quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O perturbardor Penny

Naquele instante de sua vida, Penny se viu em duelo; o universo desafiava-lhe a existência. Olhou para seus incompletos 62 anos e pelo vão do precipício vislumbrou o inexorável.

Aspirou fundo; Em si um vazio existencial se assemelhava à fenda onde um vazio de perplexidades se opunha às lucubrações.
No rosto um sorriso melancólico como um crepúsculo avermelhado percebia que os poucos centímetros que o mantinham distante do precipício faziam a diferença entre estar vivo ou morto.
Pelo vão imaginou-se num vôo silencioso rumo ao fim - Pareceu-lhe romântico – Claro, poderia ter havido fantasias em sua vida, aquilo que não fora necessário e que hoje dava falta. Que bom se houvesse alguém debaixo dos cobertores ao entrar da noite, algum parente que viesse visitá-lo nos dias de ação de graça e que trouxesse um peru recheado de farofa com pêssegos. Mas o que! A vida fora mesquinha e nada lhe dera nem amigos para acompanhá-lo nas lutas de boxe nas noites de sábados ou sujeitos que mesmo desconhecidos discutissem as táticas da nobre arte ou que como ele incentivassem alguns talentosos garotos mexicanos, seus preferidos.

-Arremesso-me? – questionou-se por segundos enquanto balançava o corpo num vai-e-vem como um boneco “João Bobo”.

– Sim! Vá em frente - Tentava convencer-se diante da imensidão vazia.

Simplesmente nele não havia a certeza já que há muito desistira das perguntas e principalmente as respostas. Sua existência consistia em receber mensalmente a aposentaria dos seus 35 anos trabalhados numa ferrovia e estirar-se na solidão da cama e revirar-se em lençóis desgastados à procurava de alguma resignação.
Contudo, relutava: Resignar-se com a solidão? Justamente com a doença que o dilacerava? – Não existe resignação na solidão que me é imposta como camisa de força - Concluía o homem de nenhum amor -

Poucas coisas o animavam além do boxe. No inverno gostava de banhar-se no sol morno das 10 da manhã e das noites claras, principalmente quando a lua se encontrava em fase cheia.
Esporadicamente zanzava pelo quintal nas madrugadas juncadas de estrelas que piscavam intermitentes como luzes em árvores de natal.
Mas, o que fazer com cancro da sua solidão? Extirpa-lo como?
A solidão, definitivamente o esfaimava.

Assim, indeciso, persistiu na romântica idéia de se arremessar do penhasco e se pegar planando como o mais belo dos condores, mesmo que desasado. Será que voar seria mais que o vento assoprando a vida? Será que vôo solitário o faria descobrir outras dores além daquela que o aguardava ao explodir nos rochedos? – Ele haveria de saber - Claro, e depois de tudo sacramentado o seu espírito presenciaria o sangue rompendo caminhos entre as pedras, criando veios que não desaguariam em lugar algum – Um obscuro Penny sorriu para esses pensamentos – Eles lhes pareciam ainda mais romanescos naquele momento -
E naqueles instantes que antecediam à sua decisão, recordou-se do professor de física nos tempos do ginásio; Sabia que a insensibilidade do mestre faria encarar a situação vivida por ele como um mero exercício gravitacional, equação a ser respondida pelo confronto do Peso versus Altura, variáveis que determinariam inclusive a velocidade do corpo até o choque. “ O professor Archimedes era um grande sacana! - Ele sabia que o perfeccionismo e a frieza do mestre seriam capazes de calcular até a quantidade de segundos e a carga do peso quando o seu corpo atingisse as rochas -

Ao voltar a dessas recordações algo à beira daquele penhasco o incomodava – Penny jamais se dera com os números. Todavia pareceu-lhe importante equacionar a questão, como se dependesse dela a sua sobrevivência:

- Vejamos...Se eu peso algo entre 110 e 115 quilos.....E supondo que a altura daqui até às pedras seja por volta de uns 300 metros.... Portanto.... Será que é o peso vezes a altura? - Ele tentava equacionar –

-Não! Não é isso! Como é mesmo a fórmula pra encontrar a velocidade?..... – Pode me dar dois minutos? Pediu a si como solicitasse ao professor.

