que fizeram jus.
Sim, para o nosso escritor nada disso se concretizou, aliás, pouco até, e hoje é comum flagrá-lo nos bares das redondezas sustentado pela antecipada aposentadoria por graves problemas hepáticos.
Para ele, contrário de tantos outros, jamais houve a prestimosa esposa  e o jantar das oito ou grana o suficiente para um charme com a amante ardente e os vestidos nas vitrines dos Shoppings Centers.

Não, com ele não, pois a vida lhe foi inequívoca, entretanto foi dele a falha ao não perceber que o mundo mudou, que as pessoas mudaram, e a que a juventude deixou de se interessar por literatura, preocupada talvez com os jogos de computadores e celulares, ou sedente por megas eventos desumanos, assim como as festas do peão e boiadeiro que se espalham nas arenas do Brasil.
Portanto ele sabe e todos não desconhecem que, os que hoje entram em livraria estão mais propensos a adquirir livros de "auto ajuda"  ou aqueles que possam que tratar  de temas fúteis, de amores banais, torcendo os narizes para livros que cheiram à pó, mesmos que esses apontem verdades inexoráveis e historias fantásticas, sejam elas do estilo que for.

-Merda! Por que tem que ser assim comigo? O nosso escritor volta à cena  queixando-se para o amigo. O velho o ouve e se mantem cravado nele ao não lhe perder qualquer  movimento labial. E há estranheza ali, pois o velhote pareceu irritado ao retrucar:

-Ah seu autor ingrato! Você é um daqueles escritores que jamais poderia  estar se queixando. - Refuta atropelando as  palavras que abandonam a boca igualmente ébria.

- Não tenho? Tem certeza que não tenho os meus motivos? – Insiste o escritor.

-Merda! Claro que tenho certeza! – Devolve o sisudo senhor, agora mau  humorado, socando o tampo da mesa,  desequilibrando a garrafa de cerveja, fazendo escorrer o líquido por entre as frestas do madeiramento.

À princípio a cena poderia sugerir um corriqueiro bate-boca entre bêbados num bar, entretanto a ferocidade do tête-à-tête indicava coisa grave e decisiva e que bem poderia lembrar a ansiedade dos julgamentos em tribunais. Aliás, o áspero diálogo flagrado numa mesa de fundo do bar movia criaturas conhecidas de longa data, personas transitantes no mundo da literatura, um universo reconhecidamente egocêntrico e  narcisista. O fato, de inusitado ou insano, dependendo daquilo que se pretendesse ver, oferecia uma única pessoa sentado à mesa.  Sim, era isso. Não havia a figura do interlocutor, mas apenas um sujeito isolado dialogando e esbravejando consigo mesmo, fazendo o uso de sua tonalidade natural ao interpretar a si, e um outro tom de voz  ao estar na pele do fantasmagórico amigo . E as esquisitices não se freavam aí, pois a cada vez que interpretava o colega idoso emoldurava no rosto daquele um par de lentes negras e arredondadas que, sistematicamente era sacado de cima da mesa. Sim, seria cômico se não fosse trágico o monólogo pródigo em cobranças sem sentido, mas que não surpreendia os frequentadores mais antigos do lugar, acostumados às cenas lunáticas e à ficção dos diálogos.

No entanto já é passada a hora de conhecermos o lado engraçado mas, cruel, dessa história que movimenta um sujeito à beira da esquizofrenia. O seu  nome dele é  Onadia Inavap,  um cara solitário e beberrão.
Onadia é um infectado pelo vírus da literatura desde o grupo escolar e dono duma biografia literária que não veste grande importância, salvo se retroagida aos meados da década de 70,  uma época do  “paz e amor” e  dos protestos contra a ditadura militar que agonizava um Brasil saudoso de democracia.
Evidente, naquele tempo o efêmero surgimento de suas letras aos 22, e junto das suas sujas histórias, aliadas às linhas que alfinetavam o regime acabaram o transportando para camadas duma juventude que começava sentir o sabor dos rebeldes. E contestar era ser inovador, era vestir a roupas de modernidade, era ouvir  Zepellin, Purple e Floyd depois de um noviciado com Beatles e Rolling Stones. E foi esse o momento para os meninos das faculdades que, expostos à virulência policial e às borrachas dos cassetetes deram a cara para bater.
Convém salientar que as explosões de protestos foram dolorosamente rechaçadas pelo regime num abrandar que veio ainda mais pela força, com quase nenhuma liberdade para reuniões em pequenos grupos, pois mostrar simpatia por um sujeito com o pé na esquerda era quase um crime; Comunistas! Era assim que os militares tratavam os poucos milhares de manifestantes.
Portanto, com a juventude preferindo megafones aos contos de putaria  o esquecimento do autor se fez tão veloz quanto a sua aparição. Passado mais de um ano da publicação do seu livro " A crônica dos subterrâneos" e abandonado pela rebeldia dos jovens, Onadia se pôs a escrever croniquetas para jornais de bairros, mas causando desinteresse por suas matérias de  linguagem pesada, fato que o tornou a pedra no sapato dos editores, e assim o bilhete azul foi inevitável.

