sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Transtorno compulsivo de um cinéfilo depravado

Há pouco mais de dois anos a vida não poderia ter  estado pior para aquele sujeito que sonhara se formar em Artes e ser um famoso diretor de cinema, sua paixão. Seus devaneios na época estavam voltados para uma carreira de sucesso e uma mansão paradisíaca numa praia do nordeste brasileiro. Porém o sonho terminou tão rápido quanto começou, findando-se na bancarrota do seu pai diante das mesas de carteado.
E foi assim,  na qualidade de falidos que através de um favor do amigo de seu pai  que ele se viu obrigado a abandonar o seu primeiro semestre de Faculdade e travar contato com aquilo que tornaria o seu ramo de fé; a metalurgia.
Portanto, passados mais de 30 anos, lá estava ele diante de nova e surpreendente sinuca - O bilhete azul - Desta vez a demissão chegara depois de15 longos anos na linha de produção de uma montadora de veículos.
E as coisas ainda ficariam piores para o filho único de uma família que não mais existia,  um ex-garoto de  48 e que ainda tinha pela frente  10 misericordiosos anos até à aposentadoria. Claro, profissional e  realista ele não vislumbrava um futuro de calmarias e nem horizontes bem delineados.

Ele se recorda que após o aviso perambulou feito louco à caça de um novo emprego. Insistiu por diversas multinacionais, mas a recessão demitira a ele e outros tantos milhares de metalúrgicos.
E foi naquela circunstância, na solidão da sua vida, nas durezas do dia-a-dia que ele se viu enredado por um crescente processo de síndromes e esquisitices; Repentinamente o coração disparava e as pernas e os braços davam sinais de uma dormência estranha. Pior ainda se tais sintomas se manifestassem em ambientes fechados ou de  farta aglomeração; Era transtorno total.
Porém nem tudo parecia perdido. Por sorte e por conta da garantia adicional de 24 meses em seu plano de saúde marcou uma consulta com um neurologista que lhe quis descer goela abaixo poderosos comprimidos para euforia, pânico, além da costumeira insônia – Também pudera! Ele falara seguido por mais de 60 minutos até a impaciência do médico se tornar  perceptível. 
Abreviado pelo médico, ao término da consulta o doutor lhe entregara um cartão de visita,  além do receituário com  as indicações dos tarjas negras.

-Rapaz, acredite! Seus problemas serão resolvidos por esse homem! - Disse-lhe num entusiasmo, empurrando-o para fora da sala.

Ele pegou o cartão e passou os olhos por umas letras que pareciam desenhadas a mão. Estava impresso com letras e motivos góticos:
Aristides Prado Junqueira – Psicanalista -

Evidente, um neuro enviando-o a um psicanalista,  só poderia ser uma questão do lucro corporativo – Pensou com seus botões enquanto se dirigia para a porta de saída do conjunto.
De lá acenou um adeus para o doutor que recebia e fazia entrar no consultório a primeira cliente de uma sala abarrota de indivíduos com algum tipo de problema.

-Óh, que prazer em revê-la dona  Eufrásia! O que a traz aqui? – Perguntava-lhe alegremente, acariciando suavemente as costas daquela senhora dos seus 70 anos.
"Caracas!" Ele era obrigado a admitir; Aquele homem sabia como sorrir profissionalmente.

Antes de o médico fechar porta da sala, a educação o fez o retribuir o aceno – Ambos pareciam felizes por terem se livrado do outro. Ele mais ainda; Economizara as 250 pratas da consulta - Dinheiro jogado fora caso tivesse que pagar – Concluiu satisfeito –
Descendo pelo elevador procurou a primeira lixeira junto ao saguão  e se desfez da receita e do cartão do ”fabuloso” terapeuta - Preferia gastar o que restara com as putas - Pelo menos com elas não necessitaria dos comprimidos para reconhecer que estava se tornando um sujeito problemático-

Todavia o passar dos meses só fez a angústia progredir impiedosa
Ele sentia-se atormentado, infeliz, até que um dia resolveu fazer o diagnóstico, ser seu próprio analista, sacramentando assim o que o corroia; A existência.
Melhor assim. Melhor que fosse ele a se diagnosticar. Ele sabia que jamais admitiria que um humano detectasse seus problemas, imputando as responsabilidades a qualquer desgosto que tenha tido quando criança ou ao tabefe que lhe fora desferido pelo  pai no dia que completou 21 anos - Não, isso não. Jamais lhe convenceriam dessas baboseiras -

E o tempo persistia  escorrendo em desespero, jogando contra suas possibilidades.
A imutabilidade das situações o recortava em triângulos isósceles, desbravando o desanimo derrotista que aflorava em si. Perplexo, isso o arrasou; ele jamais se imaginara tão frágil.
Repentinamente esse amontoado de discrepâncias o tornou num ser insatisfeito e ele passou dar por falta de praticamente tudo; lamentava-se por não ter comprado uma casa, por não haver horta e nem uma churrasqueira de tijolinhos aparentes. Sentia falta dessas e de outras coisas mais exatas como as amizades, principalmente de algo que jamais lhe fora familiar; uma boa mulher. Ah! Como ele gostaria de estar com uma dessas.
Uma que fosse meiga, feminina, fala doce, porém voluptuosa o suficiente para esperá-lo debaixo dos cobertores numa diminuta calcinha de rendas vermelhas. Ah, sim! Sem esquecer que também deveria hipnotizá-lo tal qual uma naja e depois sussurrar-lhe obscenidades nos ouvidos.

Claro, essas necessidades o fizeram questionar-se – “Cara, mas, você precisa disso? As putas não suprem? Sim, de certa forma” - Assentia –
Mas, a sensação a respeito delas não era exatamente a do enfastio, afinal, algumas visitavam esporadicamente as dobras dos seus lençóis. Além do mais tinha por hábito tratá-las com respeito, com consideração. Eram apenas putas – Concluía – Porém o problema não era exatamente esse, e sim um sentimento de insatisfação a cada ejaculada, ao esforço despendido. Sentia-se lesado. Tudo se revestia de fosco, negro e oco como na última trepada onde Simone sorrira insanamente ao deslizar as 70 pratas do michê por entre os volumosos seios com formato de pêra,  após terem gozado. Numa outra ocasião, ainda com ela, não pintou o tesão que  imaginou estar. Então, deitaram de barriga para cima ficaram olhando para um ponto perdido no teto, Mas, tudo parecia tão irreal, falso, até que num sobressalto ela virou-se abruptadamente e o agarrou deslizando a língua encharcada pela extensão do seu rosto, melecando-o com uma saliva quente e pegajosa.

Depois  levantou-se e começou a se aprontar.

- Mon amour, precisando, é só me dar um alô no celular! Au revoir, meu bem! – Despediu-se ao apertar o último botão de pressão da sua blusa com motivos florais. Ele riu, achou engraçado aquele francês primário e o sorriso funcional e de dentes encavalados.

Às vezes uma ou outra abandonava às presas o seu leito, capengava, arrastava a carcaça varando a sala e dando o fora, impregnando o ar com o odor nauseante de um perfume falsificado.
- Claro! Outros clientes aguardavam. Mais que nunca, naquele ramo tempo era dinheiro – Concordava.

Em outras oportunidades, sozinho em sua minúscula kit net de 1º andar  de um prédio simples e de três pavimentos na Rua Augusta, algo tilintava dentro dele,  e curioso ele se dirigia à janela  para ver o movimento da rua.
Aí as via. As cenas multiplicavam-se diante dos seus olhos e ele as flagrava atuando num mundo de devassidões,  das drogas ilícitas e  dos desejos movidos por  interesses. Doía ver-lhes seus  braços ajustando ao corpo as saias de um palmo, as suas coxas sufocadas por meais surradas,  presas  à cintas-ligas, as vezes  maiores ou menores que deveriam ser. Então o  ocaso se dava e a noite chegava confiante, e elas se multiplacavam vindas de todas as direções, 20, 30, 50, 80 e se aglomeravam diante da perplexidade insana de um desfile  de pernas e bundas, expostas  quase cruas como se fossem  peças de carnes em prateleiras de supermercados. Deprimente ver-lhes as feições  depravadas, cansadas,  seus seios pequenos, médios, grandes,  de todos os credos,  saltando de decotes escancarados ante a  humilhação cintilante dos sorrisos que exalavam mentiras sob os postes de fosforescente luz néon.
E escurecendo ainda mais, as lãmpadas coloridas ganhavam vida e impregnavam os beirais, as marquises,  piscavam frenetivcamente  em luminosos à frente dos olhos tingidos de cores fortes, pobres orfãs relegadas ao esquecimento, um esquecimento doloroso àqueles que habitam o rude concreto do  asfalto paulistano.
E isso sem contar a desleal concorrência, a disputa  quase animalesca por clientes que lentamente transitam  seus veículos há pouco mais  de três dedos da calçada. Quanta vez as viu se engalfinhar por eles? Incontáveis vezes.
Não, não era isso que ele precisava, não era isso o que ele queria nem pra si e nem para elas.
 Porém, pra si ainda havia alguma esperança, para elas,   nem tanto.

E a sua redenção poderia vir pelo amor sincero da mulher. Ele fechava os olhos e até podia sentir o sabor daqueles lábios imaginários. Não se importaria com a cor dos cabelos e nem a grossura das suas pernas desde que ela estivesse ali, sentada à mesa e ao seu lado na hora do jantar.
E encontrada, a levaria nas sessões das 10 de sábados, assistiriam compenetrados as interpretações dos monstros sagrados, depois rumariam à pizzaria – “Amigo, por favor, meia aliche, meio mussarela” – pediria - E daí em diante tudo ficaria por conta do acaso ante a discrição de um garçom tarimbado, desses que sabem o momento certo de bater em retirada sem constranger os clientes. E assim, saciados e ruborizados por uma ou talvez duas garrafas de vinho tinto talvez falassem baixinho e se olhassem com cumplicidade. Então pagaria a conta e voltariam para casa, mãos dadas, olhares exalando desejos. E na cama ririam antes de fazerem amor, falariam sobre o filme, as atuações, da qualidade da pizza e até sobre a camaradagem do garçom. Depois disso somente a luz do abajur permaneceria acesa. Então a possuiria com paixão, diferente do que ocorria com Simone, Gisele, Bruna, e sabe-se lá com quantas mais.

Era disso que ele precisava. Nada mais que isso.
O que lhes deixaram  foi apenas uma imensa cratera existencial e uma dezena de prostitutas decadentes, além dos 80 livros dormitando numa  prateleira empoeirada e uma montanha de 400 DVDs de filmes favoritos. E isso lhe parecia muito pouco.
A vida se assemelhava a uma armadilha, um engano, onde as traiçoeiras garras dos mentirosos estavam sempre em alertas para alcançarem a jugular. Lennon mentiu quando disse que não havia nada pelo que matar ou morrer.
Bukowski iludiu com suas linhas forradas de utopias, justo ele, o mais venerado dos seus ídolos, velho solitário igual a si, encontrado morto na companhia de uma buceta de 23 anos que se agarrara mais à sua fama que propriamente às suas pelancas – Claro, uma puta mais refinada talvez, porém, puta -

E todas essas e outras decepções o faziam divagar - Quais reais motivos do desinteresse das mulheres? Talvez fosse a sua aparência rude, seu estado físico precário e aquém ao de um atleta. Talvez os traços que não havia e que os deixavam distante dos cinqüentões grisalhos de Hollywood.
Ele simplesmente não sabia identificar todos esses fatores. Sabia sim que deveria reconsiderar grande parte das suas atitudes, tomar cuidado com a aspereza das suas palavras, sua truculência, seu jeito malandro de ser, mesmo sabendo não ser um.
Precisava acreditar de uma vez por todas que poderia haver em si qualidades que empolgassem uma mulher, principalmente a essas a quem nada se paga,  e que nada exige.



Passados quase dois anos e meio da demissão ele se livrou de parte das síndromes e se encontra empregado há quase doze meses. Evidente, teve que abrir mão do mercado metalúrgico e se contentar com um serviço de vigia noturno num condomínio de luxo. Todavia não perde as esperanças e está sempre de olhos nos classificados dos jornais à procura de voltar ao seu ramo apesar do salário atual não ser dos piores. Também é importante esclarecer que no decorrer desse tempo ele conheceu uma mulher de verdade e pela qual se apaixonou visceralmente. Infelizmente não deu certo. Eunice o abandonou e hoje ele sofre de uma dor que parece não ter fim. Em todo caso o assunto é recente e o incomoda sensivelmente.
À custa disso os seus traços e modos ainda permanecem obscuros e incógnitos para a grande maioria.
No trabalho tem se mostrado responsável, porém arredio a qualquer aproximação dos colegas.

