terça-feira, 13 de outubro de 2009

As aventuras do pequeno Casanova

- Ô manhê, será que o pai está ceando a essa hora?

Eunice nada respondeu - estava cansada de ouvir essa e outras questões do pequeno Oscar – Sozinha, separada há mais de 3 anos, de quebra ficara com o ofício de criar e bancar o sustento das infindáveis traquinagens daquele pirralho de quase 9 anos de idade –

-Então manhê, como eu estava dizendo, o professor falou que cear é comer na hora da janta. Se for assim, será que o pai está ceando agora?

-Oscar, pare com isso! Há coisas melhores pra se pensar! – Respondeu-lhe sensivelmente irritada, jogando um dos braços ao léu.

Enfim, tudo resumira nisso: Um ex-marido em algum lugar distante, despedido há um bom tempo do emprego, incapaz sequer de ser localizado para dar ciência à notificação das pensões em atraso -
Melhor traduzindo: Um cara que desaparecera do mapa na companhia de uma reles vigarista que na ocasião lhe telefonava insistente e anônima: “ Sabia que teu marido é um grande sacana?” – Costumava-lhe dizer a voz anônima do outro lado da linha.

-Deixe de bobagens mulher! Deve ser uma dessas desocupadas que nada tem pra fazer a não ser torrar a paciência dos outros! – Defendia-se exaltado diante dos insistentes questionamentos da esposa.

- E mesmo assim, mesmo sob ao mais variada gama de pretextos ele se foi numa sexta feira de lua cheia -

Naquele dia Eunice estranhara o fato de ao chegar do serviço e encontrar Oscar em frente ao portão brincando com a garotada.
Ao entrar em casa não deparou com o marido, com a mesa posta e nem com a secção de roupas masculina na parte do guarda-roupas que cabia a ele – As calças, camisas sociais, as gravatas grená e até mesmo o pó anti-séptico para os pés haviam evaporado – Simplesmente ele a abandonara em meio ao móvel semi desocupado e com as despesas a serem satisfeitas - Como era de se esperar, Marco Aurélio a substituíra pela rouca voz das ligações -

E indo, deixou-lhes mais mais responsabilidades que o limitado salário da esposa conseguiria pagar: o aluguel de todo santo dia 10, contas de água, telefone, luz, de remédios, e pra finalizar: as inadiáveis compras de supermercado.

A insofismável verdade é que, depois que Marco se foi ficou mais difícil lidar com todas aquelas questões; quantas vezes ela se submetera ao serão na fábrica pra poder minimizar a situação? Muitas! - Estavam lá as horas extras, rotineiramente pagas de forma indevida, mas que, testemunhadas em holerites não a deixavam mentir

-Eunice, necessitamos mais que dobrar a produção – Sistematicamente comunicava-lhe o seu gerente nas épocas em que o Natal se aproximava.
E o tom de voz imposto, mais que notificação, soava para ela como sentença: Ou consiga, ou rua!

Ela, medrosa, porém responsável encarregada da linha de produção de uma fábrica de confecções femininas fazia das tripas e coração para extrair de si e das outras funcionárias algo quase que sobrenatural para cumprir as metas impostas, nem que pra isso fosse necessário largar o serviço as 10 da noite – E invariavelmente esse se tornou o horário padrão nos três últimos anos, principalmente entre setembro e dezembro, quando produzir era mais questão de vida que de morte –

Era nisso que pensava quando mais uma vez deixou de responder a crucial dúvida do filhote. E Oscar, após a recusa da mãe em dirimir o assunto permaneceu quieto, olhos grudados no televisor e nos comerciais do intervalo de “Jurassic Park”, o filme ao qual assistia. Porém, era impossível ele permanecer calado.

-Manhê, será que o pai vem ver a gente no Natal desse ano? – Insistiu, antes que o filme recomeçasse. Evidente, a pergunta fora incentivada pelo apelo publicitário que na TV dava ênfase às compras de fim de ano – Será que ele vai me trazer o Play Station II? – Interrogava a mãe com a expressão de dúvida.

-Oscar, pelo amor de Deus, dá um tempo! Todo ano tem que ser essa mesma ladainha? Quantas vezes te falei que o melhor é esquecer o pulha do teu pai existe? – Ele não trará nada para você. Ele não quer saber de presentes, de Natal , de você, de mim! – Respondeu-lhe sofregamente tentando ajeitar os adornos em desalinhos na estante da sala.

-Pulha, pulha? Que é isso quer dizer manhê? – Oscar era invencível - Ele simplesmente amava saber os significados das palavras -

Dona Eunice diante tantos desvarios do menino fitou-o como se ele pudesse ter alguma responsabilidade naquilo tudo:

- Ser um pulha é ser um, um, um sujeito desprezí....Ah, que perda de tempo ficar explicando essas coisas pra voce!! Ralhou com voz ligeiramente trêmula, a ansiedade se apoderando da laringe, formando algo como uma bola incômoda, coisa que ela teve que voltar a engolir pra não se ver exaurida na convulsão do choro.

