sábado, 12 de dezembro de 2009

O desempregado


Minha vida estava uma merda em 1984. Sem trabalho e despedido há mais de cinco meses eu perambulava pelas ruas de Sampa  à cata dos empregos possíveis e impossíveis. Minhas qualificações medianas, a princípio faziam-me topar qualquer parada que me fizesse estar dentro de um escritório com cinzeiro na mesa, resolvendo assuntos chatos e burocráticos.
Com alguma sorte fiquei para segundo turno em duas entrevistas, ambas agendadas para o mesmo dia.
Na primeira, na hora marcada eu lá estava pra falar com um tal de senhor Rodolfo. Sentei numa cadeira em frente à sua mesa, e ele com meu currículo em mãos ficou repetindo tudo que eu havia grafado “Vejamos... Rotinas de escritório, conhecimentos de departamento pessoal e escrituração fiscal. Hum...e muitos anos de registro numa mesma empresa. Muito bom isso!” Um sorriso largo acompanhava seu rosto e eu sentia que ele tinha gostado mais do meu currículo que de mim;  já era algo.

- Senhor Péricles, vamos ver se vou bem com a minha bola de cristal? – Questionou-me com um olhar desconfiado - Pelo seu tipo, imagino que és corintiano, suponho – Disse-me apontando o indicador - Estranhei; aquela  afirmação em forma de pergunta - Mas como pareceu-me simpático, imaginei ser um dos meus.

-Claro! Fanático, senhor. Não perco um jogo do Timão! – Exclamei entusiasmado –

-Claro, corintiano..corintiano. É isso, um corintiano...corintiano... – Ele divagava olhando na direção da estante – Depois, conciso completou: - Aguarde um telegrama nosso, Sr. Péricles.

Curiosamente o seu sorriso não estava ali ao me levantar surpreso e estender-lhe a mão em despedida.
Ele olhou-me com algum enfado e depois a contragosto tentou retribuir o cumprimento. Ao fazê-lo, seu braço esbarrou num porta-retrato que estava na sua mesa e virado para si.  Foi então que entendi que aquele se  fizera o motivo de minha desgraça: O porta-retrato, na verdade era um porquinho, e tombado foi que reparei na foto que ele carregava.
Nele estavam o seu Rodolfo, acompanhado da senhora  porca e os seus três porquinhos. Todos gordos e aparentando felicidade em suas  rubras faces. Nos três, a mesma camiseta verde e onde se via o escudo do Palmeiras.
E antes que ele me empurrasse de vez da sua sala me ative em detalhes do escritório do Sr. Rodolfo, e os quais não tinha notado. Estupidamente, ou talvez por ansiedade eu não percebera um enorme periquito de louça, uniformizado de palestrino, centralizado numa estante funcional, lateral à sua mesa. – “Maldito papagaio!” – murmurei ao me mandar de lá.

Naquela mesma tarde lá estava eu em outra parte nobre da cidade, à bordo do mesmo e melhor dos meus dois únicos ternos.

-Sr. Péricles, muito bom o seu currículo! – O Sr. Alberto Roberto pareceu-me entusiasmado, sentado na sua confortável poltrona executiva. Eu me encontrava num luxuoso escritório da Avenida Brasil.

Pelo jeito o Sr. Alberto Roberto devia ser o gerente geral, ou algo maior naquela empresa de engenharia. Eu o achei simpático; um desses caras com rosto másculo, boa pinta, barba serrada, apesar de feita com esmero. O seu perfume forte impregnava o ar quando parabenizou-me pelo currículo. Repentinamente permaneceu estático e me olhou por alguns instantes. Sua voz soou como trovão:

-Sr. Péricles, aposto que és corintiano!

“Mas que merda era aquela de enfiar assuntos futebolísticos no meio de entrevistas de emprego?” – balbucei comigo mesmo – “Bem...Deve ser alguma inovação, uma nova  técnica que consegue vislumbrar o candidato de perfil ideal” – imaginei – Afinal  aqueles  caras de RH sempre apareciam com novidades interessantes.

Em todo caso ele aguardava a resposta. E eu a dei sem titubear e nem parecer nervoso:

-Não, não sou! Sou Palmeirense. Na verdade, não perco um jogo do Verdão, senhor Alberto!

-Ah, que pena! Eu sou um corintiano,fanático – Devolveu, levantando os ombros para depois deixa-los cair, despretensiosos.

“Puta que pariu! Dei bola fora de novo!!” – murmurei  -  Paciência, eu era humano  -
Entretanto se fazia tarde para confessar-me corintiano, talvez se o fizesse naquele instante eu o levasse a acreditar que não havia firmeza de caráter em mim.