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“Uni duni te. Salamé mingúe”.

– Papai necessita desesperadamente ser amado –

Papai já tentou e não conseguiu, fracassou – Papai gostaria de continuar pensando como aos 17 anos, quando supunha que todas as mulheres se apaixonariam por ele, eternamente.
Papai sente-se perdido, sem saída, tocado por labaredas de um dragão imenso e insensível que persistente chamusca as suas esperanças.
Então papai pensa em rodar por aí, sem destino, com seu Uno Mille 91 em péssimo estado e comer muita poeira de estrada.
Papai às vezes necessita embriagar-se de todas as bebidas antes que seu fígado desintegre. Sugestionável, papai tem se tornado neurótico, colocando na cabeça que é têm que morrer bêbado – Papai elegeu um filme como o mais significativo de sua vida. A película fala sobre um cara que diante da desilusão extrema botou o pé na estrada e bebeu até morrer. Papai sempre acha romântico e nostálgico aquele lance do sujeito partir pra outra com o fígado em frangalhos diante da exuberância física e apaixonada de uma agente da KGB soviética. – “Ah, pelo amor de Deus! Pelo menos ele morreu feliz!” – Papai procura convencer-se ao relembrar a cena de” Despedida em Las Vegas”

- Se Nicolas Cage pôde, eu também posso!

Porém, quando isento de álcool e liberto dessas neuras ele entende o que faz a si. Compreende perfeitamente que é ele é o ator da sua vida, o diretor do seu próprio enredo. Nessas horas de lucidez ele percebe que sua existência sempre foi um filme, uma mistura de ficção à mesquinhez da realidade.
E são nesses momentos que ele tenta reaver as partes roubadas de si. Ele mesmo lesou-se mais que o suficiente por acreditar cegamente nas estórias escritas ou interpretadas por seus ídolos.
Hoje ele sabe que Bukowski, Scorsese, Newman, Rossellini, De Niro, Fante, Cage, Hoffman, Bergman, Pacino, Celine e outros dos bons jamais poderiam ter sido seus heróis como foram. Hoje ele compreende perfeitamente que eles nada mais são que fantásticos escritores, atores, diretores, porém nada mais que isso.
E isso faz papai revoltar-se, principalmente quando está de caco cheio:

E mais; Tem ocasiões que papai procura esquecer-se, apesar de saber que mil mentiras nunca terão o peso de uma única verdade.
E ele tenta desesperadamente não mentir. Não mais para si, ao menos, mas nem sempre consegue.

Então papai sorri. Não é um sorriso alegre, é triste. E isso o faz supor que talvez haja a necessidade de um terapeuta - “Pena ter me livrado daquele analista” Lamenta-se engolindo um comprimido branco com potentes 100mgs de atenolol para a sua pressão arterial.
A pílula desce a seco – Ele não gosta de misturar água; acha que perde a eficácia - Então tenta achar graça em si mesmo e rebola jocosamente ao abrir a porta da sua pequena Electrolux. Papai assobia a música favorita de Eunice, que acabou por se tornar a sua - “Eu te darei o céu” de Roberto Carlos, dos anos 60.
-Merda! Como fui me esquecer do suco de tomate? – Vocifera ao inspecionar as grades da geladeira para depois, permanecido algum tempo nela, fechá-la bruscamente com a flexão de um dos joelhos.

Em todo o caso seria querer demais que ela escapasse  imune ao  assalto; Papai jamais sairia de mãos abanando diante da frialdade do eletro doméstico. Um sorriso de vitória foi dirigido para ambos os braços onde mãos seguras sustentavam os louros da vitória; Dois pequenos  limões-galegos e uma intocada garrafa de vodka Smirnoff, todos escandalosamente gelados.

Contudo a falsa alegria é só uma questão de tempo e papai sabe disso.
Sabe que depois duns 50 minutos e três copos duplos de caipirinha ele chamara por Eunice. A princípio é um clamor calmo, reconfortado.
Porém a bebida o devastara de efeitos e ele a buscará com mais veemência. E não haverá respostas. Então papai gritará sinsana e sucessivamente por Eunice e depois se lamentará num choro convulsivo. E o pico da embriaguez se fará o momento ideal para papai pretender morrer à Nicolas Cage. Como sabem, papai quando bêbado só acredita nas verdades das telas de cinema.
É um processo lento, de quase duas horas entre o iniciar, terminar e ele despencar embriagado e roncar no chão, junto à janela da sala.

Porém, antes disso,  o casalzinho da porta ao lado se sentirá incomodado com a loucura dos  gritos “Se ele pode,  eu também posso! Estão me ouvindo?“ Mas nem registrarão queixas; já que estão desanimados com indiferença da falta de providências do senhor síndico.

  “Um sorvete colore. Sonho encantado onde está você?"

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O pecado mora sob a vermelha saia da empregada

Eu estava cheio de problemas. Em contrapartida os problemas andavam saturados de mim - há tempos não nos dávamos bem - Em todo caso o fato não deveria servir de pretexto para preocupá-la, afinal fazia dois dias que me encontrava fora de casa e sem qualquer aviso. Digitei alguns números no teclado iluminado.
Após o terceiro toque atenderam:

-Alô! – Antecipou-se a voz do outro lado

-Matilda, sou eu! Alguma novidade?

-Ah, tem sim seu Zambini! Aquele homem da semana passada, de ontem para hoje esteve  quatro vezes. Lembra? Aquele que o senhor me pediu pra dizer que tinha viajado pra Portugal.

Essa era Matilda, a minha nova empregada. Estava comigo há uns 3 ou 4 meses. Morena, gaúcha, 34 ou 35 anos, dona de um rabo fenomenal e de instrução um pouco além do 1º grau que a tornava bem peculiar. Contratada junto a uma agência de emprego eu havia achado interessante o seu currículo e algumas cartas de referências dos seus ex-patrões. Contudo, neste curto espaço de tempo constatei a possibilidade da massa cinzenta de Matilda haver se deslocado e se concentrado no meio das suas coxas. Talvez o fato de estar sempre "fora do ar"  fosse o maior responsável pelos curtos períodos em que se manteve no trabalho. Em todo caso eu gostava dela.

- Ah sim, o Oficial de Justiça! – Balbuciei.

Ah! Oficiais de Justiça, sujeitinhos intragáveis, prepotentes, mal educados. Incomodava-me a persistência desses sujeitos. Impressionava-me sobremaneira o fato de às vezes serem tão pegajosos e grudentos quando previam algum tipo de vantagem para si como o ganhar uma grana extra ao notificar. Todavia a persistência daquele rapaz era digna de louvor.

- Ah! E ele, disse alguma coisa? – Perguntei aborrecido.

-Disse sim, seu Zambini! Ele disse: Meu amor, espera o paizinho daquele jeito que você gosta!

-Como? Como assim Matilda? –

-Ah seu Zambini, o moço disse isso pra mulher do celular!

-Do celular? Que celular, Matilda?

-É assim, seu Zambini: Enquanto ele me perguntava pelo senhor tocou o celular dele e ele atendeu.

-Ah sim, entendi! Mas o que eu quis dizer, Matilda foi se ele disse algo ou se deixou algo em meu nome, como os papéis da outra vez – Esclareci impaciente, referindo-me ao fato do oficial ter deixado na vez anterior uma folha informando que estava à minha procura.

Porém essa era mais uma das pequenas provas do quanto Matilda sofria ante às percepções das coisas da vida. E o pior, ou melhor; Ainda bem que os seus cabelos castanhos escuros não eram louros. Se assim fossem não seria de estranhar que tentassem lhe colocar arreios.
Enfim, era melhor desta forma - Empregadas inteligentes além de gostosas invariavelmente tornavam-se sérios problemas, se não na área trabalhista, em alguma outra vara cível. Eu mesmo havia me tornado refém desse conflito, e o oficial de justiça era parte representante dele; A minha pendência judicial com a Doralice o obrigava a estar à minha caça –

Ah, Dora Doralice! Tudo não poderia ter sido infinitamente mais simples?
Ela fora a minha última empregada – Estava com 29 anos agora. Uma garota bonita, sensual, dona de ótimas pernas e um par de seios pra lá de protuberantes. Ela estivera comigo nos últimos 7 anos. No início, somente uma serviçal, depois se tornou mais que isso. Óbvio, na época, desconhecida e vinda de um lugarejo do interior e sem ninguém para lhe dar uma chance na cidade grande sujeitou-se a serviços menores.
E assim, às custas de alguma amizade com a empregada do Luis Alfredo, do 468, veio dar aqui em casa e evidente, desprezando o seu currículo inexistente fiquei a mercê daquele seu olhar de cão abandonado e da magia das sensacionais pernas amorenadas debaixo da diminuta saia vermelha, fiéis garantidores da sua contratação.
Nesse tempo que esteve comigo Dora enturmou-se, estudou e incentivada por mim completou o supletivo, fez cursinho e até tinha o sonho de ingressar na Faculdade de Jornalismo quando estourou a  nossa pendência.
Porém, essa proximidade criou-nos mais dificuldades que facilidades: Queria mandar em mim, em minha vida. Cercava-me por todos os cantos onde eu estivesse, querendo saber onde, com quem e por que estava. Dora não permitia meu celular manter-se calado. À princípio depois de tantos aborrecimentos eu o deixava no “vibra call” mas aquele frêmito constante irritava-me. Daí tentando resolver o impasse mudei para o modo “silencioso” Surtiu efeito, claro, mas também perdia ligações importantes. Porém, o que Dora não entendia ou fazia não entender era que a vida de um escritor devia ser exercitada nas ruas, no meio das pessoas, entre fatos e longe de quaisquer influências, internas ou não.
E em não entendendo deixou de dar certo.

Assim, sem saída e a nossa convivência tornada um calvário fui obrigado a despedi-la. Ela chorou, bateu portas, disse que o quanto aquilo era ridículo, porém, vencida, saiu de casa prometendo vingança. No dia seguinte alguém entitulando-se seu advogado ligou-me e perguntou como faríamos pra acertar as contas da sua cliente.
Depois de tudo acordado, no dia marcado lá estava eu no Sindicato das Empregadas Domésticas para quitar todos os seus direitos trabalhistas. Além das obrigações e demonstrando a minha boa vontade paguei-lhe alguns extras que não eram devidos, afinal, tanto tempo.
Contudo, aquilo não lhe pereceu suficiente - Na Vara de Família ela reivindica direitos como houvesse sido a minha legítima esposa – Seu pedido inicial é de uma pensão mensal de R$ 3.800,00 mais o Pálio 2006 e a posse definitiva da kitchnett de dois cômodos que comprei na praia do Gonzaga há menos de dois anos. O mesmo advogado ligou para mim dias depois da homologação e tentou um acordo nessas bases, prontamente recusados por mim. Portanto, não se fazia segredo o motivo da visita do oficial – Eu era um foragido da lei -
Os meus pensamentos planavam nessas questões quando fui acordado pela voz estridente de Matilda.

-Ah, seu Zambini! Ele disse mais coisas.

-O que, Matilda?

-Então, ele falou assim pra moça: Espera que hoje à noite o papai vai fazer um “gluglu gostoso” com você –

O que Matilda acabara de comunicar fulminava-me tal qual a bomba do B29. Parecia que a ogiva havia expluído em meu crânio ao invés de Hiroshima.

- FOI ISSO QUE ELE DISSE, MATILDA? EXATAMENTE ISSO?: O PAPAI VAI FAZER UM GLUGLU GOSTOSO COM VOCÊ? -

-Foi, seu Zambini. Foi exatamente isso que o homem disse. – Ela respondeu assustada.

-SUA VAGABUNDA! SUA FILHA DE UMA PUTA! - Acometido de rompante fúria eu berrei ao telefone:

Depois da ira o aparelho permaneceu mudo, constrangido, até que ouvi as lamúrias e choramingos de Matilda. Depois munida de certa coragem defendeu-se entre os discretos soluços:

-Seu Zambini, eu juro por tudo quanto é sagrado! Não era pra mim que ele falava essas coisas! Era pra moça do celular! Eu sou uma mulher honesta!

-AI MEU JESUS CRISTO! NÃO FOI PRA VOCÊ QUE EU DISSE ISSO, MATILADA! PARE DE CHORAR, PORRA! – Esbravejei irritado – Passados alguns instantes deixei de ouvir os seus soluços. Agora calmo continuei.

- Desculpe, Matilda! Eu não queria gritar com você. Agora me fala uma última coisa. Ele disse algo mais antes de desligar o telefone?