Desistiu. Não se lembrava - O passar dos anos consumíra-lhe tanto as fórmulas como o juízo - Repentinamente tudo lhe pareceu estranhamente gélido e o romantismo se afastou dali – O exercício com a exatidão dos números pareceu nocauteá-lo – E em não conseguindo decepcionou-se consigo –

- Einstein deve estar se descabelando em seu túmulo - Resmungou consigo diante tanta ignorância.
Portanto, derrotado, só sobrou o arrependimento e o seu pé esquerdo chutando as pequenas pedras que estavam na beirada e que despencaram no nada.



Contudo, a desistência não aplacou-lhe uma sensação de angústia. Com os olhos vitrificados Penny aguardava o momento das pedras se chocarem contras as rochas. Esperou por alguns segundos e nada ocorreu – “ Acho que não calculei corretamente a altura” - Sussurrou para si num amargo e culposo sorriso, desses de quem jamais acerta no alvo, mesmo que esteja afixado na testa.

- Penny, seu imbecil! Ainda bem que não perdeu tempo com mais cálculos estúpidos! – Gritou.

“Penny, seu imbecil... – O eco ressoou –.

Ao escutar-se, surpresa; era a primeira vez que se pegava falando consigo e a impressão de estar interagindo com seu Eu, como se houvesse um outro Penny, invisível, desconhecido, porém não tão imbecil.

-Caracas! Como é mesmo? Por que a voz se propaga no espaço vazio?

Pensou por alguns segundos - desistiu novamente - Resoluto, aspirou e inflou o tórax e outra vez olhou para o vão e sentiu vertigens - as pernas tremulavam. Em seguida, retrocedeu alguns passos até sentir-se seguro. Assim que percebeu estar fora de perigo girou o corpo num 180 graus e retornou para o Fusca 63, Andou os menos de 30 metros que separavam o seu carro do abismo, abriu a porta e acomodou-se no banco com alguma dificuldade. Olhou no velocímetro, enfiou a chave no contato e permaneceu circunspeto. Repentinamente percebeu escorpião transitando despreocupadamente pelo painel. Com a violência da mão fechada, o golpe veio rápido e certeiro para a surpresa do pequeno artrópode – não houve chances para ele

- Penny, seu covarde! Por que não se atirou com essa lata velha como em “ A Morte no Desfiladeiro? – Perguntou-se ao limpar a mão num chumaço de papel higiênico que trazia no porta-luvas.

E a imagem de um carro voando pelo desfiladeiro veio de momento ao relembrar um filme onde duas garotas abandonaram suas vidas ocas e partiram para uma aventura no nada. Entretanto as circunstâncias fizeram-nas se envolver no assassinato de um policial, o que se fez motivos do rancor da corporação e da caçada que lhes impuseram. Foi assim, encurraladas e sem saída e à beira do precipício resolveram arremessar-se com um Ford Maveric, nas profundezas do Grand Canyon, afinal elas sabiam que morreriam de um jeito ou de outro- Penny sorriu ressentido dessa recordação:

- É. Os filmes têm esse dom. Essa coisa de tornar as situações apaixonantes e justificáveis – Nelas tudo se legitima, até o inaceitável - Suspirou –

Então relembrou que estava estirado e tenso numa poltrona da terceira fila do cinema ao presenciar esse infeliz desfecho –

- Meu Deus! Elas se arremessaram e você achou aquilo o máximo - Penny se cobrou enquanto se recordava de outras partes desesperadoras da película.

- Por que esses caras nos fazem crer em tudo que transpõem nas telas? Serão as suas necessidades de desdenhar daquilo no que nos possa ser sensível? – Perguntou-se num riso melancólico enquanto inspecionava o rosto no espelho retrovisor.

Permaneceu sentado por mais alguns instantes; avaliava a situação. Um pouco além a revolta eclodiu dentro de si e ele gritou ao socar o volante:

- Penny, mais uma vez você dá provas que é um completo idiota! Quer saber o por que? Pois bem, imbecil! Morrer dessa forma, pra que?

E persistiu em sua ira:

Não é você que diz que odeia a falta de originalidade e os lugares comuns? Então imbecil! Só tu pra pensar num treco desses! Só tu e esse teu cérebro de centopéia – Recriminou-se furioso.