De lá para cá, vivendo às custas de pequenas reedições da sua única publicação passou a criar histórias extravagantes e é com elas que percorre as editoras, entretanto sem jamais lograr êxito. Talvez o desinteresse se dê pelo seu excesso de bebida e as confusões da sua isenção de bom senso. E o mais  provável é que sua falta de discernimento tenha sido companheira desde os primórdios ao criar  histórias para um único personagem que, diga-se, acabou por se tornar tão maldito quanto ele. E ao conceber o  Sr. Nachi, (descaradamente o seu alter ego) jamais vislumbrou que a literatura os poderia levar às frequentes rotas de colisão. Estranhamentos hoje tão nítidos, talvez até por concluírem que não extraem um do outro coisas que vão além dos contos de putas, embriaguez e vomitadas em banheiros de bares fuleiros. Enfim, não desconheciam que nos negócios a isenção da criatividade acaba por gerar desconfortos e a inevitável caça às bruxas. Logo o fato se evidencia os pegarmos digladiando, procurando culpas e responsabilidades. Também jamais será menos verídica a afirmação de que os fracassos demolem, e o menos incômodo é atribuir a alguém as falhas no percurso, mesmo que  indiscriminadamente atribuam culpas.
E assim o bate-boca continuou e eles permaneceram na busca do grande azarão:

- Sabe o que acho Onadia?  - Pergunta o velhote vestido em roupas desleixadas e  à bordo das indefectíveis lentes negras.

-Não, e o que é que você acha, Nachi? - Devolve o outro com ares de pouco caso

-Bem..Se quer saber, aí vai; Acho que a tirania dos autores sempre supõe correta as suas conclusões.

- Uai, Nachi, que conversa mais besta essa tua! Isto está me parecendo o jogo na defensiva! –  Retribuiu Onadia. Óbvio, era o escritor desafiando o seu personagem - Depois persistiu: -. Ah, e nunca se esqueça que fui eu quem o criou ao te dar a vida nas linhas dos meus textos. E não foi só isso, pois também te dei trânsito livre em  histórias, verossímeis ou não, direcionando o leitor para um universo só teu, e sem me importar que os textos não levassem a minha  assinatura. E agora é bem claro, pois mesmo te concedendo a autoria nunca lhe permiti que andasse distante das coerências e dos propósitos aos quais te criei. E agora isso, é negando-me que agradece?

-Grande merda ter que assinar os teus textos! Mas veja...Te agradecer? Só me faltava essa, Onadia! Agradecer o que e por que? – Ruminou o velho com um olhar inquiridor.

-Ora! Agradecer sim! Agradecer a minha imaginação por ter deixado conhecer e fazê-lo descrever os subterrâneos, o único lugar onde há pessoas verdadeiras e se conhece a nobre natureza humana. Sim, sei que te queixas, mas fui eu quem te trouxe à luz as verdades sem máscaras, essas que vertem sangue e sentem o corte da navalha na carne crua. E não só isso, pois junto delas vieram as melhores histórias que poderiam ser contadas para um protagonista que foi por mim esculpido á dedos.

-Hã? Melhores histórias? Esculpido á dedos? Melhores histórias uma ova, Onadia! – Insurgiu o velhote. - Você só pode estar delirando – Devo agradecer por ter me atirado num buraco profundo e fazer-me escrever sobre um submundo fétido, o qual gosta de alcunhar " os subterrâneos"? Quer que te agradeça por minha fodida vida em puteiros ou bares onde o cheiro do mijo e do esgoto são sentidos à léguas de distância? É sobre isso que você está falando?

-Mas que merda, Nachi! E o que mais esse personagenzinho de merda poderia esperar de mim? Que o fizesse escrever sobre criaturas ditando moda em Paris? Redigir matérias para colunas sociais em fotos pousadas com os produtos da Paco Rabanne? Ah, essa seria muito boa, assim como não me furtaria imaginar que você é um daqueles cidadãos que reagiria assoberbado ao visitar o Palácio de Buckingham próximo de gente influente. Pois então, você me é e sempre será o eterno ingrato! E para terminarmos essa pendenga cretina, saiba que te ofereci mais que isso, pois te imprimi uma personalidade marcante, dei-lhe  mulheres de todos os tipos, e o fiz entender o que há nas entranhas no planeta dos desvalidos, esses que você  reclama tanto. Precisaria dizer-te mais? – Justifica-se o autor.

-Não Onadia, você não precisa não, já que agora não nos falta mais nada! Glória Jesus! Hosana nas alturas! – Vociferou Nachi, inconformado, juntando as mãos como se fosse fazer uma prece, mas sem deixar de voltar à carga: - Saiba que esse é o teu ponto de vista, e não o meu! - Momentaneamente Nachi saboreou as suas palavras e as sentiu fora dum contexto de precisão. Desta maneira, pensou por mais alguns segundos  e chamou a atenção do amigo ao corrigi-lo com veemência:

-E vê se pare de me confundir ao se referir a mim e no mesmo tempo na segunda e terceira pessoa verbal. Escolha! Ou usa o você,ou o tu, ou lhe, ou te, pois até eu estás me fazendo nessa baderna! E mudando de alhos para bugalhos vou dizer; a mais inexorável  das verdades é a que você me faz de paspalho neste teu submundo falso e onde só a sua ignóbil inteligência o imagina legítimo! Será que ainda não percebeu que as grandezas que você vê  por ali só vingam de ti? - Zombou o velho Nachi - Sim, era necessário que fosse ríspido para que  Onadia soubesse parte das suas razões. Logo, e sem conseguir se frear, continuou com a contundente oratória:

-Veja...Assim que você me deu vida literária relutei no início! Porém e pra variar jamais me deu ouvidos. Lembra que  pedi pra que não me fizesse escrever sobre bares, bêbados e prostitutas, certamente  o tema mais manjado dos últimos duzentos anos? Portanto acho que nem é preciso relembrar a esse pretensioso que muita gente já dissecou esses temas  bem melhor que você, mesmo que me usando para atingir as tuas demências. Por acaso já ouviu falar nuns caras chamados Bukowski, Fante, Celine, Miller? - Nachi faz-lhe a pergunta num tom sarcástico.