Novamente o silêncio do outro lado. Talvez Matilda estivesse receosa com mais um dos meus ataques de fúria. Assim que percebeu a mansidão do momento, articulou-se:

-Falou sim, seu Zambini. Ele continuou falando pra moça: Calmo amorzinho! Fica tranqüila que hoje eu pego o safado! E antes de desligar ficou dando beijinhos no celular e se despediu dela assim: Tchau minha vida! Te amo, Dorinha!

- Ta bom Matilda, tudo bem. Nessa semana não volto pra casa. Vou continuar viajando, mas te informo. Qualquer coisa ligue pro meu editor, o Marco Antonio. O telefone dele ta na agenda. Ta bom? Se precisar de algum dinheiro, ligue pra ele. Na agenda, letra “M” de Maria! Certo?

-Certo, seu Zambini! Marco Antonio, na letra “M” de Maria, de Matilda...Ta bom! Se precisar eu ligo.

-Tchau, Matilda!

-Tchau, seu Zambini! – Respondeu com a voz cantada dos sulistas enquanto assuava o nariz. Depois desligou.

A vida me era assim e eu estava cercado de raposas - Como a natureza feminina podia ser tão maquiavélica? - Evidente, aquilo não fora fruto de coincidência e sim de prévia manipulação; Doralice estava tendo um caso com o Oficial de Justiça. E tudo ficou muito claro, pois o “gluglu” era uma brincadeira de cunho sexual que existia entre nós. Aliás, fora ela quem criara aquela estória de “Gluglu”; pois era essa a forma que ela se referia quando queria ser fodida por trás – Doralice adorava dar o rabo – E outra: Me conhecendo sabia que não deixaria encontrar assim, tão fácil, daí a sua necessidade de ter o controle total da situação.
Logo, era necessário contra-atacar, mostrar que aquilo não me abalava.
Eu não poderia e nem deveria aceitar aquilo de forma passiva, fugindo às pressas desses malditos sanguessugas da lei , malditos auxiliares de xerife.
Ligando novamente o aparelho procurei na agenda.
Achado, teclei alguns números. No segundo toque atenderam.

-Alô! É da Advocacia Venâncio Paes? – Perguntei

-Sim, é ele mesmo! Doutor Venâncio a seu dispor! – Respondeu-me uma voz grave e profissional.

-Doutor, aqui é o Erico Zambini. Eu sou aquele escritor que lhe foi apresentado pelo Marco Antonio, da editora, lembra-se?

-Claro que me lembro senhor Zambini! E que noite aquela, heim? – Respondeu-me. Eu percebi a malícia em sua voz.

Ele se referia a uma festa acontecida há quase um ano na sede da Editora. Eu tinha tomado todas, até que uma dona de um belo rabo empinado, vestida numa deliciosa micro saia branca nos brindou com a cor da sua calcinha vista através da alvura do tecido. A imagem foi demais para um sujeito como eu. Embriagado eu só tinha olhos pra bunda daquela divindade. E assim que ela passou por mim naquela sua feição depravada agarrei-me furiosamente às suas nádegas.
A piranha assim que sentiu minhas mãos bolinando as suas carnes fez o maior escarcéu. Tentando se livrar, girou o corpo, fechou os punhos e socou-me furiosamente a cabeça. Conclusão; três sujeitos vieram ao seu auxílio até que conseguiram fazer-me desgrudar do tal vestido. Depois disso o Marco Antonio me levou para casa – Eu estava muito bêbado para dirigir -

-Pois é doutor! Foi uma confusão dos diabos, né! Mas, olha...Estou com um problemão danado. Não estou me defendendo de uma última ação proposta contra mim e agora me encontro em apuros – Cientifiquei tentando me desviar do incômodo daquele assunto.

-Apuros? Ok. Podemos marcar um horário - Respondeu voltando a sua tonalidade profissional.

-Claro, podemos sim, doutor! Em todo o caso, estou ansioso e com uma pequena dúvida.

-Dúvida? Elas se fazem matéria mãe e na qual vive e persiste o estado de direito. Vamos a ela, senhor Zambini! - Exclamou num tom catedrático, desses que sabem o que dizem. Eu gostava da impostação da sua voz; exalava confiança. Talvez tivéssemos grandes chances.

-É assim Doutor: É possível contestarmos essa ação e propormos uma contra uma ex-empregada doméstica que tive? O senhor acredita que é ela que está me acionando na Vara da Família? – Comuniquei demonstrando um ar de perplexa incredulidade.

-Empregada doméstica, Vara de Família, é? Meio inusitado, mas ... Depende da gravidade do caso. Eu mesmo desconheço casos julgados, mas.....

-Sim doutor, este caso é de uma gravidade extrema! – Afirmei convicto. Eu começava a me sentir desconfortável com aqueles seus “mas, mas”.

-Bem...se é tão extremado, vamos a ele. Que ação está pensando em propor contra a sua empregada doméstica, senhor Zambini? – Questionou-me.

Depois de um tenebroso silêncio me posicionei:

-TRÁFICO DE INFLUÊNCIA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA!! –

Eu andava bem a par daqueles termos já que os noticiários de TV não davam conta de tanta gente sacana e de gatunos que queriam levar vantagens às custas dos outros.

O telefone permaneceu impiedosamente mudo por uns bons instantes. Repentinamente ouvi algo que se iniciou como uma tênue risada e foi ganhando proporções até findar-se numa estrondosa gargalhada – O doutor Venâncio não conseguia parar de rir – Claro, aquilo me desanimou profundamente - O seu riso soou a escárnio e ainda retumbava em meus ouvidos quando decidi, unilateral, desligar o aparelho. – Talvez eu lhe parecera um imbecil – Talvez, também o Dr. Venâncio Paes não fosse tão bom quanto o meu editor alardeara –
Assim que coloquei o celular no bolso avistei uma padaria de esquina e fui tomar um cafézinho com leite. E pela primeira vez eu pensei num acordo enquanto remexia a nata que parecia dançar um tango de Gardel dentro do copo fumegante.
Será que Doralice aceitaria o meu Pálio 2006?
Será que ela insistiria na pensão de R$ 3.800,00 ?
Ah! A minha kitt do Gonzaga eu não daria nem a pau!
Abandonei o copo com quase todo o volume e me dirigi para o caixa.

-Moça, por favor, um cafezinho e um Hollywood vermelho!

-São quatro reais e cinqüenta centavos – Ela respondeu sem me olhar nos olhos enquanto abria a caixa registradora.

Dei uma nota de cinco pilas e aguardei o troco.
Assim que me deu a moeda a coloquei no bolso e saí. Lá fora um sol das duas da tarde abrasava a existência. Andei pela calçada no sentido da Rodoviária que ficava próxima dali. Passando por um terreno baldio notei que alguns garotos jogavam bola. Parei para vê-los. Entre eles havia um crioulinho, talvez um  pouco mais de 10 anos e ele era muito bom. “Gollllllllll” ele gritou após driblar 2 garotos brancos e enfiar a bola entre as pernas do goleiro. “Golllllllll” eu festejei pulando em comemoração. O negrinho olhou pra mim e achando divertido riu um riso gostoso, infantil, talvez de quem ainda não soubesse que a vida poderia estar guardando-lhe um lugar entre os deuses do futebol. Eu também sorri e fiz um sinal positivo para ele.

Dentro do ônibus, sentado ante uma das janelas eu via gente vendendo garrafinhas de água mineral, saquinhos de amendoins, guloseimas e eu pensava o que a falta de estrutura obrigava essa gente fazer para poder sobreviver. Todos  insistiam demasiadamente com os passageiros, puxando-os pelas camisas, pelos paletós,  pareciam compenetrados da gravidade da situação e da  necessidade de levarem algo para suas casas,  suas vidas, pras suas míseras existências.

Pensei novamente em Doralice e na Justiça – Talvez essa última fosse cega, caolha, ou quem sabe, exata como os testes de paternidade. Sei que haveria para nós um caso cheio de malandragens, de leros-leros, de excelentes atores. Haveria barganha por todos os lados, algumas possíveis e outras nem tanto.
Eu apenas eu iniciaria a luta, uma entre as milhões de guerras que a humanidade trava diariamente.

-Doralice! Aí vou eu! – Exclamei alto e para mim ante da surpresa de uma senhora obesa que acabara de sentar ao meu lado, na fila do corredor.

Diante da minha reação ela sorriu sem graça e eu nem tanto. Eu achava curioso o fato das pessoas se constrangerem por tão pouco, por quase nada. Ali, no guichê da companhia de ônibus resolvera modificar o meu destino. O ônibus deu a partida e uma fumaça de óleo diesel queimado adentrou a janela e me fazendo tossir.  Lentamente ele percorria as estreitas ruas da cidade até pegar a estrada e imprimir maior velocidade.
O sol penetrava através do vidro ofuscando-me a visão, então deslizei o grosso tecido da cortina e me vi livre do clarão daquele tórrido fim de tarde. Reclinei ao máximo o banco e com o corpo semi-deitado serrei os olhos na tentativa de dormir um pouco. Doze longas horas me separavam de casa e dos problemas.

Eu voltava para minha guerra, santa, pra minha cidade louca e para defender com unhas e dentes aquilo que me era de direito.

Esquizofrenia

-Carlão, Carlão! Um macaco enorme mordeu o meu traseiro! – Ele proferiu caminhando ao seu encontro na entrada de casa. Assim que se viu diante do amigo, olhou-o e girou  lentamente sobre o próprio eixo como um pião que perde a força.

-Era um macaco imenso! Olha, mordeu bem aqui! Olha as marcas dos dentes! -Gemia dolorido enquanto rodava cada vez mais lento até cessar por completo.

Esse era o Astô, como Carlão gostava de chamá-lo.
Civilmente, Astolfo Oliveira, um excelente pai, marido e enfermeiro, definitivamente um grande sujeito,  porém, um pobre diabo.
Tudo aconteceu a partir de um dia calorento de julho de uns dez anos atrás.

Carlão também estava na escuridão daquela noite quando ouviu o grito gutural do amigo, um lamentoso uivo de perda que varou o vazio das três casas que os separavam.
Por telefone conseguiram avisá-lo no manicômio, seu local de trabalho, meia hora antes.
Ele chegara rápido, de táxi. Viera da entidade mantida pelo estado que cuidava de todos os tipos de dementes que não tinham condições de sustentar qualquer tipo de tratamento.
Perfez o caminho rezando  – A voz de quem o avisara ele não conseguira discernir, ela apenas o comunicara “ Venha urgente, é necessário tua presença” e desligou - Somente isso e nada mais – “ Pai nosso que estais no céu. Santificado seja o vosso nome...” Ele persistia na reza e na fé diante o desdém do motorista, provavelmente ateu. Astolfo rezou católicamente  e permaneceu rezando até desembarcar no destino.
O que Astolfo ainda não sabia era que apesar de tanta fé  as preces não evitaram os acontecimentos e nem naquilo que ele viria a se  tornar.
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Fora dolorido para Astô ver o camburão do Instituto Médico Legal levar os corpos da esposa e da filhinha acondicionados em imensos sacos de um plástico grosso e negro – Sim, fora assassinato. Melhor dizendo; Auto-assassinato. E não foi por outras mãos. Foi por mãos delicadas que fez o fogão aspirar a mortalidade do gás contido no botijão.
Antes, as mesmas mãos minuciosas e femininas vedaram cuidadosamente todas as frestas de portas e janelas com panos de sacos de farinha, desses comprados em supermercados.
Os motivos? Bem...os motivos nunca foram satisfatoriamente elucidados, ainda mais porque Astolfo era a própria dedicação à família – Talvez a intensidade daquele amor não o permitisse discernir o conturbado comportamento que Aimeé apresentava há algum tempo.

Quanta ironia com Astolfo. Justamente com ele que nem tempo lhe sobrava para engolir o jantar. Justo com ele que saia esbaforido de casa, na direção do seu sonho, à caminho das aulas na Faculdade de Psicologia. Quanta dor. Justo com ele que tanto convivia com todos os tipos de mentes perturbadas.

-Olha Carlão! Veja a marca que aquele macaco miserável deixou em minha bunda – Sussurrou tocando-o no ombro e depois direcionando a mão para o cinto de sua calça; queria que o amigo visse as marcas deixadas pelo primata.