Definitivamente, Penny era assim; faria o impossível para acreditarmos que preferia ver sua alma penando no mais profundos dos infernos que morrendo no logro e nas fantasias americanas – Hollywood ficara pra trás, perdida irremediavelmente nas lembranças de um tempo onde pactuar com fraudes era legitimá-las num santuário de hipocrisias – Definitivamente a obsessão pelo engodo das telas de cinema fazia parte de um passado longínquo, não mais do agora e nem naquele momento. Além de que morrer naquelas condições seria incompatível com sua convicção comunista - Justificou-se -
Decidido, girou a chave e acelerou até ouvir as lamúrias do seu combalido Wolkswagem.

- Bye bye, dona morte! – Bradou na direção do abismo-

“Bye bye, dona morte!” – O eco repercutiu numa tonalidade um pouco mais amena enquanto o sujeito que parecia maior que o carro abandonava o local.

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Hoje, passados dois anos, Penny sofre de alguns distúrbios. Numa de suas fugas tornou-se um maníaco, num desenfreado consumidor das promoções em sebos. À preços interessantes, Penny lê de tudo: de Dostoievski à Nietzsche, de Sartre à Baudelaire. Penny, jamais se fia na história como ela é e assume posições contraditórias; É comum flagrá-lo discutindo com Lenin, Churchill, Adolf, e até mesmo o general McCarthy. Porém, independente das questões filosóficas e políticas em que se meteu jamais conseguiu livrar-se do estigma de ser um fraco, de não ter tido a coragem do basta quando teve a oportunidade . E isso, de um jeito ou de outro têm lhe custado o preço mais caro; Não há uma única noite que Penny não se faça o inevitável questionamento:

- Confesse, Penny!, você se arrependeu de não ter se arremessado, não é verdade?-

E a resposta quem lhe dá não é o herói que há muito desistiu de si, e sim o algoz que ridiculariza da sua consciência; a convicção do seu outro Eu:

- Penny, tu és um poltrão solitário! Fui me fiar em você e me vejo aqui quando deveria estar apodrecido e sepultado no fundo daquele vale – Costuma insultar-se toda vez que se pega refletido no espelho -

Todas as angústias o têm destroçado e gerado em si outras personalidades. Então, sem no que possa se apoiar, efêmero abandona a existência e passa a meditar por longos períodos. Na volta das meditações sempre a mesma pergunta - “E se eu tivesse entregue meu destino às pedras, o que elas decidiriam?”
E surpreendentemente nestas ocasiões o ranço do ser dotado de alguma lucidez aflora em si. E a transitoriedade incorpora nele como esses espíritos maus que se empanturram de galinhas negras e cachaças ordinárias compradas em mercearias de esquina.

-Penny, tu és um calhorda pusilânime! Pedras não vivem, já nascem mortas! Passastes do tempo de saber destas coisas! – Diz-lhe o outro, desafiando-o . Após a discussão ambos os Penny se encerram num silêncio sepulcro, às vezes por semanas.

Quando não, o personagem incorporado na covardia do seu ser responsabiliza as pequenas pedras pela coragem que não teve - Nesses momentos presenciamos o delírio de suas doentias atuações num fraudulento jogo do faz de contas.
Contudo, sempre ao escolher um livro entre o pó da estante, vêm à sua mente a mais estranha das certezas - queria ser pedra, igual às pedras, sentir como elas.

- Ouvir e jamais confessar – Sussurra ao vento ao resgatar o livro empoeirado.


sábado, 12 de dezembro de 2009

O desempregado


Minha vida estava uma merda em 1984. Sem trabalho e despedido há mais de cinco meses eu perambulava pelas ruas de Sampa  à cata dos empregos possíveis e impossíveis. Minhas qualificações medianas, a princípio faziam-me topar qualquer parada que me fizesse estar dentro de um escritório com cinzeiro na mesa, resolvendo assuntos chatos e burocráticos.
Com alguma sorte fiquei para segundo turno em duas entrevistas, ambas agendadas para o mesmo dia.
Na primeira, na hora marcada eu lá estava pra falar com um tal de senhor Rodolfo. Sentei numa cadeira em frente à sua mesa, e ele com meu currículo em mãos ficou repetindo tudo que eu havia grafado “Vejamos... Rotinas de escritório, conhecimentos de departamento pessoal e escrituração fiscal. Hum...e muitos anos de registro numa mesma empresa. Muito bom isso!” Um sorriso largo acompanhava seu rosto e eu sentia que ele tinha gostado mais do meu currículo que de mim;  já era algo.