-Sim, lembro do lengalenga, mas não era importante. E sobre esses escritores? Bem..Li todos eles à exaustão! E surpreenda-se, Nachi; Nada de excepcional, principalmente o Bukowski.  O tal de Buk sempre foi um pé de cana, um escritor onde o que corria nas veias jamais foi o sangue, mas destilados! Bebidas em tal volume que sempre se evaporaram junto das suas idéias turvas e cretinas, pois o fanfarrão jamais foi possuidor de sensibilidade ou fineses. Por isso não se engane, pois ele apenas escrevia um monte de asneiras e consumia vinhos ordinários para depois vomitá-los sobre as folhas datilografadas por sua velha Remington. Enfim, Bukowski era apenas farsa, um velho carteiro alcoólatra e que em vida, além de foder o seu fígado, estrepou também os pulmões ao consumir três carteiras de cigarros por dia. E quer saber ainda mais sobre o seu queridinho? - Onadia pergunta com desdem ao senhor Nachi. Antes mesmo que esse respondesse, emenda:

-Pois bem...O seu queridinho ao chegar em casa simplesmente queria que o mundo se fodesse, desde que não atrapalhassem suas sinfonias de Mahler que ele ouvia num rádio com sei lá quantas válvulas. Pode imaginar isso? Ouvir as sinfonias de Mahler! – Concluído, Onadia respirou pesado, cansado, pois acabara de destilar veneno e iras ao contrapor com veemência as preferências literárias do velhote.

Possesso! Era assim que o escritor reagia quando tentavam comparar o seu estilo ao do de Bukowski, mesmo que o crítico fosse o alter ego. O velho sorriu à reação do parceiro, mas era tão bom aborrecê-lo que ele continuou a espetá-lo:

-Ah, Onadia! Essa resistência nada mais é que  inveja. Logo, vá tirando os seus potrinhos da chuva, pois você jamais escreverá como ele nem que tente por toda a eternidade! - Nachi afrontava o seu criador. Onadia tremia, ventava como um touro bravo estocado no dorso.

-Ta percebendo Nachi? Por isso que sempre afirmei que tu jamais será menos que isso; Um velho idiota! E ainda surge com esse papinho besta de que quero escrever como Buk? Hahaha, Nachi! Você só pode estar louco! EU ESCREVO MIL VEZES MELHOR QUE AQUELE ESCROTO! - Onadia berrou- O velhote gargalhou diante daquela reação, pois sabia que tinha mexido com os brios do autor, já que era só tocar no nome de Bukowski para o escritor perder o rumo. Entretanto, Onadia queria vingança:
 
-Preste bem atenção seu personagem de merda! Bukowski não deveria ser alguém a quem você ou qualquer outro tivesse que se orgulhar! Te dei melhores histórias que ele deu ao Chinaski. Saiba duma vez por todas seu velho ranzinza! Buk  foi um tremendo vigarista que deixou garrafas quebradas e dívidas por todos os lugares por onde passou. E mais ainda, e o que é muito pior; Sabe-se lá quantas mulheres ele deve ter engravidado e deixado passando necessidades? Completou Onadia saboreando um grotesco desprezo – O velho Nachi o olhou espantado, e não demorou a sua réplica:

-O que? Mulheres grávidas? Como você está sendo ridículo, Onadia! Senhor Escritor, você é um poço de incoerências, pois me enfia neste universos de putas e desvalidos e ainda vêm com essa história sobre a moral e as insensibilidades do Buk? Você só pode estar demente, e não é de se estranhar que tenha nos deixado nesta situação - Esbravejou o senhor Nachi. O autor o olhou perplexo; Ninguém queria perder a parada, permitir que o outro suplantasse os argumentos.

-Bem, ta certo!  Talvez eu tenha pegado pesado com esse papo sobre gravidez, mas...que verdade que você quer, Nachi? A verdade sempre terá diversas faces, e ela está lá no submundo onde diga-se, o senhor, de malgrado não gosta de estar. Porém os meus subterrâneos jamais foram ou serão os de Buk, e ele sempre forçou a barra. Agora... você é muito mesquinho, Nachi, pois talvez se quisesse que escrevesse histórias para você em  mansões ajardinadas, em ternos Hugo Boss e gravatas Pierre Cardin. Agora...o grotesco mesmo seria tu ter aventado a possibilidade que te criaria um conto e o colocasse  ao volante duma Ferrari conversível, ou escrevesse peças publicitárias num escritório de 300 metros na avenida mais cara da cidade. Isso seria demais, não acha? -  Devolve Onadia desdenhando seu personagem. Entretanto ele não contava com o contragolpe do velhote, e a reação veio à galope:

-Caraca, assim não é e jamais será possível! Já vi que tá batendo as bielas, Onadia! Pois ainda tem a cara de pau de contestar que plagiamos Bukowski? Por mais que queira nos enganar pretendeu sim que eu fosse, reguardadas as devidas proporções, o mesmo cu sujo que o Chinaski foi para Bukowski. Olho por olho, podridão por podridão, é esse o seu lema, entretanto, para diferenciar-nos deu-me o nome de Nachi. Só isso! Eu Nachi, ele Chinaski! Só isso! -  Nachi  riu para o autor e depois olhou para o teto onde um antigo ventilador se mantinha calado por falta de manutenção.