Havia sido triste o funeral celebrado debaixo de chuva torrencial. Não era Astolfo que estava ali. Era um morto-vivo, sem reação, sem emoção, sem lágrimas, sem ranço de saudades. Era apenas um pobre diabo que se encontrava ali, um olhar perdido nas águas, nas centenas de formigas que labutavam próximas às covas e dos seus sapatos barrentos.
Duas semanas após ele foi internado na mesma instituição e nunca mais se recuperou –

Carlão o visitava regularmente, afinal, Astô fora o seu único amigo de infância e juventude. No primeiro ano de tratamento e nos seus raros momentos de falsa lucidez, Astô se imaginava na pele do Dr. Astolfo. Nessas ocasiões era flagrado sentado nos bancos das ruazinhas arborizadas, consultando aos demais pacientes. Era um fato engraçado, todos riam; médicos, enfermeiros e a família de Carlão. Ainda pela fila de pacientes que se formava, além do avental de médico que Astô usava e que fora surrupiado no descuido dos funcionários da lavanderia.
Em outras oportunidades, inesperadamente ele se tornava tão agressivo que eram obrigados a enfiar-lhes a camisa de força, já que a contenção de gastos com medicamentos apropriados para aquelas situações estava em pleno andamento.
E a crise da instituição veio após sete longos anos, quando o Estado alegando impossibilidade de manter o manicômio, o desativou.
 
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Hoje, Astô mora num quartinho que Carlão mantém anexo ao quintal de casa. Lavam-lhe as roupas, dão-lhe comida e medicamentos quando necessários. Hoje ele é calmo apesar dos distúrbios. Não há mais a rebeldia, arrefecida pelos milhares de comprimidos de tarjas negras consumidos durante anos e anos de tratamento.
Hoje, Astô mais se parece uma criança.
Na primavera poda a grama e molha a si e as plantas que dispôs com zelo num pedaço de terra que cultiva ao lado do seu cômodo. No outono é comum surpreendê-lo aconselhando as rosas, declamando inesquecíveis poesias para as margaridas. E no inverno é tristonho vê-lo chorar com os lírios orvalhados nas manhas frias e de névoa densa.

Na atualidade, dificilmente alguma lucidez o contempla. E quando ela o toca Carlão, ao chegar do serviço, percebe; os olhos da esposa e da filha trazem marcas de água – Nesses dias Astô relembra da mulher e da filha, que viva, estaria com a mesma idade de Tammye, filha do seu protetor.
E ele chora. Chora pueril, birrento, sendo necessário ficar atento e retirá-lo frequentemente da cozinha, já que ele insiste em desparafusar a válvula do botijão para levá-lo além dos azulejos das paredes. E essa incansável atividade, de ir e vir, associadas às outras tensões psíquicas o confunde e ele chama a mulher e filha de Carlão pelos nomes de Aimeé e Narinha, as criaturas que mais amou nessa vida.

Às vezes Carlão fica tão amargurado com a aspereza dessa realidade que pensa em reagir: “Cara, como você pode ter permitido isso acontecer?“ – Imagina-se questionando o Onipotente – Passado o devaneio ele se pega no ridículo daquilo e então sossego no seu canto.

-Ó! Ó Carlão! Ó que o macaco bobo me fez! – Ele murmura virando as nádegas. Suas calças estão arriadas até os joelhos e ele, envergonhado abaixa discretamente a cueca samba-canção para que Carlão possa ver as marcas imaginárias.

E Carlão examina o local com a mesma atenção que os ginecologistas dedicam às suas pacientes – Tenta ser convincente -


-Ô macaco filho da puta, Astô! – Exclama, para depois austero reconfortá-lo com tapinhas nas costas – Amanhã a gente vai atrás desse bicho safado! – Sentencia convicto.

Então, Astolfo ri. Ri divertido e serelepe como um garoto que acaba de ganhar a sua primeira bicicleta. E sorrindo, enlaça o obeso pescoço de Carlão com seu braço trêmulo e não mais falam no assunto.

Eles entram juntos pelo jardim e se encaminham para sala. Eles sabem que lá há gente sorridente e confortáveis cadeiras com encosto e assento de curvim .

Eles sabem que o jantar fumega e que depois das mãos lavadas e dos cumprimentos carinhosos a refeição será servida.

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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Os geniosos gênios ( à Liz, H, Muryel - homenagem)

- Seu puto maconheiro! - O mineiro disse para o paulista.

-Ih, qualé? Vossa senhoria se encontra em dias de Sartana? – Responde o outro – Evidente, era apenas uma brincadeira entre os poetas,  Muryel e H – dois nomes partícipes e expoentes duma literária comunidade okurtiana denominada BDE, marco, talvez dum movimento de renovação da poesia tupiniquim.

-Faça um poema aí, seu maconheiro fodido! – Pediu gentilmente o homem das Minas, melhor dizendo; das balas defuntas.

-Sobre a maconha? Tem mesmo a certeza que estás no barato? – Questiona o poeta paulistano enquanto escreve num guardanapo de papel o termo “Canabis Sativa”. Terminando, passa o papel para o outro – Claro, jamais souberam-se os motivos, mas a maconha era a primeira ideia que ocorreria a H para cada  um dos seus novos poemas.

- Canabis Sativa? – Isso inexiste! - Brada interferindo na conversa uma senhora com ares de fidalguia, que rapidamente captura a folha da mão de Muryel. Ela passa cuidadosamente os olhos pelo termo empregado, e com ela tudo, absolutamente tudo é visto com os olhares gramaticais. Evidente a inexatidão da escrita agredia seus olhos. Ainda com o guardanapo em mãos se levanta da mesa e em tom professoral fala ao escritor:

-H, você deve estar se referindo a Cannabis Sativa., que, inclusive, deveria levar um par de “n”. e não apenas um, como grafou...  – Ela chama a atenção do poeta ao enfiar de próprio punho a consoante “n” no exíguo espaço entre as letras.

Evidente, vernáculo de cultura, ainda fez questão de tecer em alto e bom som o significado do termo, resgatado que foi da sua bolsa Lui Vignon, o pequeno e  inseparável dicionário:

- Vejamos o que Aurélio tem para a Cannabis Sativa:
1. Gênero da família das canabidáceas, nativo da Ásia Central, que compreende ervas anuais de caule alto e ereto.
2. Qualquer espécie desse gênero, como, p. ex., a Cannabis sativa.

Ao terminar a explanação H a fitava de olhos arregalados, como se pretendessem saltar das órbitas oculares. Sim! H sempre foi muito genioso, principalmente às correções, portanto sem qualquer surpresa revidou:

-É canabis com um "n" só e foda-se! Ela me abre a mente, e o que nela me interessa passa bem distante do fato da pobrezinha estar sendo escrita com um ou dois "n". Bora dar "umazinha" no cigarrinho, professora?  - Devolve debochadamente -

Evidente, Liz o olhou assustada, já que a corretiva dama  entendia perfeitamente de  literatura, e sabia como ninguém cheirar um bom livro ou deliciar-se com um poeta dos bons, porém jamais travou conhecimento com coias escusas.
H sorriu divertido e sem se importar com o constrangimento da mestra. Depois se concentrou no rótulo da cerveja à sua frente e preencheu o ar com os sons  da sua poesia repente, alusão inequívoca a amaldiçoada “Cannabis Sativa

Com um Ene ou par de Ene/
Gramaticalmente padeceremos /
Se não loucos, mas de osteoporose/
Um cancro invadindo os ossos da gente/

Longe da ilusória Pasárgada
Envolto nos encardidos lençóis /
Em nódoas de sangue e contornos de laço/
Ceifados de nossas enegrecidas vidas e sóis

Pútridas as vozes estertoras dos fardas verdes/
Sanguinários secretores da décadas infame/
Numa onda de choques e  lamentos/ cordas e fios

Que no subterrâneo inclemente viu tombar o herói
Enquanto na boca apenas um gosto amargo
Duma história que não ouso esquecer

Todos à mesa ficaram boquiabertos, afinal, o que poderia significar aquilo? Porém H. estava tomado, não pela erva, mas, pelo espírito do álcool, e certamente haveria de querer aquele soneto misturado as cervejas e caipirinhas de vodka que havia ingerido até então.

-Bravo! Bravo, seu filho da puta transtornado! – Exalta-se em admiração Muryel ao quebrar o silêncio. –

Como seria de se se esperar, Muryel, empolgado  com a com a declamação do colega, mesmo que á mercê  do tardio lamento paulistano rabiscava em suas mente alguns contornos para seu novo nano conto, onde na posse do seu formidável senso irreverente teceria impressões patológicas sobre o velado homossexualismo acometido a José do Patrocínio nos tempos abolicionistas, quer os cariocas se importassem ou não .

Todavia os versos de H ainda ribombavam na atmosfera, mas, ótimo para um, nem tanto para outro, pois as antenas da mestra estiveram ligadas em cada linha da poesia de H.

-H, você esteve quase perfeito! Porém, repare na métrica inexata da 2ª estrofe. Vejamos:
Na primeira= 2.3.5.7.2
Na segunda= 2.1.9.8.4
Entendeu? Ali não poderia ser 8 . Fora isso, está muito bom! – Finalizou  a mestra enquanto Muryel saboreava tão complexa explanação.

O certeiro apontamento da mestra abduziu Muryel das viadices de Patrocínio, já que também havia notado  algo de errado com aquela métrica, cuidadoso que era, vibrante quando suas certezas se confirmavam.

- Porra, dá-lhe, dá-lhe tia! Viu aí seu puto? A tia ta sempre certa! - Alardeou o poeta dos cybers mineiros.

E H. sempre na sua os ouviu impassível – Afinal, ele não queria saber sobre as merdas das minúcias métricas e, por enquanto, muito menos do pacotinho de erva da boa que dormitava no bolso direito de sua jaqueta Lee. Evidente,  não naquele momento, ao menos - E outra...o mundo não era unicamente poesia. Será que aqueles caras viviam apenas para a literatura?

- Meus, sério! Quero mais é que vocês se fodam! Literatura, literatura, literatura! A vida não é só isso! E você mineirinho, vá dar meia hora bunda naquela mesa ali! – Regurgitou apontando para um local onde três sujeitos afetadíssimos tomavam seus daikiris de frutas. Naturalmente, eles não se aperceberam do indicador apontado para a mesa deles.

-Hey, por falar em bundas, tu tens visto o Véio? – O interrompe Muryel, desviando o rumo da prosa.
H, quase refeito da raiva, responde:

-Ah sim, ouvi dizer que o Robertón, foi morar na Manchúria. Já reparou naquele gorrinho que ele anda usando no avatar? Ou é coisa de boiola, ou deve ser um frio pra porra lá pras bandas onde mora.

-Caráleos! Não, não é do Robertón que to falando seu toupeira. To falando do Véio China – Afinal, ele também não é paulistano como tu? - Interrompe o mineiro

- Ah, do China! Bem, sei lá, dizem que é! Mas... faz algum tempo que não vejo a figura – Responde H, e depois traz o amigo pelos ombros,. Assim que o ouvido de Muryel ficou à merce da sua boca sussurra- lhe discretamente – Cá entre nós Mura, para mim aquele velho se tornou um grande bunda-mole!- O mineiro  arregala os olhos diante das falas do amigo.

- De que trem você tá falando H?  Explica essa paçoca de pé de moleque! Não entendi bem!– Devolve surpreso.

- Bem, é assim..... - Inicia o outro - Assim...parece que Véio desistiu de vez de ser o Bukowski brasileiro, pois ultimamente anda escrevendo uns babados licorosos, dramático, querendo morrer disso e aquilo. Mas á puta que pariu! Ta me dando nos nervosos vê-lo escrever coisas insossas,  à Paulo Coelho, Sidney Sheldon, esses lances assim. Sacou?

-Saquei! - Responde um pensativo Muryel  - Depois, igualmente traz o amigo pelos ombroa e cochicha - Tem razão,  aí num dá mesmo, né tio? Bom...aquele velho nunca me enganou. Sempre achei o filho da puta um tremendo enganador, do tipo desses que quando aperta, peida! Sabe do trem que to falando, né?– Finalizou  Muryel ao coçar a imperturbável barba castanha.

-Pois é cumpade, fazer o que?  Ah, quer saber, Mura? Ele que se foda! - Exclamou H

-É...é isso mesmo! Ele que se foda! - Endossou Muryel ferrando novamente a boca na cerveja.