- Senhor Péricles, vamos ver se vou bem com a minha bola de cristal? – Questionou-me com um olhar desconfiado - Pelo seu tipo, imagino que és corintiano, suponho – Disse-me apontando o indicador - Estranhei; aquela  afirmação em forma de pergunta - Mas como pareceu-me simpático, imaginei ser um dos meus.

-Claro! Fanático, senhor. Não perco um jogo do Timão! – Exclamei entusiasmado –

-Claro, corintiano..corintiano. É isso, um corintiano...corintiano... – Ele divagava olhando na direção da estante – Depois, conciso completou: - Aguarde um telegrama nosso, Sr. Péricles.

Curiosamente o seu sorriso não estava ali ao me levantar surpreso e estender-lhe a mão em despedida.
Ele olhou-me com algum enfado e depois a contragosto tentou retribuir o cumprimento. Ao fazê-lo, seu braço esbarrou num porta-retrato que estava na sua mesa e virado para si.  Foi então que entendi que aquele se  fizera o motivo de minha desgraça: O porta-retrato, na verdade era um porquinho, e tombado foi que reparei na foto que ele carregava.
Nele estavam o seu Rodolfo, acompanhado da senhora  porca e os seus três porquinhos. Todos gordos e aparentando felicidade em suas  rubras faces. Nos três, a mesma camiseta verde e onde se via o escudo do Palmeiras.
E antes que ele me empurrasse de vez da sua sala me ative em detalhes do escritório do Sr. Rodolfo, e os quais não tinha notado. Estupidamente, ou talvez por ansiedade eu não percebera um enorme periquito de louça, uniformizado de palestrino, centralizado numa estante funcional, lateral à sua mesa. – “Maldito papagaio!” – murmurei ao me mandar de lá.

Naquela mesma tarde lá estava eu em outra parte nobre da cidade, à bordo do mesmo e melhor dos meus dois únicos ternos.

-Sr. Péricles, muito bom o seu currículo! – O Sr. Alberto Roberto pareceu-me entusiasmado, sentado na sua confortável poltrona executiva. Eu me encontrava num luxuoso escritório da Avenida Brasil.

Pelo jeito o Sr. Alberto Roberto devia ser o gerente geral, ou algo maior naquela empresa de engenharia. Eu o achei simpático; um desses caras com rosto másculo, boa pinta, barba serrada, apesar de feita com esmero. O seu perfume forte impregnava o ar quando parabenizou-me pelo currículo. Repentinamente permaneceu estático e me olhou por alguns instantes. Sua voz soou como trovão:

-Sr. Péricles, aposto que és corintiano!

“Mas que merda era aquela de enfiar assuntos futebolísticos no meio de entrevistas de emprego?” – balbucei comigo mesmo – “Bem...Deve ser alguma inovação, uma nova  técnica que consegue vislumbrar o candidato de perfil ideal” – imaginei – Afinal  aqueles  caras de RH sempre apareciam com novidades interessantes.

Em todo caso ele aguardava a resposta. E eu a dei sem titubear e nem parecer nervoso:

-Não, não sou! Sou Palmeirense. Na verdade, não perco um jogo do Verdão, senhor Alberto!

-Ah, que pena! Eu sou um corintiano,fanático – Devolveu, levantando os ombros para depois deixa-los cair, despretensiosos.

“Puta que pariu! Dei bola fora de novo!!” – murmurei  -  Paciência, eu era humano  -
Entretanto se fazia tarde para confessar-me corintiano, talvez se o fizesse naquele instante eu o levasse a acreditar que não havia firmeza de caráter em mim.

-Bem...Isso não me faz a menor diferença, senhor Péricles! Cada qual tem o seu time do coração, sua religião, não é verdade? - O senhor Alberto confortava-me num aprazível sorriso. Concordei meneando a cabeça. E assim uma nova pergunta surgiu; dessa vez olhou-me mais compenetrado.

