segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Uma tarde no circo

Por que sou assim?

Aspirivaldo olhou para o próprio corpo enquanto aguardando na fila era detalhado pela curiosidade da criançada, adiante e atrás de si.

“-Por que mamãe teve que ceder à pessoa? “ – Questionou o momento íntimo havido entre sua mãe e seu pai biológico – ‘E ainda mais: por que eu prevaleci?’ – Inquiriu a si, a agilidade e bravura de ter sido o primeiro e ter como louros da vitória o direito de fecundar o óvulo de sua mãe.

Atrás de si outros olhinhos ávidos e curiosos:

- Papai, quanto anos será que esse menino tem? – Um guri duns 6 interrogava o pai apontando-lhe o dedo.

- Caique, ele não é um menino – Respondeu o pai ainda jovem, porém constrangido.

-Uai, papai! Então o que ele é? – Surpreendeu o garoto com o indicador ainda apontando em riste.


Aspirivaldo já se acostumara com essas cenas. Aliás, Aspirivaldo estava acostumado com tantas coisas nessa vida que a observação do garoto nada mais era que um fato corriqueiro, desprovido de qualquer preconceito ou maldade. Porém algo o atormentava, e quase sempre ele acordava aos suores, sobressaltado por pesadelos onde vislumbrava o momento da cópula do mãe com o pai, para depois, sem mesmo ter um porquê se ver deitado na mesma cama com outras três mulheres, sem a presença dos pais. E as mulheres mordiam seus lábios e engalfinhavam-se a ele, insistentemente incitando à penetrá-las até que ele, urrando com leão ferido de morte as fazia ter orgasmos múltiplos. Então, cansados, saciados pelo gozo supremo, todos adormeciam. Como não passassem esses pesadelos, e acreditando piamente que isso pudesse ser coisa do mal, à conselhos de amigos procurou uma igreja evangélica e converteu-se: pelo menos agora havia um Pai para ele.

Ali na fila os pensamentos de Aspirivaldo eram dedicado a Igreja e a esses pesadelos quando fitou o garotinho que meio amedrontado se agarrava às pernas das calças do pai. Chateado por perceber que atemorizara o guri desviou seu olhar e imaginou se um dia haveria esperanças para si: queria saber quem era, de onde viera. Sobre o seu passado apenas um grande espaço vazio, uma lacuna em branco da qual pouco ou quase nada sabia: A mãe ainda em vida jamais gostara de tocar no assunto do pai. Bom filho e respeitador da hierarquia familiar para não vê-la aflita aos poucos deixou de tocar na ferida de ambos, até não mais fazerem menção sobre ele.

E assim que ela se foi, ele, órfão aos 15 foi obrigado a gerir sua vida e sustento.
Evidente, sem qualquer qualificação ou estudo abraçou a carreira de engraxate, um lustrador dos bons, preferido entre outros garotos que trabalhavam numa pequena engraxataria de bairro: A preferência talvez se desse por acharem engraçado o fato de ele se encaixar como uma luva na caixa de engraxate sem precisar encolher as pernas quando sentado em sua ferramenta de trabalho.

Isso perdurou até os 17, quando num dia de jogo do time de bairro fora descoberto pelo técnico adversário: um profissional do sexo.
Naquele dia, Aspirivaldo, o mascote do Cruzeiro F.C. ao trocar de roupa após a partida no único vestiário existente , permitiu que o técnico do time adversário visse o tamanho descomunal do seu membro.
Este, impressionado e com idéias lhe fervilhando a cabeça, ao sair do vestiário entregou um cartão ao pequeno homem, onde se lia: “PornoStar Produções Artísticas e Cinematográficas”.

- Se te interessar, me procure. Há um futuro brilhante para você! – Comunicou com ar pomposo. Ao que, Aspirivaldo, um tanto constrangido, respondeu:

-Mas, não tenho experiência alguma. Eu nunca fiz aquilo, sabe.... – O rapaz sorriu: Estava ali alguém fácil de manejar. Antes de apertar a mão do nosso anão, em despedida disse:

-Isso é muito interessante!