-E o que quer dizer esse negócio de desprezí ? – Em menos de um minuto a mãe lhe dissera duas palavras que jamais ele ouvira dos professores ou dos amigos. Aquilo porém, foi demais para ela:

- DESPREZÍVEL é ser um tremendo FILHO DA PUTA! – Bramiu uma dona Eunice descontrolada, enfatizando sobremaneira os xingamentos – A raiva expluída, expondo as vísceras de um ser humano com problemas fez que seus lindos e negros olhos reluzissem às inevitáveis lágrimas que despencaram tão rápidas e vertiginosas como numa cachoeira – Finalmente o ser de carne e osso sucumbia à revolta, ao enrijamento dos músculos, à todas possibilidades, enfim, às feridas contidas em sua alma.

Oscar, assustado arregalou os olhos ao notar-lhe o destempero, e tão rápido quanto pôde abandonou a tela da TV e os carnívoros Tiranossauros-Rex, correu em sua direção, aninhando-se junto a ela – Carinhoso ele deslizou as mãos de unhas sujas sobre as faces encharcadas para depois delicadamente afagar-lhe os cabelos com as mãos ainda úmidas.

-Manhê, pare de chorar, por favor. – Sussurrou-lhe - Não se preocupe mais, ta? Sabe, quando olhei praquela velhota de tetas de melão e de rabo empinado, eu não confiei nenhum pouco nela! Será que ela imaginou que poderia enganar a gente? Será que não notou que a senhora sacou que ela era puta? – Continuou a sussurrar-lhe como lhe confidenciasse algo, como se aquilo pudesse trazer algum conforto à mãe.

Obviamente, sabem-se lá os motivos, mas, Oscar se referia à índole de dona Mercedez, genitora de seu pai, portanto sua avó, : Ele a vira uma única vez, vinda não se sabe daonde, por ocasião do seu mais recente aniversário . E a vendo ele jamais a esqueceria, como também a todas sensações que aquela bela mulher de traços mexicanos lhe provocara - A aparência da “quarentona” mantinha-se viva dentro da sua mente. Seria capaz de com os dedos voltear a vulgaridade da sua boca ou descorar-lhe o tingimento dos lábios carmim . Jamais poderia fazer que nao viu a pesada maquiagem a lhe colorir os olhos num tom lilás, que não sentiu o perfume denso e nauseante, muito menos que se esqueceu dos beijos molhados que ela lhes dera e que lambuzaram suas bochechas.
Ah! Como ele gostaria de poder apagar da memória o registro que ela deixara. Como se alegraria ter uma borracha que apagasse gente, que suprimisse o contorno magnífico e libidinoso das suas coxas. Pernas que ele não se esquece, mas que lhes fizeram saltar o coração quando as viu adornadas por uma calcinha negra e transparente, através do furtivo buraco da fechadura, numa hora que ela necessitou ir ao toalete.

Como poderia ser tão insensata aquela mulher? – Como poderia caber dentro de si tanto desejo por aqueles seios fartos e expostos para quem quisesse ver?
Protuberâncias que mais lhes pareciam carne de primeira dependuradas em ganchos num açougue de terceira. Seios dos quais não conseguira se desviar, que imploravam, clamavam por liberdade, por vida própria, que esperavam o milagre de sentirem-se ejetados para o mundo através da fenda do decote generoso. E essas coisas me mexeram com seu imaginário, mas não o envergonhavam, porém eram assuntos proibidos, secretos e dos quais jamais falaria com sua mãe –
E assim, simplesmente com linhas retas, isentas de curvas e de cantos desenhava-se futuro do menino Oscar.

Futuro que poderia prever-lhe enormes dificuldades com o vernáculo dos professores, com a total compreensão dos motivos e da revolta da mãe, ou mesmo a insensibilidade de apreciar a beleza na pétala de uma flor. Porém, jamais haveria a possibilidade de impedir que ele enxergasse ao longe, que não sentisse as sensações da carne, que não entendesse vocábulário das vozes dos esgotos, ou a rude sabedoria dos pecaminosos meninos de rua –

Dona Eunice ao ouvir-lhe a confidência estancou-se surpresa e incrédula diante de tais conclusões, apesar das lágrimas ainda persistirem, agora mais reluzentes que contas de cristais.
O peito arfava e a veia em seu pescoço latejava ritmada como se martelasse um prego em madeira de lei. A feição antes tensa foi perdendo a rigidez quando eclodiu a gargalhada; espalhafatosa, inusual, e que seu pranto foi incapaz de conter.

-Por Deus, Oscar! Você é demente igual ao seu pai! – Exclamou alto e continuou a gargalhar. Ele sorriu tímido e sem nada entender. Ele pensou em perguntar-lhe o que seria "demente" mas algo dentro de si dizia que aquela não era a melhor hora para voltar questionar a mãe.

O riso encharcado emoldurava partes do bonito rosto de dona Eunice, quando, olhando atentamente para o seu guri, certificou-se: Seria necessário trabalhar mais, ganhar mais, encontrar talvez um homem respeitoso e uma escola descente a quem pudesse confiar a educação do filho.
Mais que nunca e sem muito saber, pressentia que se fazia necessário distraí-lo, subtraí-lo das ruas, dos becos escusos e das calçadas de marfim.

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