Depois disso sorriam sacanas naquela noite de encantos e onde certamente as mesas do boteco jamais receberam poetas de tanta qualidade em tão pouco espaço geográfico. Em sua cadeira a incansável Liz e tão perturbadora como o sorriso de Monalisa, permanecia sentada repassando os olhos sobre o livro de poesias de Beth Vidigal – seu pseudônimo - A única coisa que não combinava com literatura, nela, era o seu inadiável suco de tamarinos, enquanto H e o poeta das Minas se divertiam comentando sobre outros autores do BDE, execrando uns, louvando outros, porém sem deixarem de encher seus copos de cerveja enquanto saboreavam partes nobres de um frango à passarinho forrado minúsculos farelos de alho frito. Porém em fração de segundos tudo mudaria: Muryel não mais se concentrava nos sons que abandonavam a boca do amigo paulistano. E o motivo da transformação acabara de sentar à sua frente; uma loira fenomenal que ao acomodando-se na cadeira cruzou as pernas lá no alto, deixando à mostra parte dos ralos e depilados pentelhos: Óbvio, toda mulher está sujeita à um dia de Sharon Stone, portanto não vestia calcinha. E aquilo foi o suficiente para o mineiro pirar, pois vindo de uma cidade  conservadora jamais estivera fadado a tanta e desmesurada liberdade – E assim, diante da visão, slides foram reprisando em sua mente, e ele recordou-se da antológica cena de um filme, onde a atriz, usando o mesmo artifício deixara Michael Douglas numa situação muito, muito embaraçosa - Ainda sob o impacto da cena Muryel se questionou: Um homem seria capaz de enlouquecer por um treco daqueles?  – “Sim, claro, sô!” O mineiro sussurrou respondendo para si


H,  entusiasmado depois de voltar dos sanitários masculinos  com um olhar avermelhado não se dava conta daquilo que se passava à sua volta, pois ainda impressionado com o encontro tão nobres gesticulava muito, procurando no bolso esquerdo da jaqueta uma pequena caixa do chiclete Adams, comprado as oito da matina numa padaria qualquer.
Muryel nao, Muryel, acanhado persistia nos sorrisos furtivos na direção da loira oxigenada – A garota agora  piscava ostensivamente para ele, passando a língua por entre os grossos lábios tingidos num batom de vermelho sangue, deslizando indiscretamente a palma da mão  pelos contornos do lado direito do corpo.

No horizonte se ia um fim de tarde majestoso, pincelando seus mormaços nos tons da esperança, deixando uma noite que prometia alegrias, pois ali nada havia para se perdido. Consciente do ato falho, e da repentina indelicadeza com H, Muryel, por momentos esquece-se da loira e se concentra no amigo paulistano, num mesmo instante que Liz, e a sua esperteza de quem nada perde, pelo canto dos olhos dá-se a conta daquilo que incomoda o pobre Muryel, e então sorri um sorriso compreensivo e de que quem testemunhou incontáveis situações como aquela – Ela sabia, como fêmea,  que aquele “trequinho” da Sharon tupiniquim seria capaz de dizimar a sensibilidade psíquica e física do poeta da Gerais, portanto faria o possível para segurá-lo à mesa para o deleite dos convivas, mesmo que fosse estranhíssimo aquele sujeito.

Enquanto isso, o acaso maravilhoso de uma sexta denunciava que a noite que adentrava promoveria ainda outras surpresas agradáveis. Portanto as cervejas, uma após outra continuavam a ser sorvidas sofregamente e os poetas se embriagavam de álcool e paixões. Liz, responsavelmente isenta de teores alcoólicos, ingeria agora um pueril suco de manga, natural; afinal, alguém teria que ter mais que poesias e álcool na cabeça para dirigir e desembarcar os bêbados a cada um dos seus destinos. Assim o tempo passou, e paulatinamente e outros belos jovens da classe média alta ganhavam o local. E eles chegavam sorridentes, falantes, agarrados e aos pares, trajando roupas de grife, sob os olhares atentos de Muryel que parecia encantado com as saias curtas e a maciez das bronzeadas pernas paulistanas
E era assim que a magnânima, Vila Madalena sorria para todos, plena, abrindo suas longas e voluptuosas pernas para se ter possuída por mais uma de suas inebriantes madrugada na pauliceia desvairada. Muryel, desafortunado, coordenação motora amplamente deficiente, persistia sorrindo para tudo e para todos. A bebida fazia suas palavras se embolarem no céu da boca, o que tornava difícil decifrá-lo, mas que não lhe apagava a generosidade do  sorriso nem a grandeza da sua alma poeta.

Na mesa de frente a fatalidade tingida de loiro e que se faria algoz do inconfidente mineiro era cobiçada por outros homens Porém a garota parecia não estar nem aí, e talvez por motivos que a razão jamais saiba explicar elegera Muryel o homem da sua noite,  dono das suas atenções, um deus bêbado, poeta, de fala mansa e divertida.
Porém para Muryel era uma decisão difícil;os amigos e o álcool, ou a garota? No fim acabou por prevalecer o bom senso e o  divertido mesmo ficou por conta do fim de noite, onde, completamente bêbados, H e Muryel dormitaram á mesa, enquanto Liz batia animados papos com a Share nacionalizada, afinal descobrira que a garota era uma baita poeta, alguém  próximo ao estilo de Rita Medusa, poetisa a quem nutria profunda admiração.

-Tia, eu quero essa mulher! - Muryel  bradou para Liz com falas arrastadas ao momentaneamente se recuperar do coma alcoólico. Bobagem, pois tão rápido quanto se recuperou, tombou novamente.

A garota apenas sorriu e deu um par de beijinhos em Liz, despedindo-se, já que sabia que nada aconteceria. Liz sorriu compreensiva, pois também sabia que o mineiro voltaria para as suas Gerais sem sentir na boca o gosto duma devassa paulistana. Porém o objetivo agora era outro; como enfiar aqueles dois bêbados no banco traseiro do seu carro?

Tormenta


A tempestade, única, jamais fora sentida tão avassaladora.
Ondas gigantescas faziam do meu barco um simples brinquedo de papel prestes a ser sufocado pelas águas. Eu e meus pecados padecíamos de medo e a cada instante que a morte lambia nossos calcanhares. E mesmo perseverando, evitando a deriva,  em cada manobra eu sentia as forças dos braços e da mente minguar. Resistir se fazia apenas questão de tempo.

-Onde estará meu Deus? – Lamentei. Geralmente eu não o procurava, mas naquela hora me pareceu importante que me ouvisse.

Será que é vivo e tem o poder  de amansar a tormenta e fazer surgir o arco-íris? - Questionei - Será  que Deus é somente retórica ou doces canções para os tolos? - Insisti ao notar que as águas adentravam com violência.

E foi naquele momento de extrema inquietação que o estrondo provocado pelo encontro das gigantescas ondas se fez ouvir – E como o mar nunca deu explicações  o meu barco elevou-se e se manteve surfando sobre a crista de uma onda descomunal como se fosse um campeão. E lá de cima, eu e a perplexidade dos meus olhos vislumbrávamos as ondas se engalfinhando por todos os lados.

Foi então que a embarcação se viu cuspida e despencou vertiginosamente.
A queda,  de uma altura considerável e mortal  ocasionou a ruptura do casco mas não da minha plena consciência. Em estado de torpor e sem conseguir mover qualquer dos meus músculos eu senti as gélida  águas do oceano me tragarem.

Passado  momentos quais me foi impossível determinar o tempo, tudo,  repentinamente se fez calmo. Claro, eu padeci até entender que a vida estava  indo e me deixando ali, apenas carcaça numa imensidão de percepções. Meus ouvidos aguçados a tudo ouviam e a visão prejudicada de outrora era capaz agora de vislumbrar o menor dos peixes num raio de longa distância.

Aquilo me tornou reflexivo ao ponto de imaginar-me refém de algum pesadelo ou de algum tipo de experiência pós vida. O breu imperava e eu submergia com a embarcação - Um capitão jamais abandona o seu barco - Pensei orgulhoso. Ao descer eu vi  imensas  baleias, tubarões, golfinhos e outros tantos espécimes que circundavam-me enquanto afundava. E a cada metro vencido eu sentia uma  pressão maior nos pulmões até que cheguei ao fundo do mar.
Inexplicavelmente de posse de alguma consciência eu  fechei e abri os olhos até vislumbrá-la, maravilhosa;

a sereia –
Mesmo nos contos de minha infância eu jamais a imaginara tão bela. Ela me olhou docemente e sorriu. Eu olhava para a sua beleza,  suas estonteantes curvas e tudo magicamente contrastava  magicamente com aquele belo e dourado rabo de peixe . Assombrado com a perfeição eu sorri receptivo.

Então ela me perguntou:

-Augusto, por que julgas tão importante fazer-se a prova de Deus?

Perplexo, eu não sabia o que responder. Da onde poderia ter sabido o meu nome? Bem, não importava aquilo naquela hora. O extraordinário espetáculo que desfilava a minha frente  tornou  tudo irrelevante, e me pareceu importante saborear a doçura do seu sorriso e a insistência do seu olhar. Ela aguardava pacienciosamente que eu me pronunciasse. Ainda sem saber o que ela poderia esperar  me pronunciei

-Acho que não são necessários  exietirem tais motivos.

Ela sorriu, aproximou-se e circundou seus braços pelo meu corpo e ternamente me beijou o semblante. Os seus lábios eram gélidos como gélidas eram também as mãos que me afagavam. Eu apenas fiquei ali, parado, encantado, tentando descobrir o significado de tanta beleza

Repentinamente senti  o afago dos seus braços liberaraem o meu corpo e um  último meigo e suave toque em meu rosto. Talvez  houvessem me concedido a eternidade. Talvez me desintegrassem de um momento para outro, talvez  em verdade eu nem estivesse ali,  não sabia ao certo.
E antes de vê-la desaparecer daquele encantamente eu pareci fraquejar:

-Será que Ele existe? Não são apenas sonhos, pesadelos, insanidades? –  Algun poucos segundos e outra vez eu não soubia o que me responder e só permanecia ali, solitário,  sem qualquer espécime a me cingir,  tornando-me carcaça  isenta de vida e jazida num fundo do mar. Claro, eu entendia que a matéria se ia e faria alimento para alguns espécimes, era justo. Mas eu não queria pensar  naquele momento, queria continuar exposto àquela louca insanidade, ao  rei tempo, sem saber ao certo se ele conspirava contra ou a   favor. Meu corpo, minha mente não sentia outra qualquer sensação  que não fosse a paz absoluta,  que me entorpecia, confortava.
Repentinamente não me pareceu haver a necessidade de desvendar  Deus dos mistérios –  Eu entendia que tudo era parte de um descomunal quebra-cabeça, e eu,  apenas uma ínfima  peça dele.
Assim permaneci,  ja não mais movía-me  e a água já não se fazia tão fria.
Os olhos,  semi-cerrados, ainda avistavam alguns golfosos brincarem. Eu via as manchas brancas das orcas assassinas e elas não me páreceram nada más.

E antes de me deixar partir  e expelir o último ar eu apenas sorri para tudo e torci para que lá fora a tempestade houvesse abrandado.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Feliz Ano Novo, Margarida!

Estranhos eram os olhares dirigidos para nós, ali no meio-fio; eu, um homem de 40,  faces rubras e ao meu lado a estúpida garrafa de champanha, sem bocal. Nem eu sabia ao certo da  proeza ao quebrá-la daquele jeito. Só me lembro de tê-la chocado contra a calçada  numa estocada perfeita, “Touché!” e depois o tilintar e a decepção por ter  degolado o  gargalo e não a base, como era de se esperar –  E foi exatamente assim que a coisa ocorreu. Sentado,  eu olhava por todos os lados e percebia um mundo cheio de olhares. Não eram unicamente  os olhos ou  ouvidos, também  as mãos,  bocas, gritos, castanhas portuguesas, leitoas e perus assados. Sim! não podia esquecer-me das frutas e bebidas, aliás, muitas bebidas, coisas  puramente óbvias naquele 31 de dezembro.

Evidente, eu ja me encontrava  bêbado. Eu amanhecera enchendo o caco com misturas  oportunas e  tão fatais como os vinhos ordinários. Havia mais que vinho. Havia uma  garrafa de uma vodka de categoria duvidosa que ganhara de um cliente,  além de duas caixinhas de 12 latas de cervejas vagabundas.
E parecia que o pior  sempre estava por me acontecer quando naquele estado; neurastênico. Eu sabia que  desavenças com  Margarida se tornariam inevitáveis. E ela aconteceu apesar de não ter me sentido responsável.
Tudo havia ocorrido há duas noites anteriores, dia em que fomos fazer  compras no melhor shopping center da cidade. Recordo que ao sair critiquei o  seu vestido negro, ja que este lhe acentuva demasiadamente a avanjatada região do glúteo. E não era só isso:  Aquele vestido  aliado  ao palmo acima dos joelhos era pura nitroglicerina, mistura explosiva, uma mina terrestre que  se tocada levaria nosso relacionamento aos ares. Às duras penas ela me convenceu de quanto aquilo poderia ser  normal, além de achar que eu estava sendo um mero apostador ao dizer a cor da  sua calcinha vista através das tramas escuras do tecido. Contudo, no shopping eu percebi diversos homens olhando para trás na ânsia de confirmarem se realmente o que viam era a branca a calcinha  de minha parceira. Como não poderia deixar de ser aquilo me deixou furioso,  e isso, somado ao ciúme  precipitou o contato com a mina, e daí à sua consequente explosão.