-Ah é? Então puta que pariu digo eu! La vem você com o tal de Buk, de novo! Não mais fale desse filho da puta na minha presença!  – Onadia berrou.

Foi um momento de pausa, já que os ânimos estavam demasiadamente exaltados. Conheciam um ao outro como os próprios dedos das mãos, logo era essa a hora propícia de manter um silêncio tétrico, talvez estudando lances para os próximos movimentos como num jogo de xadrez. Onadia pediu mais uma cerveja, e depois, circunspectos, analisavam as considerações de cada um. Nachi, como personagem, estava cansado da lengalenga toda. Cansado de beber nos mesmos bares pés de chinelos. Cansado de escrever e foder com prostitutas que jamais tiveram compromissos com a higiene ou com dentes sadios. Enfim, sempre foi um perfeito cu de gato suportar aqueles bêbados de quinta categoria, aliás, todos eles com fígados à caminho da cirrose hepática. E dele também foi feito um bêbado, mas sempre pretendeu muito mais do que lhe deram, talvez lençóis limpos, cobertores felpudos e uma casa onde não houvesse vazamentos no telhado. Gostaria duma boa história para contar, adoraria poetizar a beleza da mulher, talvez uma esposa fiel que o esperasse com sorrisos nos lábios quando chegado do trabalho. Não, não queria crianças, é verdade, mas haveria o cachorro, e a ele treinaria com paciência em como trazer  o jornal dos domingo preso nos dentes. E outra; seria crime escrever sobre uma piscina com o formato do corpo duma mulher? Então! E mais; Se fosse preciso, nesses contos teria jogado frescobol nas areais da sua casa de praia, sem problema algum, frescobol sim, e daí? Será que  Onadia jamais percebera as suas necessidades ? Não poderia o autor lhe ter concedido uma razoável porçãol de dignidade? Enfim, foram tantas as sacanagens a que se submetera que seria pura perda de tempo comentá-las uma a uma. E ele pensava sobre esses fatos e eles os levaram a questionar do seu criador:

-Quer saber mesmo, senhor Onadia? Você sempre levantou a bandeira das sinceridades, não é verdade?

-Claro,Nachi!  Sempre a sinceridade, ela acima de tudo! -  Confirma Onadia.

-Olha... - Começou o alter ego - Sei que nós os personagens somos reféns das vontades e vaidades dos nossos autores, e você me fez aprender como funciona esse babado todo. Porém, eu queria dar um tempo, parar de atuar, interpretar, não usar da tinta para escrever sobre esse mundo com cheiro de vomito e bunda mal lavada.
Eu acho que você não de ter perdido de todo a generosidade. E mesmo que não aceite, ela existe em nós, assim como nossas sensibilidades, pois se não existissem não estaríamos aqui amargurados com tanta falta de criatividade. E é te pedindo ao que restou delas que rogo que leve em conta a minha intenção de sair de cena. Eu quero abandonar esse mundo nojento, não quero mais atuar e nem escrever as tuas historias – Justificou Nachi, emotivo -

Onadia apenas o ouvia atentamente. De fato o alter ego  apresentava  feições cansadas e suas mãos tremiam tanto que a cerveja valsava no copo americano. Na verdade sentia-se tocado pelo pedido do amigo, porém, como abrir mão dele? Justo ele que fora lapidado com o estigma da melancolia e com um olhar nostálgico que detectaria nas pessoas o verdadeiro sentimento humano. E o mais importante; Tinham que continuar a escrever, pois escrever era não estar morto . Há muito tempo quem escrevia as suas linhas era o velhote, era como se fosse psicografia, e ele desacostumara dos próprios sentimentos, abrindo mão das próprias  emoções, pois só encontrava algum conjunto de humanidades quando  na pele do velho.
Não, jamais abriria mão do ego, e agora, a partir dessa devastadora e dolorosa conversa não faria qualquer diferença se gostassem ou não daquilo que viesse escrever, pois só o que queria era não morrer na praia depois de nadados quilômetros de distância. Sim, era certo, precisava de algum dinheiro, mas se acomodava com pouco, e ainda havia sua reles aposentadoria de servidor da municipalidade, não muito, mas o suficiente para manter-se vivo.

Portanto doloroso era o clima de "deserção" a possibilidade de permitir que o velhote se fosse, pois ao ir  seria como se decretando as próprias mortes, mesmo que Nachi nisso não acreditasse. E conjecturando os fatos foi que percebeu que o maior dos erros foi o seu, pois recordando do antes lembra-se do quanto se fazia dependente do protagonista, pecha que tentou se livrar, mas que foi impossível, pois de fato sempre foi o autor de um personagem só. Sim, recorda também que antes do fato se consolidar tentou formas, fórmulas, experimentou outras histórias e personagens, porém eram criaturas frágeis e textos tão ruins que, nem o incentivo do melhor colega de repartição teve como digerir. Relembra inclusive que, numa noite de bebedeira, num tempo que ainda ensaiava textos que pudessem projetá-los no mercado editorial, saiu á cata junto desse amigo dum personagem que impactasse as pessoas. Foi então que entre copos de conhaque e cervejas que sua mente viajou e ele se viu diante dum velhote nostálgico, melancólico e beberrão. Sim! Ali estava ele, finalmente chegara a sua fonte de inspiração; Nachi. E dali nasceu o protótipo,  deu-lhe vida, cravou-lhe o humor, e o preencheu com ironias e sarcasmos, além da compreensão para transitar num mundo de miseráveis. Daí só foi dar-lhe a profissão de escritor, vestir-lhe um par de lentes negras e adormecê-las no enrugado rosto onde sobressaiam dentes amarelados pela nicotina. Daí em diante tudo que sua mente produziu era pra vestir ao senhor  de óculos escuros. Sim, e seus contos  beiravam ao podre, ao fantasioso, pois jamais se realizaria ao escrever histórias e novelas fúteis, dessas que contam as pieguices do amor  impossível, acontecido na fração do segundo numa tarde de chuva qualquer.. Sim, tentar ele até que tentou, pois o que o fascina o grande público é o drama, a pieguice, é o sofrimento que resulta no imprevisto da vitória, assim como nas novelas onde o milionário mal feitor perde o grande amor para o mocinho bom e de firme caráter. Não! não seria com o velho Nachi  que essas histórias aconteceriam, pois jamais o exporia à esses delírios que movem as massas -  Foi o que concluíra à época.