-Sr. Péricles, o que senhor acha desses homens que ficam se encostando em outros homens nos metrôs, ônibus, trens, ou outro qualquer lugar? – Seu ar sisudo e sua voz de Cid Moreira mexiam com meus nervos. Eu pensei por alguns segundos – “Prova de macho testando macho” supus – Talvez não gostassem de sujeitos delicados naquela empresa. Procurei me expressar de forma que não deixasse qualquer margem para outra interpretação:

-Bem....Pra falar a verdade, Sr. Alberto, eu acho isso meio asqueroso. Pior, acho falta de vergonha na cara ficar demonstrando a homossexualidade em lugares públicos. Sempre procuro fugir desses sujeitos.

Nesse instante a secretária chamou-o ao telefone. “Pode passar” – ele ordenou a ela. Assim que a ligação foi direcionada para sua mesa, o Sr. Alberto fez questão de interagir com a outra pessoa no viva-voz:

-Oi amor! Tudo bem? – Perguntou alguém do outro lado. Inclusive o timbre da voz da pessoa se assemelhava em à tonalidade de Maria Bethânia.


-Tudo bem meu amor! – Respondeu o gerente – Eu estou com um candidato ao cargo de assistente de pessoal. Mas ele já está de saída – Cientificou-a enquanto com o dedo indicador fazia voltas no fio do telefone.

-Amor, me promete que você não virá tarde, hoje? – Insistiu a outra pessoa.

-Sim, prometo! Fique tranqüilo ,Carlos Augusto, não chegarei tarde em casa! – Te amo, ta?

“Hã? – Carlos Augusto?” – Murmurei perplexo.

-Ta bom amor! Ta apostando nisso! Um beijo, paizinho. Te amo! – Despediu-se a Bethânia, aliás, o Carlos Augusto.
-Um beijo, amor! – Retribuiu com ternura o gerente-geral, desligando o telefone.

Em seguida o Sr. Alberto Roberto, levantou-se de sua confortável poltrona de couro grená e sem estender-me a mão foi solene:

-Sr. Péricles, assim que necessário faremos.....
Eu já percebera tudo. Não o deixei terminar a frase:

-Já sei, já sei, farão contato, me mandarão um telegrama! Tô sabendo, paizinho! – Definitivamente, sutilezas psicológicas nunca se constituíram no meu forte -

-Ponha-se daqui pra fora, seu cafajeste! – Alberto Roberto levantou-se irritado. Estranhei; era a primeira vez que ele demonstrara alguma afetação na voz, ao passo que com o dedo em riste me indicava a porta de saída.

Sai de lá um tanto aborrecido. Porém, achei melhor assim; evitar-se-ia qualquer eventualidade do gerente vir com “coisinhas” pra cima de mim. Bem, e se acontecesse algo nesse sentido? Bom, aí as coisas talvez não terminassem bem. No fundo, não se tratava do fato de considerar-me preconceituoso, e a questão de chamá-lo de “paizinho” apenas traduzia a minha frustração de ver um emprego quase certo descendo pelo elevador de serviço, desgovernado. Fora isso, eu gostava de respeitar o espaço dos outros, fosse qual fosse, como também fazia questão que respeitassem o meu.

E assim, sem nada por fazer ou qualquer outra entrevista agendada peguei um ônibus e desci no Vale do Anhangabau. Na estação, o pouco dinheiro no bolso não abrandava a ira dos famintos rinocerontes que bramiam disparates em meu estômago. E como a fome não cedia resolvi ir ao Mappin da Praça Ramos de Azevedo. O calor insuportável fazia o tecido encorpado do meu terno parecer uma fornalha. Eu vertia em bicas quando entrei no enorme magazine e procurei um dos bebedouros que abasteciam o local. Encontrando-o, pressionei o botão e bebia calmamente num jorro de água gelada, quando ouvi uma voz estridente:
- Ô manhê, porque o moço ta todo molhado? – Era uma garotinha duns 7 anos que a questionava apontando o dedo na minha direção - talvez curiosa com as marcas do suor que transpassaram o tecido e marcaram-me com bolas enormes, acentuadamente abaixo das axilas -

-Larga de ser enxerida, menina! – Ralhou a mãe; uma moça morena, bonita, que parecia exalar sexo.