-Você tá doido homem? - Eu não dei mole pra ninguém! Larga de ser besta! - Nervosa ela se defendeu.

Os gestos bruscos e a tonalidade das vozes alteradas chamavam a atenção das pessoas, e algumas paravam, disfarçavam que viam vitrines, mas o que queriam era ver onde chegaríamos.  Nós acabáramos de sair da loja de calçados onde ocorreu o fato.

-Tava dando mole sim. Eu vi!  E ainda percebi você facilitando pra ele. Notei quando cruzou as pernas la no alto para ele olhar por entre a abertura do vestido! -  Acusei.

Talvez eu tivesse exagerado, mas, não poderia recuar, não agora.
Incomodada com as pessoas nos olhando, Margarida andou apressadamente enquanto eu, deixado para trás, a chamava e apertava o solado na tentativa de seguir seus passos irritados  e  alcançá-la.
Constrangida com o espalhafato do meu chamamento  ela freou e deixou-se tocar no braço e não mais respodeu às minhas acusações. No carro e durante o trajeto não trocamos uma única palavra. Ao chegarmos em casa continuamos em silêncio e fomos dormir, ela na cama, eu no sofá - Eu era um cara duro, muito duro.
Na manhã seguinte após o banho ele conseguiu o milagre de penetrar na sua agarrada calça jeans e colocou uma delicada blusinha de voil com bordados florais. Feito, passou a escova pelos cabelos, se maquiou e retirou suas perfumadas  roupas da gaveta da cômoda e as acomodou numa mala que era minha e,  se foi.
E eu, um orgulhoso, um  cara durão e sem mala  nada fiz para impedir.

E agora me encontrava desse jeito, saudoso, sentindo a falta de Margarida e das coisas que  me deixavam louco, excitado, prostrado. No fim, ela e seu temperamento tinham a consciência dos efeitos  que causavam em  mim, e por isso, talvez,  o abuso.
Contudo  foi  aquela sua natureza indômita a coisa mais difícil e que não consegui lidar.
Portanto, noves fora,  eu e minha garrafa sem bocal permaneciamos ali, estúpidos,  olhando para o nada,  remoendo  saudades e na espera de que algum milagre pudesse acontecer.

Mas não aconteceu.  Agora, duas casas abaixo eu via os garotos infestarem a via numa enorme algazarra  – “Feliz Ano Novo” – gritavam para quem passasse –  Nos céus, repentinamente  eclodiam os fogos de artifícios,  clareando o firmamento com seus efeitos especiais, derramando-se na noite como  se fossem cachoeiras coloridas desprendidas dos olhos de Deus. E os clarões de tonalidades fortes aos poucos perdiam suas luminosidades até definharem, inócuos e em apenas um show à céu aberto,  sem circo e sem palhaços. E tão logo esmaeciam outros fogos de artifício eram lançados na negridão, agora mais potentes, oceano de cascatas fosforescentes que resplandeciam ante os olhares embevecidos, até que  despencando dos ceús apagavam-se outra vez. Eu assistia o espetáculo de pirotecnia  enojado daquele vício de todos os  anos. Entediado o suficiente com a farsa da época, com os sorrisos amplos,  os tapinhas nas costas de gente que às vezes eu nem mesmo conhecia. “ Feliz Ano Novo” me diziam com sorrisos que deixavam suas arcadas dentárias à mostra – “Feliz Ano Novo” invariavelmente eu respondia.

"Ah, Margarida! três minutos para o ano novo e eu estou aqui, tão só!" – Gemi enquanto os ruidosos garotos aproximavam-se subindo a rua e vindos em minha direção.

-Feliz Ano Novo, tio! –  Um deles  berrou ao passar por mim-

Eu nada respondi.

-Tio, por que o senhor ta com essa garrafa quebrada? – Quis saber  o mais baixinho deles ao percebê-la na minha mão – A sua curiosidade me irritou.

-Pra socar no teu rabo! –

Eles olharam assustados e depois gargalharam –  Seria sempre assim? Eu era um tremendo fiasco e não conseguia impor respeito nem àquela meia dúzia de garotos de 12 anos.
Em seguida continuaram a subida desejando um bom ano aos que topassem pelo caminho.

O céu agora fosforescia neon. Chuvas brilhantes se desprendiam de núcleos maiores e desabafam como gotas sonoras dos ensurdecedores  rojões. Os cachorros latiam  assustados, incomodados, e isso incomodava a mim e  aos meus ouvidos. Na casa vizinha à minha, de dona Sara,  as luzes permaneciam acesas e eu ouvia o alarido que a sua gente proporcionava – Era ½ noite, em ponto -

“Adeus Ano Velho, feliz Ano Novo....” -  Num  cd, Simone cantava para pessoas entusiasmadas.
A melodia  tanto chinfrim  transpassava as paredes da sala de estar de dona Sara para ganhar a rua e a abraçar a esperança das pessoas.   Apesar da letra  otimista a canção me levou à melancolia.  “Que tudo se realize no ano que vai nascer” - Eu murmurei com  Simone enquanto eu tentava beber o pouco da champanhe que sobrara na garrafa. Juntei meus lábios aos cacos pontiagudos e, assim que entornei e o  líquido escorreu  senti  pequenos estilhaços de vidro  machucando minha gengiva, esfolando-me a língua.  Cuidadoso,  separei os estilhaços  trabalhando a língua  e os dentes e depois os cuspi – Um deles deve ter me causado uma leve fissura pois sentia o gosto de sangue ao engolir a saliva.

-“Muito dinheiro no bolso. Saúde pra dar e vender” – Desafinado eu persisti  sussurrando, porém  o meu pensamento não estava ali; Estava com  Margarida e no que ela poderia estar fazendo naquele instante. Provavelmente numa hora daquelas ela estivesse festejando com um dos seus cativos clientes. Provavelmente um sortudo que teria uma noite de serviços de primeira, gratuito, brinde da casa. Provavelmente também......
"Provavelmente o que, seu idiota?" – Questionei-me ao ver-me quase refém daquilo -  Nada! Provavelmente, nada!  Respondi  bruscamente para a minha raiva.

A noite seguia esplendidamente  feliz para alguns e isso me causava  inveja. Inveja dos festejos, inveja da casa de dona Sara e da sua  família sorridente.
Outra vez meu pensamento voou até Margarida e imaginei-a agora estirada em lençóis de cambraia numa suite presidencial de algum motel grã-fino. Talvez naquele minuto ela estivesse  sussurrando palavras que denotassem algum amor, talvez sendo possuída de quatro, sussurrando prazeres,  no leito, no chão ou numa banheira de hidromassagem..
Talvez...talvez...talvez... - Murmurei comigo ao voltar para o mundo dos vivos.


Eu não devia, mas me sentia incomodado por esses pensamentos. Não que ela não tivesse o direito de dar seu corpo a quem quisesse. Claro, podia, afinal,  Margarida era uma profissional do sexo e  sabia como ninguém  valorizar os  prazeres seus e do homem com quem estivesse.
Tudo bem, talvez a minha revolta fosse porque não queria que isso acontecesse naquele noite, não naquela noite.....Ah, Margarida!por que? por que?

-Sr. Zambini! Um feliz ano pro senhor! Eu estava olhando o senhor lá de longe e o vi sozinho na calçada. Aí  supus que pudesse estar com  fome –  Era alguém que me acordando do pesadêlo colocava algo entre as minhas mãos.

Era a dona Sara, e ela trazia um prato enorme e onde se acondicionava farta porção de arroz, um pouco de maionese, fatias deperu e  lombo defumado. O arroz ainda fumegava e o cheirava bem.
Apesar do aroma eu não estava com  apetite, mas não queria me desfazer da sua boa vontade. Lentamente espetei o garfo numa fatia de lombo, o levei à boca  e o mastiguei. Eu nada dizia, apenas abria e fechava mandíbula como se cão magoado, e o que deixou a pobre da dona Sara visivelmente constrangida. Desajeitada e sem saber se deveria continuar ali,  ela se despediu:

-Seo Zambini, vou indo. Ainda tenho que fazer os pratos dos meninos. Sabe como são essas crianças de hoje! Querem tudo na mão! Quando tiver um tempinho o senhor me devolve o prato – Disse num tom amigável e gentil. - Bom Ano para o senhor! – Completou com um sorriso simples e saiu.

Quando ela se foi me senti mal com aquilo. No meu mundo as pessoas não tinham por hábito serem tão solícitas assim. Eu fora grotesco e mal educado com ela. Está certo que  estivesse bêbado, mas o que não  significava  que tivesse o direito de ser indelicado da forma que fui.

-Dona Sara! Dona Sara! – Chamei-a quando ja tinha se afastado. Ela virou-se surpresa.

-Olha, obrigado por isso! Eu quero que a senhora e sua família tenham um feliz Ano Novo!
-Desejei enquanto procurava por algum entusiasmo que me fizesse mostrar os dentes. Ela  olhou e sorriu. Um sorriso singelo, bom, de gente caridosa e de quem se preocupa com o próximo, seja  quem for.

-Obrigado seu Zambini! – Ela agradeceu cruzando graciosamente  os braços sobre o peito e depois  partiu.


Eu a olhei seguir no seu caminho. De repente tive vergonha de mim, do que  era,  e no que estava me tornando. Pensei em Margarida novamente. Talvez ela estivesse copulando  daquele seu jeito doentio e devorador.

-Feliz Ano Novo, sua puta safada! – Brindei oferecendo o prato ao vento.

O amanhã viria e seria sempre um novo dia apesar do dia anterior. Sempre fora assim.
Margarida ainda haveria de estar com muitos homens, brigando ou sendo punida óra por um, óra por outro. Era dessa forma que queria dirigir a sua vida. Era um jogo no qual ela escolhera um lado e eu tinha que aceitá-la do jeito que decidira. Lembro-me que tentei afastá-la da prostituição,  em vão. Recordo-me como se fosse hoje....
"Escuta aqui meu chapa! Está pra nascer o homem que colocará esporas em mim! - Repreendera-me arrogante naquela feita - Vocês são sempre assim; Compram xampus, condicionadores, esmaltes pras unhas e já se julgam os donos do barraco –  Resmungou  levantando-se do sofá de casa.  Ela ia dar no pé,quando a acalmei: "Está certo! Sem xampus ou absorventes" - Concordei.
Foi então que ela deu o melhor dos seus sorrisos,  beijou-me a boca e apertou as bolas do meu pau até que eu implorasse por trégua. Era isso. Fora justo, e se não fosse o maldito ciúme  jamais  teria do que queixar.

Ainda sorria das lembranças da cena quando os garotos voltaram e passaram por mim. O baixinho vinha à frente como o mais destimido capitão.

-Hey garoto! – Chamei-lhe a atenção – Ele estancou e me olhou desconfiado.

-O tio estava com  aquela garrafa quebrada na mão porque é um babaca! – Disse-lhe num tom amigável de quem tenta uma reaproximação.

-Ah...isso eu ja sabia, tio!  Conta outra, vá!– Respondeu e olhou para os demais garotos. Todos eles riram. Eu também ri, achei engraçado aquele seu jeito de falar.

-Feliz Ano Novo, cambada de filhos de uma puta! – Brindei-os erguendo novamente o meu prato de comida.

-Feliz Ano Novo por senhor também, tiozinho! – Eles bradaram e seguiram descendo a rua.

A vida continuava. Eu continuava. Todos aqueles que necessitavam de alguma esperança tinham que continuar. Então pensei em Margarida e nos seus sussurros. Pensei  na sua pele aveludada, nos peitos fartos e na bunda libidinosamente torneada. Pensei nela  numa banheira de espuma, no cheiro bom da fragrância  e ela toda nua num sorriso descarado para o sujeito. Depois imaginei-a copulando na cama redonda  num papai e mamãe sem graça, observando pelo espelho do teto o monte de gorduras localizadas e a flacidez das nádegas do seu cliente. E era assim e jamais seria menos que isso! A profissão que se dedicara de corpo e alma, aliás, mais de corpo, era tal qual o ditado popular   " Nos cavalos dados não se olham os dentes". Então simplesmente eu analisei todos os pormenores, todos os lados  e relutei  bastante mas me dei por vencido. Talvez para  Margarida a prostituição não devesse ser encarada pelo aspecto financeiro, ou pela grana que entrava fácil. Talvez a prostituição fosse para ela  foss a única forma de viver. Um estilo próprio e  onde seria necessário compreender que o único dono que a possuia era o mundo, o acaso.