Portanto era essa uma conversa dura e definitiva. Sim, havia a consciência que havia maltratado o seu personagem – Não, mesmo que não desse a mão em palmatória  não perdera de todo o senso crítico. Estava alto sim, mas, mesmo que bêbado sabia que forjara a personalidade de Nachi algo próximo da sua, daqueles que dificilmente se saem vencedores. Tinha plena consciência que em muitos dos seus contos humilhara e ridicularizara o velho Nachi. Sempre esteve consciente que foi pura gozação enfiá-lo naquele par de lentes negras, assim com comumentes usadas por John Lennon. Sim, sabia que o humilhou ao fazê-lo escrever sobre como dormir em camas de lençóis esfarrapados, fétidos, assim como  obrigá-lo dividir o único e antigênico sanitário com dezenas de moradores nos pardieiros que morou. Sim, como poderia esquecer que pedaços de Nachi foram deixados em quartos de pensões infestados de baratas, ou em em  amores que beiravam aberrações?. Sim, era doloroso desembocarem num momento tão crucial, a encruzilhada em estradas de terra onde o que tem que ser decidido é o destino, ou juntos, ou separados, e para sempre.
Portanto Onadia se sentia confuso, e ali na cadeira do bar ele se rendia aos pensamentos, e ali tentava adivinhar as formas de conciliação, até que, repentinamente os seu olhos se levantam e  pela primeira vez ele fita o velho amigo com ternura e respeito.

-Meu velho querido, acho que podemos fazer o seguinte... Vamos abrir mão dessa perrice momentânea em que nos metemos. Sabe Nachi estamos estressados e nervosos e isso jamais nos levara a algum lugar. Concordas?

-Sim, concordo e entendo a sua aflição, Onadia, pois ela também é a minha. É duro é dividir aquilo que sempre se supôs inteiro, não é verdade?  -  O velho Nachi lhe pergunta igualmente emotivo.

-É verdade Nachi! Jamais admitimos dividir o que julgamos uno. Então...Vamos pensar conjuntamente, achar soluções. Hoje mesmo começarei a escrever um novo conto e o deixarei de fora. A partir de hoje considere-se em férias. Imagine-se numa praia onde poderá descontrair com longas caminhadas pela orla, sentir o pulmão repleto dos ares das maresias. Imagine o sol à pino, e garotas se bronzeando em minúsculos biquínis nas areias paradisíacas das praia nordestinas. Se quiser ir mais além, vá,  veleje, pesque em alto mar...é uma adrenalina pura a pesca do peixe-espada. Pode ir, está autorizado. Saia,  divirta-se, espaireça,  será tudo por minha conta, fique tranquilo -  O autor concluiu ofertando um sorriso,  mais de pai de que escritor.

Nachi pensou por instantes. Repentinamente a sua face se vestiu de austeridade, e ele recolocava as lentes negras e protocolarmente se manifestou:

-Bem, só posso agradecer a oferta. Até que gostaria de estar lá Sr. Onadia, porém não me deste pais e nem parentes, mas agora quer me dar  lugares e ótimos divertimentos. É contraditório, pois jamais criou para mim  amigos duráveis e nem me ofertou vínculos com pessoas que nutrissem afetos por mim, mas apenas configurou-me  no sujeito solitário que já nasceu velho. Sabe, você supõe que eu não saiba, mas sei, fez de mim a cópia perfeita de você, não do que exatamente é, mas daquilo que gostaria de ser. Mas não houve a necessária coragem, então me criou e eu encararia todas as barras quem um dia pensou enfrentar. Sabe, Onadia, você manipulou o meu caráter à seu bel prazer, só não me deu uma vida de bandido, e à isso te agradeço, mas fez-me bêbado, pervertido e investido duma compreensão humana que só o teu delírio vê. Enfim, o senhor nunca me perguntou, mas jamais fez orgulhar-me de quem sou - O velhote finalizou  exausto. Onadia o ouviu atento e pôde sentir a dor em cada uma daquelas palavras.

-Eu te compreendo Nachi. Você tem razão e eu poderia ter te dado algo melhor, assim como poderíamos também  ter sido bem melhores.

-Pois é, Onadia! Mas não me deu e nem fomos os melhores–  Nachi concordou desolado.