Assim que ele se foi, Aspirivaldo sonhou. Era justo que progredisse, que pretendesse ter uma vida melhor: estava cansado de morar em quartos de pensão, enjoado de ter aquelas graxas negras, marrons entrando pelos vãos das unhas e que lhes davam aspecto nauseante.
De lá para alguma glória foi um pulo – As pessoas gostavam de ver o pau imenso do anãozinho penetrando aquele amontoado de loiras com caras de vadias. Porém, com a falta de outras novidade os negócios e cenas nebulosas do staff foram deixando de causar interesse. E sem outras inovações que aguçassem o interesse daquele tipo de público, os filmes deixaram de se manter no topo, portanto começaram a se empoeirar nas prateleiras das locadoras, abreviando assim a carreira de sucesso do mini ator pornô.

Precavido, Aspirivaldo, sabendo que aquilo talvez não durasse para sempre economizou o suficiente para montar uma revenda de água e gás. E ainda hoje na sua empresa não são poucos os clientes que, sorridentes pedem para que ele pose para fotos ao lado dos garrafões azulados e das cotas de gás, num contraste insólito e divertido.

-Mamãe, que garoto estranho. Tem cara de egente grande e parece um homem! – Ouviu de uma outra garotinha que esticava o braço em sua direção – Ele riu - Nâo se esqueciam dele - A mãe sequer deu atenção à menininha e a puxou bruscamente pela mão afim de livrar-se do assunto incômodo.

Catracas liberadas, Aspirivaldo riu enquanto caminhava à passos curtos na direção da entrada principal – para ele aquilo era tão normal –
Ao entrar procurou um lugar nas arquibancadas onde pudesse ter ótima visão do espetáculo. Repentinamente surgiu alguém:

-Prezado público! Temos a honra de anunciar mais uma tarde de alegrias! Estarão com vocês os maiores artistas circenses desse país! – Exclamou o anão vestido num terno vermelho e com uma ostensiva gravata borboleta amarela dependurada no pescoço, bem ali, no centro do picadeiro

Assim que fez o anúncio a banda soou alto e as atrações daquele circo vindo de Pernambuco.foram adentrando à arena, até tê-la repleta.
Aspirivaldo olhava para todos de forma apaixonado e via as atrações se apresentarem uma a uma: a garota da corda bamba, o atirador de facas, o trapezista, os palhaços, o domador e seus leões, tigres. Aquilo o deixou extremamente feliz: - Ele sempre quisera ser um homem de circo –

E as atrações se sucediam uma após o outra até chegar a vez dos palhaços.

-Querido público, agora com vocês, Pimpolho Louco e os Chicletes Selvagens!! – Anunciou o nanico de terno berrante.

Tão logo anunciou, se desfez das roupa encarnada que vestia, mostrando que por baixo havia outra de um azul forte e com bolas imensas, coloridas de vermelho e laranja – No peito, uma faixa se via: O nanico das multidões
E tão rápido quanto se desfizera das roupas ele pulava e dava cambalhotas enquanto a turma do Chiclete entrava em cena, surgidos repentinamente por detrás das cortinas.
Enquanto todos faziam peraltices um dos anões da turma do Chiclete disparou na direção do Pimpolho Louco e virando para a platéia, em tom jocoso perguntou:

-Criançada! Vocês sabem qual é o nome desse sujeito enorme e de pernas curtas?

A gurizada não deixou por menos:

-Nãoooooooooooooooo! – Ao que ele retomou:


-Então eu vou contar! – E chegando próximo da primeira fileira, como se confidenciasse seus pecados, gritou numa voz engraçada: - O nome desse abestalhado do Pimpolho Louco é ASPIRIVALDOOOOOOOOOO!

Foi o suficiente para a gurizada explodir numa gargalhada. Entretanto o Pimpolho Louco não queria deixar por menos, e como ir à forra era necessário correu para o lado oposto onde fora o outro e instigou a gurizada:

-Ele fala de mim. Masssssssssssssss. Vocês sabem o nome dessa lagartixa descascada?

-Nãooooooooooooooooo! – Divertiu-se a meninada

-O nome dessa coisa enorme é ARISCRAUDIOOOO ! – Gritou o Pimpolho Louco, para depois dar piruetas, gargalhando.