-Bem...Isso não me faz a menor diferença, senhor Péricles! Cada qual tem o seu time do coração, sua religião, não é verdade? - O senhor Alberto confortava-me num aprazível sorriso. Concordei meneando a cabeça. E assim uma nova pergunta surgiu; dessa vez olhou-me mais compenetrado.

-Sr. Péricles, o que senhor acha desses homens que ficam se encostando em outros homens nos metrôs, ônibus, trens, ou outro qualquer lugar? – Seu ar sisudo e sua voz de Cid Moreira mexiam com meus nervos. Eu pensei por alguns segundos – “Prova de macho testando macho” supus – Talvez não gostassem de sujeitos delicados naquela empresa. Procurei me expressar de forma que não deixasse qualquer margem para outra interpretação:

-Bem....Pra falar a verdade, Sr. Alberto, eu acho isso meio asqueroso. Pior, acho falta de vergonha na cara ficar demonstrando a homossexualidade em lugares públicos. Sempre procuro fugir desses sujeitos.

Nesse instante a secretária chamou-o ao telefone. “Pode passar” – ele ordenou a ela. Assim que a ligação foi direcionada para sua mesa, o Sr. Alberto fez questão de interagir com a outra pessoa no viva-voz:

-Oi amor! Tudo bem? – Perguntou alguém do outro lado. Inclusive o timbre da voz da pessoa se assemelhava em à tonalidade de Maria Bethânia.


-Tudo bem meu amor! – Respondeu o gerente – Eu estou com um candidato ao cargo de assistente de pessoal. Mas ele já está de saída – Cientificou-a enquanto com o dedo indicador fazia voltas no fio do telefone.

-Amor, me promete que você não virá tarde, hoje? – Insistiu a outra pessoa.

-Sim, prometo! Fique tranqüilo ,Carlos Augusto, não chegarei tarde em casa! – Te amo, ta?

“Hã? – Carlos Augusto?” – Murmurei perplexo.

-Ta bom amor! Ta apostando nisso! Um beijo, paizinho. Te amo! – Despediu-se a Bethânia, aliás, o Carlos Augusto.
-Um beijo, amor! – Retribuiu com ternura o gerente-geral, desligando o telefone.

Em seguida o Sr. Alberto Roberto, levantou-se de sua confortável poltrona de couro grená e sem estender-me a mão foi solene:

-Sr. Péricles, assim que necessário faremos.....
Eu já percebera tudo. Não o deixei terminar a frase:

-Já sei, já sei, farão contato, me mandarão um telegrama! Tô sabendo, paizinho! – Definitivamente, sutilezas psicológicas nunca se constituíram no meu forte -

-Ponha-se daqui pra fora, seu cafajeste! – Alberto Roberto levantou-se irritado. Estranhei; era a primeira vez que ele demonstrara alguma afetação na voz, ao passo que com o dedo em riste me indicava a porta de saída.

Sai de lá um tanto aborrecido. Porém, achei melhor assim; evitar-se-ia qualquer eventualidade do gerente vir com “coisinhas” pra cima de mim. Bem, e se acontecesse algo nesse sentido? Bom, aí as coisas talvez não terminassem bem. No fundo, não se tratava do fato de considerar-me preconceituoso, e a questão de chamá-lo de “paizinho” apenas traduzia a minha frustração de ver um emprego quase certo descendo pelo elevador de serviço, desgovernado. Fora isso, eu gostava de respeitar o espaço dos outros, fosse qual fosse, como também fazia questão que respeitassem o meu.

E assim, sem nada por fazer ou qualquer outra entrevista agendada peguei um ônibus e desci no Vale do Anhangabau. Na estação, o pouco dinheiro no bolso não abrandava a ira dos famintos rinocerontes que bramiam disparates em meu estômago. E como a fome não cedia resolvi ir ao Mappin da Praça Ramos de Azevedo. O calor insuportável fazia o tecido encorpado do meu terno parecer uma fornalha. Eu vertia em bicas quando entrei no enorme magazine e procurei um dos bebedouros que abasteciam o local. Encontrando-o, pressionei o botão e bebia calmamente num jorro de água gelada, quando ouvi uma voz estridente:
- Ô manhê, porque o moço ta todo molhado? – Era uma garotinha duns 7 anos que a questionava apontando o dedo na minha direção - talvez curiosa com as marcas do suor que transpassaram o tecido e marcaram-me com bolas enormes, acentuadamente abaixo das axilas -

-Larga de ser enxerida, menina! – Ralhou a mãe; uma moça morena, bonita, que parecia exalar sexo.