Onadia podia sentir o alter ego escapando pelos  vãos dos dedos da mão, e  tudo estava fora de controle, longe de sua tutela, e num momento desesperador. Era necessário que tentasse algo que revertesse a situação:

-Nachi... Pense...Talvez a gente possa dar um jeito... Para tudo haverá uma saída! Na próxima novela você terá uma bela aparência e uma exuberante mulher, aliás a mais apaixonada de todas. Vou te dar algo que jamais teve e sempre quis; A juventude!  Então...é só deixar a imaginação fluir e estarás em 1960 a bordo dum Simca Chambord novinho em folha, e com ele fará uma viagem ao sul  para ver a velha Porto Alegre. Sim! Poa, como dizem por lá. É será na Capital que conhecerá a exuberante garota com quem vai se casar. Ela se chamará Dolarice, e não te preocupes, todos ficarão encantados com Doralice. Sim! Teus pais amarão Doralice, porém as surpresas não terminarão por aí, pois haverá irmão, tias e primos. Sim, sei que não quer filhos, então por enquanto nada de filhos, porém teremos um imenso cão da raça fila, genuinamente brasileiro, que tal?  Ah...E depois de algum tempo e já casado te tornarás milionário, iate, mansão, Jaguar e cobertura no Guarujá.  E sim sim! Te separarás, afinal você e eu sabemos que jamais foi homem de uma mulher só. E o teu encanto te levará à outras fronteiras no universo social,  não só do Brasil, mas o internacional, jetset, para ser mais preciso. E haverá champanhe e corridas em Mônaco, e você estará tão próximo ao Prinipe Albert II que, enciumado te notarás elegante. E depois? Bem, depois haverá  badaladas nas areias de Saint Tropez; Sabia que Alain Delon sempre deu as caras por lá? E por fim meu amigo afirmo você  usufruirá  uma vida abastada, de bebidas raras e caras, mulheres finas e gostosas, e degustarás lagostas e caviar russo, além, óbvio, de outras coisas de magnitude –  Onadia finaliza. Há no seu olhar um mínimo da necessária esperança. Ele aguarda ansioso a resposta do amigo, e essa não tarda:

-Não, não, muito obrigado Onadia! Ah, e antes que me esqueça; tu continuas fazendo uma salada danada entre a segunda e terceira pessoa verbal.  Mas, voltando ao assunto, acredito que à essa altura do campeonato tudo soaria falso demais! Seria como pagarmos a conta de luz com uma nota de valor inexistente e  aguardarmos pelo troco! Os leitores jamais acreditarão nessa balela. Quando me criou forjou-me numa personalidade forte, dessas que se selam à ferro quente como gado. Você teria que ter pensado isso antes, naquele tempo. Agora não, agora é tarde. E eu venho dos subterrâneos, e sou cheiro de esgoto e trepo com putas em camas fétidas e em quartos infestados de baratas. E todos esses fatores não permitiriam que acreditassem em nós e nem no meu Simca Chambord cheirando à novo ou numa foto minha ao lado de Sophia Loren. Aliás, hoje eles nem sabem o que foi um Simca Chambord ou Sophia Loren, e nós sabemos disto! Acha mesmo que deveríamos nos tornar alvos das chacotas dos leitores? Não, sinceramente não acredito. Portanto meu grande amigo Onadia, o melhor para  nós é que desistamos de tudo, e que eu dê o fora disso enquanto é tempo! - Finalizou o alter ego, prostrado.

-É. Acho que você tem toda a razão, Nachi. Realmente eles não acreditariam – O autor assentiu após ligeira reflexão.

-Pois é meu querido Onadia! O que preciso agora é de vida, essa única possível, de carne e osso. A necessidade é que me deixe sair desse bar e me conceda existência para  que eu possa existir por mim e para mim – Afirmou um resoluto Nachi.


O escritor fez silêncio e com os cotovelos fincados à mesa e o olhar distante ficou a pensar sobre o pedido. Ambos bebiam suas cervejas e doses de vodca, agora silenciosos e sem se fitarem. Momentaneamente Onadia ajeitou-se em sua cadeira e elevou o olhar para o teto onde algo chamou a sua atenção; Eram duas lagartixas que se mantinham atentas numa mosca varejeira prestes a pousar – Claro, elas aguardavam ansiosas que o pouso da mosca estivesse ao alcance da fome - Evidente, Nachi  percebeu o desvio da atenção do amigo, logo, olhou na mesma direção. Ali adonde estava percebeu  a ansiedade dos pequenos seres, portanto torceu pelo sucesso dos lacertíleos – Mas, a mosca num acesso de lucidez e percebendo que dava sopa ao azar mudou a direção do voo e foi pousar num outro local onde uma aranha  preguiçosa adormecia na teia.  Os amigos se mantinham concentrados e o senhor Onadia sorriu decepcionado, pois também torcera pelas lagartixas. Talvez fosse a compreensão que nem tudo é ou poderá ser como desejamos, pois sempre existirão posicionamentos diversos aos nossos. De útil mesmo a situação no teto apresentou a lição de que é necessário batalhar, e navegar sempre será preciso. Voltando á realidade do tete a tete pigarreou chamando a atenção do alter ego. Foi o exato momento que o senhor Nachi declinou o olhar esquecendo as conclusões no teto e se pronunciou; A sua voz soava calma, firme, e ébria:

-Bom Onadia... acho que nada mais temos para falar. Definitivamente quero sair disso, pois preciso descansar. Reflita e avalie as minhas tristezas, pois o medo é que seu discernimento  mesquinho  enterre-nos numa só cova. Entretanto tente ver o meu lado, preciso me recuperar dessa putaria toda em que me meteu, dormir dias à fio e sem ser assaltado no meio da madrugada por batedores de carteiras ou vagabundos de plentão. Sabe Onadia, nós da terceira idade necessitamos descansar mais que os outros. Perceba as marcas vincadas do meu rosto, veja como são profundas as cicatrizes  que talhaste em mim. Pretendeu-me fazer forte, um velho durão que jamais se dobraria, mas de fato jamais me perguntou se dobrei, e saiba; dobrei sim em algumas oportunidades e sem que você se desse conta nas linhas . Observe-me atentamente e repare nas olheiras, nesta aparência de 80 apesar de eu nem ter chegado nem aos 67. Constate por si mesmo! - Pediu ao outro ao passar os dedos sobre os sulcos faciais.