-Feliz Ano Novo, Margarida! Esteja você onde estiver! - Desejei-lhe e brindei novamente  com o prato semi erguido. Depois garfei uma generosa fatia de peito de peru e um pedaço de pêssego em calda. Tudo, tudo deliciosamente saboroso. 





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sábado, 2 de janeiro de 2010

Pequenos flagrantes do Véio China

O dragão de todas as sextas

Me pareceu estar tudo bem. A figura mediana de uma mulher bonita beirando aos cinqüenta, nem magra e nem revolta em carnes fazia emergir seus predicados. No rosto, os imperceptíveis vincos e a tez ainda roliça pouco pareciam dever ao frescor e a maciez de algum dia do passado. Nos olhos um sombreado azul como se pintado a guache e os longos cílios negros a rotulavam de numa aparência surpreendentemente  jovial como aquelas mulheres que nos confundem vez ou outra ao supormos estarmos na presença de irmãs, quando na verdade não são mais e nem mesnos que mãe e filha.

A voz, parecia roubada de uma garota de 25 anos. Os trejeitos do corpo, a onipotência das mãos, e fundamentalmente aquele seu jeito de sorrir e olhar fisgaram-me  por completo.

- Nossa, Adamastor. Na verdade eu o imaginava mais velho! – Ela disse-me com sorriso de primeiro encontro. – Mercedes começava dar prova da sua generosidade -

-Olha, se você não marcasse o encontro nesse local e não tivesse com a barba que disse que estaria, jamais o suporia Adamastor. – Eu achei engraçado à sua forma de me referenciar, mas, sorri agradecido – Mercedes, benevolente persistiu:

-Sério, Adamastor! Eu imaginei que estivesse esperando por uma dessas jovenzinhas de hoje! - Exclamou arregalando os olhos e sorrindo daquele jeito que começa a me incomodar –

Foi ali, naquele instante que pressenti que seus sorrisos atormentar-me-iam para o resto da vida.

Levantei-me, abracei-a com carinho e nos beijamo nos rostos como dois sujeitos temperados. Ao nos separmos o seu perfume invadia a atmosfera como majestosas borboletas – o seu cheiro dr impregnaria em mim pelo decorrer da noite e só me abandonaria ao voltar-me  para realidade do mundo, à vida de mim, dissipando-se ante a náusea  do cheiro da fumaça queimada vazada por debaixo e pelo escapamento do meu carro.

As horas jamais tardam e o tempo desandou em segundos, minutos e horas enquanto conversávamos; usuparmos as horas e falamos sobre um monte de coisas, porém,  quase nada de literatura.
Ponderamos pessoas, atitudes e impressões. Falamos sobre sentimentos da solidão. Discorremos sobre rompimentos, separações, desistências, algumas persistências.
Falamo ainda de ex-maridos, ex-esposas, de filhos, e permitimo-nos algumas pequenas nostalgias ao falarmos deles.   Falamos de outras coisas também. Falei de algumas fraquezas minhas apesar do momento não ser producente para confessar-me tal - E por último, para descontrair, falamos de exercícios corporais e do ar que se escasseia no pulmão dos fumantes como eu.
Bem....e falando, bebemos,  não muito; no primeiro encontro a companhia sempre se torna mais importante que a bebida.
E bebendo, discreto, o dragão das sextas brincou feito criança pelo meu canal esofágico. Eu sentia a queimação, o dragão e seu lança-chamas, descendo e subindo á de todo instante, principalmente depois da caipira de vódka que a misturei a algumas cervejas. Nesse momento a única lamentação foi não haver no local algum poderosos anti-ácido para aliviar o mal estar.

Todavia, eu era duro na queda e os diamantes não se quebram tão fáceis assim..
Continuamos. Sujeitos maduros que éramos, não demos grande ênfase às questões do sexo. Não houveram olhares libidinosos, nem lábios feridos por caninos incontroláveis -  A experiência te faz perceber que sexo é mais que ejaculação precoce e te aponta para as preliminares mais prazerosas que propriamente a insanidade do orgasmo -

E o fazer das horase o andar da carruagem  te faz  lembrar que há um caminho de volta para ser percorrido.
Nos colocamos à postos, suportamos com algum heroísmo o odor da fumaça queimada e Mercedes, delicadamente é deixada à porta dum bom edifício. Os beijos  de despedidas ainda permaneceram mornos e as  fervuras controladas.

O longo caminho é vencido rapidamente. Na rua apenas mendigos e ladrõezinhos baratos - E ao perfazer esse caminho  relembro da  juventude, dos caminhos trilhados até então, que me foram lançados num tempo aquém e além da minha imaginação.
Ao chegar em casa tiro as calças, as meias,  e de cueca deito-me na cama de solteiro que range num gemido conhecido. Olho para o teto, acendo um cigarro de filtro alvo e me sinto jovem  pois o que me envelhece é a matéria e não o espírito. E o jovem de mim  relembra alguns momentos da noite onde o olhar de Mercedes, mesmo não sabendo  fulminou.
Olha para cima e a luz acesa vaza os anéis de fumaças que sobem na direção do lustre. Ambos me parecem tão insensíveis que percebo a imprecisa lógica daquilo.
Então sorrio. Afinal, nem tudo poderia estar perdido.


Irmãos.


-Olha... Cuidado!
-Cuidado com o que?
 -Só estou te avisando. Cuidado!
-Por que, vai me matar? – Perguntou Ariel
-Não sei. Só mandei ter cuidado. – Afirmou Oscar

“Definitivamente, o álcool é a droga mais charlatã que a humanidade criou. Por ele as amizades se tornam amargas, os relacionamentos se falseiam  e os cordeiros laceram como lobos.”

Esses dois sujeitos discutiam acidamente num bar de esquina,  desses bem fuleiros. Totalmente embriagados, haviam ingerido  demasiado aguardente e as duas cervejas postadas à mesa eram o pretexto para a saideira. Discutiam  em falas arrastadas, gesticulam em demasia e os motivos se faziam enigmáticos. Só um outro e paciente alcoólatra poderia compreender alguma coisa  de suas mútuas acusações, afinal,  ofensas e brigas entre bêbados, só  mesmo os bêbados entendem.

-Seu filho da puta!  Você está  me ameaçando? Insistia Ariel
-Aí você que sabe. Só mandei ter cuidado – Devolvia Oscar
-Ah é? Então enfia esse tua ameaça no rabo da puta que te pariu! – Esbravejou Ariel.

Oscar se levantou da mesa rapidamente e agarrou sua garrafa  que estava pela metade e segurou com firmeza na parte delgada e num golpe certeiro transferiu o peso do casco à cabeça de Ariel. O baque foi seco, oco, surdo,  como se um grosso bastão de basebol acertasse o meio de uma moranga e a explodisse.

-Nunca mais! Ouça bem! Mas nunca mais mesmo me  diga que minha santa mãezinha é uma puta! – Oscar, bradava incontrolável  para o  sujeito estatelado  ao chão. Como se fosse um rio à procura do mar o veio escorreu rubro e denso por detrás da cabeça de Ariel

E Oscar continuava esbravejando e sacudia a sua garrafa ao ar, aliás, parte de sua garrafa, agora apenas restos de pontiagudos vidros.Evidente, Ariel jamais responderia, estava morto. Fora uma pancada  e tanto já que a garrafa se quebrou em sua cabeça e fez penetrar em seu  cérebro cacos enormes. Quem olhasse para ele agora teria a impressão que a cena mais se assemelhava às touradas, e aqueles cacos cravados no alto da cabeça nada mais que bandeirolas, dessas que se fincam no lombo do touro no decorrer da peleja.

-Levante seo covarde! Logo mais seu filho da puta a mãe vai saber do que você está xingando ela! – Ainda bramia o possesso Oscar diante o silêncio de Ariel –  

Eram mais de onze da noite e o volume de álcool ingerido por Oscar, não o permitia que desse conta da morbidez da  situação e só se lembrava das ofensas à sua mãe chutava o indivíduo inerte, nas costas, peito, cabeça, b oca e onde mais houvesse espaço para a sua ira. Talvez a quantidade de álcool tivesse  sido tanto que Oscar ainda não percebera que ao chão não estava  um sujeito desbocado e atrevido. Não, não era, quem estava ali era o irmão mais novo, Ariel. Feito e cansado de  tanto bater sentia o peito do pé dormente. Perplexos e estáticos o dono do bar e de mais dois clientes que bebiam ao balcão, o viram abandonar o local e seguir trôpego  pelo calçamento estreito da via.

As conseqüências não tardaram muito. Eram duas horas da madrugada quando a polícia colocou as mãos em Oscar; ele roncava  tranquilamente num quartinho dos fundos,da velha e pequena casa da mãe. A miséria denunciava o lugar e estampava as paredes que em grande parte não tinham reboco e  porcamente pintadas à cal.
Na rua as duas viaturas que davam suporte à captura  mantinham-se com as luzes girando intermitentes, dando a mais nítida da impressão que de hora para outra um show de pagode fosse  iniciar, e aquilo deixava desprotegidas outras ruas dos bairro onde assaltantes poderiam estar agindo livremente.
Dona Amélia, assustada, acordada pelos murros dos policiais em sua porta cedeu-lhe passagem e por eles mesmos soube da tragédia. As lágrimas da  sexagenária apenas rolavam, silenciosas. – Ela já temia pelo desfecho, e  em outras oportunidades o seu choro foi o único instrumento a dar um basta à violência daqueles Caim e Abel da contemporaneidade.

E para ela e a partir de agora seria muito difícil, principalmente num dia como aquele, domingo. Sim, seria muito difícil, pois para ela os domingos eram especiais,  ainda mais porque a sua maior alegria era de estar ao lado dos filhos, mesmo que vivessem às turras. Porém nos domingos não havia contenda, pois ela determinou que os domingos eras os dias da paz, de um quase amor. E mais, domingo era o dia dos seus  sorrisos resplandecendo ao preparo do macarrão que comeriam juntamente dum frango assado com farofa comprados na padaria da esquina, mesmo que ás custas da sua pequena aposentadoria

-Como? Eu matei meu irmão? Cês estão de brincadeira comigo? –  Um perplexo Oscar murmurou  ao ser algemado O sargento da PM nada respondeu e apenas empurrou a obesidade  para fora dos cômodos mofados.
Foi com lágrimas nos olhos que dona Amélia viu o filho ir embora trancafiado na “gaiola” do crime

Ah, domingo!   Foi o domingo mais triste na vida de dona Amélia. Ela lembra que o corpo de Ariel  no IML à espera de laudo enquanto Oscar a essa altura já devia estar  no presídio com outros  10 ou 15 bandidos por cela.
Para ela foi um dia sem macarronada, sem frango, sem parentes, sem mais lágrimas fadigadas. E ela apenas reunia forças para as  coisas que deveriam ser resolvidas: A Municipalidade arcaria com o custo do caixão? Do enterro? E a vala no cemitério público, haveria  espaço para o  filho?
Quanto à Oscar, claro, ela pensara nele, mas não queria chorar agora, e o visitaria sempre que possível.
E então o rosto se contorceu tão dilacerado que  se iluminou  ao  imaginar-se atravessando os perturbados corredores da Penitenciária do Estado.  Parecia-lhe um pesadelo visitar os filhos num mesmo domingo,  ambos mortos, porém, um deles ainda com vida.




Escadarias para o paraíso


É enigmático acordar sobressaltado ás quatro da manhã, ligar o system, colocar o CD na bandeja e descobrir que “Stairway To Heaven” ainda me fragiliza.
Desolador é ouvir e perceber que a melodia da canção insinua que algo te aborrece, que não se acomoda no lugar e nem na construção inconclusa que você se tornou.
Perturbadores são os riffs de Page, que sopram escarnecidos que a morte traça rotas enquanto as umidades nas paredes te olham assustadas.

Quanta de extravagância houve às quatro da manhã?
Quantas ilusões sonhei às quatro da manhã?
Quantos pedaços de mim foram perdidos e encontrados às quatro da manhã?