A garotinha olhou para mim e me sorriu, sorri também. Olhei para a mamãe gostosa e ela também sorria, devolvi. Assim que me senti refrescado prestei atenção em suas fisionomias. Inacreditável! A mãe vestia uma camiseta do Corinthians, negra com listras brancas, e uma calça bege, apertada, que moldava-lhe o espetacular rabo. A garotinha usava uma regata do Palmeiras e um tênis verde e branco para combinar - talvez por imposição do marido – Mas, eu tinha a arte de saber distinguir os sorrisos, portanto os alegres olhos da mamãe me diziam muito mais que: “você está uma gracinha dentro deste terno ensopado” – eu sabia – A minha vida não era, grana difícil, relacionamento difícil, o dia-a-dia difícil, mas não poderia me dar ao luxo de perder aquele rabo espetacular:

-A moça é corintiana? – Pergunta imbecil, óbvio, mas eu tinha que começar de algum lugar.

-Sim, sou! Adoro o meu Timão! – Disse-me abrindo um largo sorriso, jogando para trás os sedosos cabelos negros.

E ao jogar os cabelos para trás eu mais que nunca percebia que ela tinha ido com a minha cara. Em seguida olhei para a garotinha e ela não me perdia de vista. Foi então que me lembrei que no bolso interno do paletó havia um tablete de drops da Dulcora, fechado – Morango – garotinhas adoravam o sabor morango. Dei para ela e ela sorriu, a mamãe sorriu, e eu sorri também.

-É o pai dela que é palmeirense? – Arrisquei.

-Não, não! Na verdade o meu irmão que é palmeirense, e como ela ama de paixão o tio, ele conseguiu essa proeza, apesar dos meus protestos – Respondeu-me num sorriso arrasador, para depois completar: - Me separei há quase três anos.

Concentrei-me outra vez em seu olhar e ele parecia me dizer: “Cara, me conheça e deixe eu te conhecer” Saquei o seu lance e fiquei ali jogando conversa fora, acompanhando-a pela seção das roupas infantis, roçando suavemente naquele corpo mágico, agora mais bem mais a vontade.

-Tio! Que time você torce? – Perguntou-me a pequena enquanto puxava-me pelo punho do paletó e chupava seus drops.

-Bem...na verdade torço para dois times! – E pisquei pra ela.

-Dois, tio? Mas pode isso? – Questionou-me com olhos arregalados.

-Pode meu doce! Tanto pode que sou corintiano e palmeirense, ao mesmo tempo – Sorri-lhe

-Ahhhhhhh! E eu também posso ser corintiana e palmeirense? – Ela quis saber.

-Claro que pode! - Afirmei.

-Obaaaaaaaaa! Então a partir de hoje eu sou palmeirense e corintiana. Assim eu deixo a mamãe feliz e o meu tio tamb....Ih, acho que ele não vai ficar feliz, não! – Exclamou alegre, terminando a frase com um riso que só a pureza das crianças emanam.

A mamãe gostosa riu gostoso, eu ri, todos rimos parecendo satisfeitos. O fim de tarde era inevitável, o dia inevitável e continuar vivendo era meramente uma questão de opção. Aos poucos, andando por aqueles corredores abarrotados de roupas, toalhas, panelas, eu percebia que  ela sorria pra mim mais à vontade enquanto suas delicadas mãos deslizavam pelos braços do meu paletó. Naquele mesmo fim de crepúsculo eu as acompanhei até o ponto de ônibus, onde trocamos os telefones e algumas perceptíveis carícias. O mundo continuava girando, rotação, translação, e o homem já havia pisado na lua. À cada instante éramos surpreendidos por acontecimentos e descobertas imprevisíveis, e isso de certa forma sempre se aplicara à minha vida. Assim que ela partiu, o seu ônibus  deixou um negro rastro de  fumaça. Dirigi-me para o meu ponto. O horário do rush me fez permanecer numa fila imensa, onde as pessoas conversavam sem se olharem nos olhos como  jamais fossem adoecer.  Olhei para debaixo dos meus braços e não mais havia as marcas do suor no azul marinho do tecido - "ainda bem" murmurei – a eficácia do meu desodorante vencera exatamente as cinco e meia da tarde. Entrei e consegui um lugar na fileira do banco traseiro, espremido entre a obsidade de uma senhora dos seus 50 anos, e de um rapaz magricela  com tipo de bancário.
O ônibus ao sair deixou as mesmas negra marca impregnando o ar, e eu imaginei que isso se tornaria um problema terrível num futuro não tão distante. E pensando no futuro foi que resolvi viver do presente, mas não antes de imaginar se eu arrumaria um emprego no dia seguinte.

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