-Sim, eu sei que você diz a verdade, já que sei como você  é em cada centímetro do seu corpo. Sempre soube e saberei – Concordou  um senhor Onadia, vago, sem argumentos, apenas meneando a cabeça num sinal de aceitação.

Ambos ficaram a se olhar demoradamente e a beber  quando a mágica se deu; Inesperadamente como se fosse uma acne sendo espremida o espírito do senhor Nachi transcende do interior das carnes de Onadia e adquiri forma humana em cenas tão incríveis e  surreais que, mais  lembravam o filme Ghost. Talvez  fosse apenas delirium tremens, um viagem alcoólatra, ou  mesmo o fenômeno que a ciência procuraria explicação, não á luz divina, é certo, mas ao farol dos acasos. No entanto, mesmo sendo delírio algo doía em Onadia,  o parto em andamento, algo sendo extraído das estranhas. Depois de sacramentado apenas o silêncio e uma imensidão de nadas, inexistência de olhares, sorrisos,  e até mesmo de pensamentos. E assim perdurou aquele estado de torpor por cinco minutos até que totalmente liberto do corpo do criador, Nachi colocou-se de pé levando o seu copo de cerveja à direção de Onadia; Era a proposta de um brinde. Onadia, mesmo que anestesiado retribuiu ao levantar o copo e , apesar da sua mão tremer tanto quanto a do parceiro. Ali houve a mais consistente troca de olhares, enfim, a carícia entre cria e criador.

-Um brinde ao passado e às tantas loucuras que vivemos juntos – Rememorou o senhor Nachi -  Saiba Onadia, foi bom, também foi amargo,  algumas alegrias, uma maioria de tristezas, mas sempre procuramos ser bons, cada um do seu jeito, e eis aí toda verdade! Saiba também meu amigo Onadia, sempre procurei fazer o possível por nós e pelos nossos leitores. Juro! - Nachi afirma ao posicionar os indicadores das mãos em cruz e beijá-los. Onadia apenas o fitava transbordado de carinhos, mesmo existindo um vazio dentro de si, talvez aquilo que que se denomine como vazio existencial.

-A nós! – Retribuiu o escritor fazendo novamente colidir as bebidas.

Feito, terminaram a cerveja e um último par de doses de vodca. Depois Onadia chamou um rapazinho dos seus 18 ou 19 anos que fazia as vezes dum garçom. E não foi sem perplexidade que escutou-lhe a pergunta:

-Senhor devo dividir o valor da conta? - Claro, ainda não havia o entendimento para tudo o que acontecera. Portanto sorriu para o rapaz e comunicou que o valor seria pago integralmente por ele.

Com a conta em dia  rumaram  para a porta de saída. Talvez o relógio marcasse duas da madruga e Nachi, no seu primeiro contato com a realidade pôde sentir uma brisa gélida  lhe resfriar o corpo. Surpreso com um céu de tonalidade negra e sem qualquer estrela inspirou vigorosamente e percebeu o quanto podia ser maravilhoso sentir os odores da noite que trazia densa cerração. Agora ele era apenas se transformara num personagem da vida real, um ser encantado pela tênue claridade duma lua nova. Tudo era tão diferente do universo das linhas e páginas, tudo tão difuso num mundo de pessoas reais, onde desde a primeira vez  que foi criado seguiriam estradas opostas.

Enfim, Onadia, num acesso de compreensão e reconhecimento acabava de libertar o seu único personagem, aliás, mais; consentia alforria ao velho e inseparável companheiro.
Antes de tomarem cada um o seu destino olharam-se emocionados. Onadia esforçou-se para conter, mas sem sucesso o par de lágrimas que nasceu em seus olhos. E ainda emocionado e em frangalhos e antes mesmo daquilo que seria o adeus definitivo procurou pela carteira num dos bolsos e separou para o amigo duas das três notas que trazia. Nachi o olhou surpreso quando Onadia alojou duas notas no único bolso de sua desbotada jaqueta de tergal.
Não, certamente não estavam protagonizando cenas dos dramalhões das novelas mexicanas, e nem tratando de joguetes pieguices com a finalidade de emocionar o grande público, cenas tais que,  expostas em linhas  tem o poder de permitir escritores medíocres ou medianos se tornarem Best Seller. Entretanto era essa a quase emoção vivida quando se disseram o adeus selado num afetuoso abraço, acompanhado de quatro discretas lágrimas que não se envergonharam de escorrer.
Onadia tomou á direita num trajeto mais curto à esquina. À princípio com passos curtos e comedidos, assim como são os das pessoas que convalescem em hospitais. O senhor Nachi, opostamente tomou à esquerda e com passadas mais rápidas e largas caminhou vinte jardas, e  estancou o movimento fazendo um meio giro sobre si para observar a figura do seu criador desaparecer no meio das névoas. Os olhos ainda marejavam quando voltou a caminhar, e ele,  num primeiro ato de ruptura  livrou-se do par de lentes escuras atirando-o na boca de lobo mais próxima. Agora, o contato era com o mundo e onde não haveria ficção, portanto firmou as vistas na direção da luminosidade da lâmpada néon vinda do poste e aguardou que a opulenta nuvem que o envolvia se desfizesse ou amainasse a densidade.
Agora com a névoa abrandada apressou os passos, pois sabia onde se encontrava, já que muitas de suas histórias tiveram aquele bar como palco principal. E assim continuou seguindo, e a cada metro percorrido o peito inspirava com mais vigor e o esforço fazia arder os pulmões numa sensação fantástica e que jamais fora vivida nos livros.
Passo a passo o senhor Nachi alcançou a luz na esquina, e  lá uma nova encruzilhada para seu destino. Acobertado de dúvidas decidiu o destino assim como o acaso se decidia nas antigas brincadeiras de crianças. Lembram-se do "minha mãe mandou bater nesse daqui?" E assim ele brincou com ambas as mãos e a última palavra recaindo sobre a mão direita  achou por bem dobrar a esquina para o mesmo lado,  rumaando para a parte oeste da cidade.