Muitas vezes destrocei-me em noites entorpecidas, embriaguei-me de nostalgias e devassidões que enodaram o que já era negro.
Será tão difícil extirpar-me do impuro e separar o melhor de mim?
Será tão intricado deixar-me de pactuar fraudulento?
“Ela está comprando uma escadaria para o paraíso”, no canto de muitas gerações poetisa Mr. Plant.

Talvez seja penoso aceitar que ainda possa haver escadas para mim.
Impreciso, já fui tragado o suficiente no quebranto das auroras e pela insensatez que me oculta no plausível a que me imponho.
Eu não mais quero fenecer ante o pranto gélido das quatro horas da manhã.

Pode me ajudar, Mr Plant?


Coisas de um velho paulistano

Dois bons e tranquilos velhinhos podem encher a cara numa cidade como essa?

Minhas referências em São Paulo não são la grande coisa e nem das melhores. Sempre enfiado em butecos de bêbados, onde maníacas damas escarlates retocam as carregadas maquiagens sempre que seus clientes se vão. Depois sorriem para as notas de vinte que repousam entre os seios murchos e flácidos.

E isso me faz sentir que não estou com nada. E para um sujeito sem criatividade só resta o delírio - Então tento ser o mais autêntico dos subway a duelar com o que restou da minha sanidade. Aí me vejo convidando alguém que não seja daqui para um piquenique nas dependências do metrô. Mas mesmo no devaneio, a minha parte que insiste em ser sã repreende-me escandalosamente: "Cara! esse lance é programa de troglodita" - E isso me fez pensar seriamente na questão - Relaxado do jeito que sou, e se me flagram assoprando farofa pelo vão do túnel? - E o pior - Atirando os ossos da galinha sob as rodas da composição só pra ouvir o "craft-craft"

Diante tanta estupidez resolvo abrir mão do pensamento - Talvez a insensibilidade da grande metrópole interfira no que me tenha, no que pense, que julgo, no que é belo, feio, bom ou mau -

Talvez o fato de nunca ser chicoteado pelas brisas das praias nordestinas - que só conheço por postais - ou mesmo, ser um ignorante e nem saber ao certo da imensidão azul de que falam - e que pelo jeito não me deixaria sentir falta das outras cores - é que me faz supor um cara de emoções ainda cruas. Talvez o excesso do nada me faça permanecer aqui e sentir-me tão insensível quanto o dia que me farta. Tornou-se hábito amanhecer e a carranca do céu paulistano mal me deixar recordar o belo e infantil azul que me acostumei. E sem ele surgem por todos os lados pessoas com feições austeras, olhares desconfiados.

Cadê a alegria nas pessoas e os polegares para o sentido "out" das coisas?

Infelizmente Sampa, só vejo este inevitável cinza-chumbo-chuva do dia-a-dia.

Mas te amo e  sou  fiel.
 

Véio China e a Sessão Espírita

Fazia uma penca de meses que eu não falava com o Véio. Não que houvéssemos nos desentendido, por dinheiro ou mulheres, únicos motivos para dois homens adultos e imaturos se digladiarem. Nem mesmo questões literárias, já que a admiração era mútua. Em verdade, havia eu abandonado por uns tempos a esbórnia etílica da qual, vez por vez, nós éramos parceiros. Necessitava de um afastamento da vida mundana em virtude de certas escolhas. Como dizia um amigo em comum, “evangélico até o último fio do rabo”, segundo o China; eu agora “servia aos espíritos”. À época da minha conversão, expliquei ao Véio os motivos de tal escolha. Ele olhou de lado, bebericou do seu bloody Mary e soltou o seu já clássico:“ Talsquepariu, cumpade Lameleque!”
Contudo, ele não estranhou o meu telefonema naquele começo de tarde.
- Véio China?
- Veja se não é o meu cumpade Lameleque! –Saudou-me em voz pastosa para em seguida fulminar – Ainda anda naqueles trecos de falar com os mortos?
- Na verdade, é este o motivo do meu telefonema. Um espírito baixou numa sessão mediúnica e deseja levar um lero contigo – revelei desprovido de delongas.
Breve silêncio do outro lado da linha
- Homem ou mulher, cumpade?
- Espírito não tem sexo, mas eu diria que ele tem uma personalidade feminina.
- Mulher? Então eu estou dentro. Quando é a sessão?
- Próxima terça-feira, às 20 horas. Eu te pego em casa e, Véio, por favor, esteja sóbrio.
- Cumpade Lameleque, vá cagare! Te espero às sete e meia.
Na hora marcada eu estacionei em frente à pensão onde o Véio se escondia e britanicamente vi a sua figura surgir através umbral da porta. Era o mesmo China de sempre. Aquele jeitão desleixado, terninho amarrotado, cabeleira branca penteada para trás e os indefectíveis óculos escuros. Percebi então que nunca havia visto o China sem aqueles óculos, fosse dia ou noite.

Cumprimentou-me com o entusiasmo de sempre e dentro do carro relembramos farras, bebedeiras e encontros literários. Véio demonstrou interesse na sessão espírita, perguntou o nome de morta e diante da minha resposta percebi uma interrogação surgindo em sua testa enrugada.
- Norma? Não me lembro de nenhuma Norma, cumpade.
- Talvez seja uma conhecida de outra encarnação.
- Ou a identidade verdadeira de uma falecida piranha. Vai ver que eu só conhecia pelo nome de fantasia, nénão?
Chegamos ao centro espírita poucos minutos antes do inicio da sessão. Apresentei o Véio aos outros participantes da reunião, não mais de cinco ou seis gatos de meia-idade pingados. Véio interessou-se pela mecânica da sessão e lamentou que os kardecistas não se utilizassem de uma bebidinha para atrair os espíritos, comentário que constrangeu os participantes, em especial dona Dalva, poderosa médium de efeitos físicos e cara de Jabba do filme Guerra nas Estrelas.
Fomos todos encaminhados para uma sala no segundo andar do centro, onde uma grande mesa forrada com uma tolha branca era a coadjuvante da decoração em que se destacava uma cabine de madeira cujo portal era protegido por uma alva cortina. Dona Dalva dirigiu-se para o reservado enquanto o restante do grupo sentou-se em volta da mesa.
O coordenador do grupo leu uma mensagem preparatória e fez uma prece rogando sucesso para os trabalhos da noite. Em seguida, apagou as luzes deixando o ambiente iluminado por uma pequena lâmpada vermelha. O China, sentado ao meu lado, cutucou-me com o cotovelo para em seguida sussurrar:
- Já frequentamos muitos puteiros de luz vermelha, nénão, Lameleque?
Implorei ao Véio por silêncio e concentração, como quem ralha com uma criança. Como resposta, recebi um sorriso debochado.

Permanecemos alguns minutos em silêncio até que a câmara reservada começou a emitir sinais de algum movimento. Em seguida, a cortina moveu-se e de lá surgiu uma entidade feminina envolta em um material semelhante à gaze. Apenas seu rosto era visível por detrás daqueles panos que envolviam um corpo escultural. Um rosto lindamente esculpido. Olhei o China e percebi riso de velho safado subindo por entre as bochechas.
Norma postou-se ao lado do Véio que se virou para admirar a figura do outro mundo materializada. Foi então que Norma falou.
- Henry Chinaski, trago novas da outra dimensão para ti. Esta vida no planeta é uma gota d’água dentro do oceano da eternidade. A verdadeira vida é a de cá. A de vocês, encarnados, apenas uma aprendizagem na experiência da carne. E você não tem aprendido muito, Henry Chinaski. Lameque também não, mas ao menos anda se esforçando, a despeito das escorregadas. Deixemos porém o cara de limão para outra oportunidade, pois o objetivo da minha vinda hoje é você.
- Mas a gente já se conhece, Normita? – Perguntou o Véio.
- Sim, Chinaski. Fomos prostitutas sagradas em templo romano 500 anos antes da vinda do Cristo.
- Talsquepariu! Puta, eu? Difudê isso...
- Sim, Chinaski e das mais devassas. Por isso você reencarnou como homem para que não usasse das facilidades que um corpo feminino possibilita e não levasse homens à loucura como fez anteriormente. Porém, notamos que o tiro saiu pela culatra. Sua libertinagem escrevendo, falando e, sobretudo, relacionando-se o seres do sexo oposto é a prova.
- E cumpade Lameleque? Foi puta também?
- Torno a dizer que Lameque não é objetivo da nossa reunião mas, ele já sabe do seu passado como autor famoso que usou mal seus talentos literários. Por isso voltou como o escritor fracassado e medíocre que todos conhecem.
O Véio soltou uma gargalhada e novamente me cutucou. Os outros membros da sessão permaneciam concentrados. Norma prosseguiu.
- Dada as circunstâncias, Henry Chinaski, viemos lhe propor uma troca: ou você toma jeito ou terá que reencarnar como uma hermafrodita na próxima vida para não usar dos atributos do sexo como instrumento de atraso em sua jornada rumo à evolução.
- Sifudê, Normita! Não quero ser hermafrodita! O que devo fazer?
- Largar a bebida, a luxúria e os escritos libidinosos.
- Prefiro o hermafroditismo então. Será uma nova e interessante experiência. Já pensou, Lameleque? Comer a mim mesmo?
Norma pareceu decepcionada.
- Bom, quem avisa amiga é...
Em seguida, a entidade rumou em direção ao reservado onde Dalva se encontrava. Quando o Véio pôs os olhos na imensa bunda da entidade materializada, perdeu o controle e, levantando-se, passou a mão traseiro redondo de Norma, enquanto gritava seguidas vezes: “Rabão, hein! Rabão!”
Em contato com a mão do China, Norma começou um imediato desmaterializar, derretendo diante de nossas vistas feito um sorvete ao sol. Instalou-se verdadeiro pandemônio na sessão. Os participantes, furiosos, censuravam em altos brados o Véio. Temendo um possível linchamento, procurei uma saída.
- Gente, esquecemos Dona Dalva!
Os membros da reunião largaram o China e correram apavorados em direção à cabine. Puxaram a cortina e encontraram a cover do Jabba desmaiada. Aproveitei o descuido e tomei o o braço do Véio, fugindo ambos do centro espírita.
Dentro do carro, de volta para a pensão, não pude deixar de expressar a minha revolta:
- Seu fêdaputa! Tu podia ter matado Dona Dalva!
- Por quê, Lameleque?
- Era ela que estava doando o ectoplasma para a materialização da Norma. Quando você passou a mão na bunda do espírito abalou todas as estruturas vitais da médium.
- Numa boa, cumpade. Cê acredita mesmo nesse negócio? Me pereceu enganação. Para mim, era a Dalva disfarçada, com efeitos especiais, é claro. O rabo pelo menos parecia do mesmo tamanho.
- Sifudê, Véio!

Continuamos boa parte do trajeto em silêncio. China tratou de quebrá-lo.
- Engraçado, Lameleque, o corpo da Normita parecia ser feito de algodão.
- É que é muito difícil, tanto para o médium quanto para o espírito, o processo de materialização. Por isso a textura do corpo não é exatamente igual ao dos encarnados. Como também é muito difícil formar o corpo, eles preferem dar atenção a face, envolvendo-se em ectoplasma condensado semelhante à gaze. Daí vem as histórias de fantasmas envoltos em panos ou lençóis.
Captei um riso abafado. Na certa pensei que o China debochava das minhas crenças. Nasceu em mim uma vontade de parar o carro para esbofeteá-lo. Foi quando ele mais uma vez surpreendeu:
- Qual será o gosto de ectoplasma, cumpade?
- Gosto? Como assim?
Em resposta, o China tirou a mão direita do bolso do paletó. A freada foi brusca. Xingamentos e buzinas ecoaram por toda a avenida. Espantado, vislumbrei a mão do China lambuzada por um elemento branco, viscoso. Tratava-se de uma pequena quantidade de ectoplasma que ficara em sua mão após a bolinada na Norma. Véio cheirou e depois provou a substância. Passeou a língua pelos lábios, fez cara de degustador profissional e decretou:
- Talsquepariu, cumpadi Lameleque! Tem gosto de chantily!

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*** Mais uma grata homenagem  que recebo de um dos melhores escritores  que conheço e que também posta no Orkut - comunidade Bar do Escritor -  O seu nome? O seu mome é Zulmar Lopes, popularmente conhecido como Lameque, porém, sempre cumpade Lameleque para o Véio China. Dizer que adorei seria óbvio demais assim como outros que o leram. Porém eu tive um ataque de riso diante tanta criatividade, inclusive a que me faz rotulá-lo como um  grandes escritor ainda não famoso com suas letras. Talvez seja somente uma questão de tempo - Aguardem!

Valeus a homenagem, grande véio Lamão!!!