A gurizada explodiu num alarido enquanto o nosso anão permanecia atônito, perdido entre o público. - Era ele! Era seu pai! – Coincidência assim jamais seria possível –
Seu coraçaozinho batia loucamente num ritmo que ele jamais sentira. Parecia que o órgão queria lhe sair pela boca –

-Meu Deus! Meu coração parece maior que eu! – Sussurrou para si –

Foi quando começou a sentir-se mal : uma dor lancinante como se fosse um raio invisível a varar-lhe o peito. As vistas escureceram e a dor o fez perder os sentidos – Estava enfartando - Momentaneamente o burburinho tomou conta daquela parte da platéia e as pessoas se aglomeravam à sua volta – Por momentos o show foi interrompido, e mesmo havendo a rápida intervenção dos paramédicos mantidos de plantão, de nada adiantou. Como nada mais havia a se fazerele foi envolto por um grosso e negro plástico. Eles o retiravam numa maca enquanto lá de longe, no centro do picadeiro, os seis anões ajoelhados e de mãos postas rezavam uma Ave Maria para o assistente desconhecido.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um dia de chuva e as Testemunhas de Jeová

Apressado eu desci as escadas de casa numa tarde de muito vento e promessa de temporal. Pra variar, a pressa naquele momento era maior que a minha vontade de viver. E a insofismável prova que meus dias de há muito não eram dos melhores estava lá, nas insistentes palmas de duas senhoras ao portão. Usavam vestidos simples, folgados e longos. Os rostos sem qualquer maquiagem, os fartos cabelos puxados para trás, enrolados no alto e atrás num coque fazia de suas feições algo ameaçador. Elas estavam bem mais ansiosas que eu.

- Por favor meu filho! Tem um minutinho para nós?

-Sim! Do que se trata? Perguntei ao me aproximar

Ela me olhava com um sorriso estranho, forçado, quase fanático.

-Deus veio falar com você! – Respondeu-me.

-Glória Jesus! Hoje é dia de júbilo. Deus veio até você! – Exclamou a mais encorpada. Olhei para ela, e ela me pareceu tão estranha quanto a outra.

Paradas e a espera que eu tivesse alguma reação eu me ative nelas e nos negros e grossos livros que traziam debaixo do braço e tive a certeza: Eram Testemunhas de Jeová. Quase ao mesmo tempo retiraram as bíblias do sovaco e abriram numa das páginas. Evidente, nem aguardaram pela minha resposta: já estava estourando o minuto a que se propuseram.
Talvez tenha sido a minha surpresa ou o meu olhar assustado que foram tomados por elas como de alguém que necessitava de alguma salvação. E eu apesar de não ser religioso e nem praticante não me julgava incrédulo em Deus nem no seu filho de belos olhos azuis, porém estava tão desencantado com a vida que desistira de qualquer vínculo com Ele - eu nunca fora um homem de muita fé - E isso mantinha-me convicto que ele, sem alternativas, aceitara a minha desistência.
E antes que elas retomassem, antecipei-me :

-Olha dona, sei de tudo que ele irá me falar. Mas pra ser sincero com a senhora o que eu necessito é de alguma ajuda com isso aqui! – Exclamei espalhafatoso ao abrir o portão e chacoalhar no ar alguns papéis em minha mão, na vã esperança que me dessem passagem.

A mais bunduda e curiosa se interpôs na minha frente e esticou o pescoço na tentativa de ver o que diziam os papéis - Eram avisos do cartório de protesto ameaçando a minha integridade enquanto cidadão – E o motivo era um só - Eu estava desempregado há cinco meses, alvo fácil de credores e principalmente do Sr. Samuel, das Casas Bahia. E nesses casos, como é de esperar, os homens de negócios são capazes de tudo e até de nos fazerem perder de um momento para outro tudo aquilo que lhes pagamos com tanta dificuldade. E isso me preocupava sobremaneira: havia uma a esposa furiosa que por conta da situação já não trepava e nem me amava como antes. Portanto, ficar sem o televisor e a sua novelas das 8, sem o fogão e os seus ovos bem passados seriam motivos, a seu ver, mais que suficientes para nos levar cada um para o seu lado. Se justa ou não, essa não seria a primeira vez que esse pessoal de crediário nos causava constrangimentos – Porém, acreditar que mais uma vez ela se rendesse ao meu poder de persuasão parecia-me tão impossível quanto ganhar sozinho na megasena.