- Será que conseguirei  sobreviver? – O Sr. Nachi questionou a si mesmo antes de dar os primeiros passos na nova direção - Evidente, ele também não soube responder, e a noite traz  um novo momento e o vento uiva tal quais lobos esfomeados e outra densa camada de névoa se forma. E novas rajadas surgem virulentas obrigando o vento uivar diversos tons e  tão ferozes quanto meia dúzia de lobos  em luta pela supremacia da única presa.

-Merda! Como faz frio nessa porra de mundo dos vivos! -  Ele reclama com o nada e treme dos pés à cabeça. Faz frio, muito frio, e ele defendendo-se do tempo fecha os botões e aperta no peito a friorenta jaquetinha de tergal  dos anos 60.

No entanto não eram só essas as novidades, e a noite e a madrugada com seus mil labirintos traziam  a primeira péssima notícia; A inesperada dor no ouvido. Sim, era dor, e ele a sentia e ela era real assim como igualmente eram as lancinantes estocadas que pareciam agulhas penetrando no tímpano. Com expressão de dor esfregou o lóbulo da  orelha direita e procurou sorrir. Sim, um sorriso perturbado, apreensivo, afinal jamais sentira a dor física. Depois retirou o dinheiro do bolso e se perguntou se as 200 pratas seriam o suficiente para descansar o corpo por dois ou três dias num pardieiro qualquer. Não, nem sobre isso houve qualquer certeza

-E agora, Nachi? – Murmurou  para a sua insegurança.

– Ora, ora, Nachi, sejas bem vindo ao mundo dos humanos! Agora será por nossa conta e risco! - Respondeu-se num tom otimista ao novamente estancar os passos ao escutar os sons dos saltos dos sapatos de uma mulher vindos rápidos pela calçada e atrás de si. Ah sim! Ele sabia reconhecer uma fêmea que usasse um par de agulhas de oito centímetros. Rapidamente a mulher o alcançou.

-E aí velhinho...afim dum programa? - Ela passa por ele e se posta á frente, e  lhe pergunta tão próxima que quase roça o par de peitos no tórax dele.

-Depende! Quanto tá a morte, dona?

-Pra tu eu faço oitentinha. Ah, e tu pode fazer o que quiser.

-Bem, to meio durango - Ele responde sacolejando os ombros. Depois propôs: - Pago trinta num boquete, desde que tenha um lugar onde possa descansar a carcaça.

-Pô velhinho, tu é coroa mas não é bobo, heim! Sessenta pratas e fechamos negócio com o quarto incluso - Ela contra oferta

-Necas! Continuo duro! - Cinquentinha, nem mais, nem  menos e batemos o martelo! - Nachi faz sua última oferta.

- Negócio fechado! - Responde a prostituta. Ele se concentra nela e  talvez ela estivesse lá pelos 45, morena, um corpo ainda razoável  num rosto nem feio, nem bonito, mas apenas evidenciando o contraste entre suas negras sobrancelhas e os cabelos aloirados.  E sobre o tom dos fios lhe parecia que não foram tingidos por tintura, mas com a água oxigenada, já que reconhecia o odor. Sintoma  da inspeção, a puta solta um risinho ordinário e  pergunta ao enfiar a mão por entre suas pernas e apertar-lhe o pênis :

-Tiozão, ainda sobe esse sujeito?

-Bem...nas linhas de um livro sempre subiu. Nunca gostei de deixar ninguém na mão. - Ele devolve com o mesmo sorriso incerto, porém safado.

-Como assim Mané? - Ela se surpreende. Só que agora os lábios da mulher estavam  tão próximos dos seus, que  ele acabou por sentir o bafo do álcool se desprendendo daquela boca de dentes não tão bem conservados.

-Não, não é nada não, foi bobagem minha. Esqueça isso dona! - Ele pontualiza. Pelo andar da carruagem parecia que tudo ocorreria novamente, talvez lhe fosse a sina.

Ela gargalha, pois deve ter acreditado que estaria à frente de um desses velhos gagas que não falam coisa com coisa. No entanto isso não a perturbava, pois sabia lidar com os tipos, afinal ela era da noite, da rua e igualmente  fazia parte dos subterrâneos.
Logo em seguida ela e o seu braço direito enlaça o senhor Nachi pela cintura e eles riem enquanto desaparecem numa outra densa camada de nevoeiro.



Copirraiti02Mai2009
Véio China©