A garotinha olhou para mim e me sorriu, sorri também. Olhei para a mamãe gostosa e ela também sorria, devolvi. Assim que me senti refrescado prestei atenção em suas fisionomias. Inacreditável! A mãe vestia uma camiseta do Corinthians, negra com listras brancas, e uma calça bege, apertada, que moldava-lhe o espetacular rabo. A garotinha usava uma regata do Palmeiras e um tênis verde e branco para combinar - talvez por imposição do marido – Mas, eu tinha a arte de saber distinguir os sorrisos, portanto os alegres olhos da mamãe me diziam muito mais que: “você está uma gracinha dentro deste terno ensopado” – eu sabia – A minha vida não era, grana difícil, relacionamento difícil, o dia-a-dia difícil, mas não poderia me dar ao luxo de perder aquele rabo espetacular:

-A moça é corintiana? – Pergunta imbecil, óbvio, mas eu tinha que começar de algum lugar.

-Sim, sou! Adoro o meu Timão! – Disse-me abrindo um largo sorriso, jogando para trás os sedosos cabelos negros.

E ao jogar os cabelos para trás eu mais que nunca percebia que ela tinha ido com a minha cara. Em seguida olhei para a garotinha e ela não me perdia de vista. Foi então que me lembrei que no bolso interno do paletó havia um tablete de drops da Dulcora, fechado – Morango – garotinhas adoravam o sabor morango. Dei para ela e ela sorriu, a mamãe sorriu, e eu sorri também.

-É o pai dela que é palmeirense? – Arrisquei.

-Não, não! Na verdade o meu irmão que é palmeirense, e como ela ama de paixão o tio, ele conseguiu essa proeza, apesar dos meus protestos – Respondeu-me num sorriso arrasador, para depois completar: - Me separei há quase três anos.

Concentrei-me outra vez em seu olhar e ele parecia me dizer: “Cara, me conheça e deixe eu te conhecer” Saquei o seu lance e fiquei ali jogando conversa fora, acompanhando-a pela seção das roupas infantis, roçando suavemente naquele corpo mágico, agora mais bem mais a vontade.

-Tio! Que time você torce? – Perguntou-me a pequena enquanto puxava-me pelo punho do paletó e chupava seus drops.

-Bem...na verdade torço para dois times! – E pisquei pra ela.

-Dois, tio? Mas pode isso? – Questionou-me com olhos arregalados.

-Pode meu doce! Tanto pode que sou corintiano e palmeirense, ao mesmo tempo – Sorri-lhe

-Ahhhhhhh! E eu também posso ser corintiana e palmeirense? – Ela quis saber.

-Claro que pode! - Afirmei.

-Obaaaaaaaaa! Então a partir de hoje eu sou palmeirense e corintiana. Assim eu deixo a mamãe feliz e o meu tio tamb....Ih, acho que ele não vai ficar feliz, não! – Exclamou alegre, terminando a frase com um riso que só a pureza das crianças emanam.

A mamãe gostosa riu gostoso, eu ri, todos rimos parecendo satisfeitos. O fim de tarde era inevitável, o dia inevitável e continuar vivendo era meramente uma questão de opção. Aos poucos, andando por aqueles corredores abarrotados de roupas, toalhas, panelas, eu percebia que  ela sorria pra mim mais à vontade enquanto suas delicadas mãos deslizavam pelos braços do meu paletó. Naquele mesmo fim de crepúsculo eu as acompanhei até o ponto de ônibus, onde trocamos os telefones e algumas perceptíveis carícias. O mundo continuava girando, rotação, translação, e o homem já havia pisado na lua. À cada instante éramos surpreendidos por acontecimentos e descobertas imprevisíveis, e isso de certa forma sempre se aplicara à minha vida. Assim que ela partiu, o seu ônibus  deixou um negro rastro de  fumaça. Dirigi-me para o meu ponto. O horário do rush me fez permanecer numa fila imensa, onde as pessoas conversavam sem se olharem nos olhos como  jamais fossem adoecer.  Olhei para debaixo dos meus braços e não mais havia as marcas do suor no azul marinho do tecido - "ainda bem" murmurei – a eficácia do meu desodorante vencera exatamente as cinco e meia da tarde. Entrei e consegui um lugar na fileira do banco traseiro, espremido entre a obsidade de uma senhora dos seus 50 anos, e de um rapaz magricela  com tipo de bancário.
O ônibus ao sair deixou as mesmas negra marca impregnando o ar, e eu imaginei que isso se tornaria um problema terrível num futuro não tão distante. E pensando no futuro foi que resolvi viver do presente, mas não antes de imaginar se eu arrumaria um emprego no dia seguinte.