Diante dos motivos e da minha exaltação a pregadora, estática e surpresa foi incapaz de esboçar qualquer reação. A outra, a de bunda menor, mais frívola e calculista, percebendo que a colega deixava escapar a ovelha pelos vãos dos dedos abriu a bíblia, provavelmente na página que se fazia o carro chefe da sua pregação e, severa no olhar e na voz, solenemente me alertou: “ Só a palavra do Senhor será a tua salvação “ – Eu a olhei aturdido. Talvez para minar definitivamente a minha resistência, ela culminou ameaçadoramente : “ Sem ela não haverá luz e tua alma se consumirá nos caminhos das trevas”.

-Glória Jesus! - Comungou cúmplice a que me deixara escapar do laço, revitalizada pelo providencial auxílio da colega. E ela, agora recomposta e denotando ternura na voz, concluiu procurando uma outra página da bíblia. O tom professoral aguardava a minha rendição:

-Veja, oh filho do homem: Deus é o pai. O Senhor quer testemunhar a sua ressurreição de um mundo profano. O Pai celestial quer ser fiador da tua fé, e não das suas dívidas!

O diálogo insano e surreal e os pingos de chuva, agora mais encorpados que escorriam pelo alto da minha testa como se fossem moleques brincando num tobogã de parque aquático foram demais para mim:



- Ai meu Jesus Cristo! Não me falta mais nada! – Exclamei alto com certo desespero.

Porém elas não desistiam, nunca:

-Falta sim meu filho! - Respondeu uma delas aproveitando o “gancho” que eu lhes dera. E depois completou, altiva:

- Falta a sabedoria do Pai misericordioso em tua vida, irmão! – Disse à procura de outra página que pudesse estocar ainda mais a minha dilacerada sensibilidade

Acuado, atrasado para o compromisso eu não podia dar-me ao luxo de enlouquecer.
Intuitivamente, diante do quadro que me parecia irreversível só me restou folgar o cinto da calça e abaixar o zíper enquanto as fixava com olhos de demente - Eu fazia pressão na lateral para que ela cedesse quando se deram conta do que eu estava fazendo - Então, horrorizadas reagiram com toda a fúria que Deus lhes deu:

-QUE HOMEM HORRÍVEL, PROFANO. HÁS DE ARDER NO FOGO DO INFERNO, SATÃ! –
Dito, descerem a rua de paralelepípedos em passos largos e apressados.

Sem ação aguardei que se afastassem. E aquilo o suficiente para que eu caísse numa estrondosa gargalhada depois de muitos dias de sisudez.
Eu me divertia observando seus pesados corpos caminhando rápidos e trôpegos pelo desnivelamento dos pequenos blocos de concreto. Me divertia com seus vastos cabelos em obsoletos coques. Das celulites que pareciam redemoinhos em suas peles e da flacidez das coxas dentro dos largos vestidos florais. E principalmente, gargalhei da forte rajada de vento, que intensa esvoaçou seus vestidos deixando à mostra suas desbotadas e broxantes calçolas de algodão.

‘Eu não posso assegurar, talvez eu houvesse me tornando insano por alguns momentos, mas ao ser castigado pela inclemente chuva olhei para o céu carregado e seria capaz de jurar que o tinha visto entre as névoas acinzentadas - E ELE me pareceu sorrir num riso cúmplice e compreensível como se me dissesse com sua voz de trovão: “Ok garoto, tudo bem! Na vida há que ter um pouco de diversão”
E submerso nestas impressões e atolado no temporal imprimi velocidade nos passos e ao longe e no fim da ladeira eu via partir o ônibus que me levaria á cidade - Tudo conspirava contra mim e era mais que certo que o Sr. Samuel não ficasse satisfeito comigo naquele fim de tarde - E tendo que aguardar o próximo ônibus era mais que provável que não houvesse tempo de pegar o cartório funcionando, pois antes teria que passar na Caixa Econômica pra penhorar alguns anéis e correntes de ouro.
Minha sábia e falecida avó, além dessa pequena herança familiar me deixara outras repletas de erudição e lucidez – Num delas ela dizia : “QUE SE VÃO OS ANÉIS, MAS QUE FIQUEM OS DEDOS”.
E saboreando o legado eu sorri ironicamente - Ela teria sido uma testemunha de Jeová, do rabo -