sábado, 2 de janeiro de 2010

Sobre varizes, missas e galos - ( Da série Avô & Neto )

Vô, em sua vida o senhor pegou galinhas? – Perguntou o fedelho enquanto dirigia os olhos para o chão ao se concentrar  no par de tênis.

O avô conhecia o neto como ninguém e sabia que a pergunta só poderia ser coisa de quem na rua aprende coisa que não presta. O menino o cercava há uns 10 minutos, e não à-toa. O seu Abílio logo percebera a intenção naquele olhar  dissimulado,  mantido estrategicamente focado nas listras dos Adidas.
Dissimulado por dissimulado ele também era, portanto tratou de levar a conversa para o lugar mais ensolarado do navio.

-Claro bambino! I mangiato as galinha de tuto os jeito; Ensopada, frita, assada, com farofa, sem farofa, com molho e sem molho! – Exclamou o velho naquele seu jeito demasiadamente italianado.

Era  engraçado ouvir suas frases afetadas, imprecisas, ora com expressões da língua mãe, ora numa mistura difusa, italiana e o sofrível português. Para denotar que gostava das iguarias o velho curvou os dedos sobre a boca e  depois os impulsionou rapidamente como se beijasse o ar.
A decepção esparramou-se nos olhos do guri, já que não era essa a resposta que aguardava do velho. Permaneceu quieto, desenxabido, olhando para os cadarços dos tênis quando se muniu de alguma valentia, levantou o olhar e fitou firmemente o seu Abílio.

-Ô vô! Num é disso que to falando. To perguntando é dessas moças que ficam nas esquinas. Essas de  pernas de fora e que usam saias tão curtas que da pra ver as calcinhas...

Pronto! Aí estava o objetivo do menino –  "O bambino  quer sabere tuto sobre as prostitutas! Più questo agora?” – Gemeu o avô  entre dentes- Que prosa mais imprevisível, ainda mais para um fedelho que mal passara da idade de jogar bolinhas de gude - O velho pensava ao também olhar para os seus pés e pras sandálias havaianas. Porém, obstinado, o garoto se fincara na idéia da qual o velho pensava em como escapulir:

-Então vô! Comeu ou não? - 

-Ah! È questo que quer saber?  Eco! Perché non disse logo, eim Pavarotti? Que tu quer sapere é das regazze de rua que fazem sinal pros carros. Isso?

-É vô! É isso mesmo! Fala... quantas dessas galinhas o senhor pegou? - Os olhos do garoto brilhavam de ansiedade.

- Va bene va, vostro avô parla! O tu avô teve tantas galinha que já nem si ricorda mais! –  Respondeu olhando para o nada. Depois um tanto constrangido se ateve aos botões da camisa mesmo sabendo que nem todos se encontravam lá.

-Mas... mas, vô....Foram tantas assim? O senhor pegou todas as galinhas do galinheiro de uma só vez? – O guri insistiu ainda mais ansioso. O que ele queria saber era se o avô não tinha deixado escapar nenhuma.

“Ma que regazzo chato!” – O velho concluiu consigo - Também, por que fora dar corda para o fedelho? - Agora que agüentasse -

-Ta certo Gianecchini! Tu avô há mangiato tuto as galinha! Una de cada vez porque  os otro galo ficava tuto de olho em vostro avô! Capice, Topo Gigio? – Respondeu num sorriso  idiotizado, recordando-se das muitas aventuras do passado.

O menino o escutava atentamente. Queria mais, muito mais. O avô ainda incomodado pela conversa tentou algo diferente para despistá-lo.

-Ah! Agora parla Paolo Rossi... Vá, me diga come va andare il nostro, Palestra, eim? – O garoto nem ouvira a pergunta sobre o Palmeiras. Ainda reverberava em sua mente a resposta do avô  - "os galo ficava tuto de olho em vostro avô!" -  A frase o deixará  acabrunhado.

-Vô, como assim?...O que quis dizer com “os galos estavam sempre de olho no senhor”? - Perguntou abismado. Afinal,  não compreendera exatamente o sentido da coisa

-Ué! Vostro avô parlou meramente que... - Foi interrompido pelo garoto

-Ah não vô!  Não vai me dizer que o senhor também era uma galinha  pra eles? –  Perguntou aparvalhado. Não, ele jamais gostaria de acreditar que o avô fosse um devsiado tal qual o Juquinha, da rua debaixo.

- Epa! Catzzo mio! Ta  pazzo  Berlusconi? Per l'amore de Dio, esquece questa história das galinha, vá! – Reagiu o impaciente Abílio. Decididamente o velho não se sentia bem falando daquilo - menos ainda com alguém quase 60 anos mais jovem que ele –

Contudo era compreensível e ele entendia o garoto já que nessa idade os meninos iniciam o interesse por coisas que falam sobre mulheres e sexo  – Ele mesmo já atravessara aquela fase e se lembrava de como era - Além do fato de ótima criação de Pedro, um garoto de boa índole, portanto jamais poderia ser avaliado pelas bobagens que se aprendem na rua. O neto poderia ser arteiro, mas era merecedor de muitos créditos, ainda mais por ser religioso e assíduo das missas de domingo na Igreja de Nossa Senhora da Caro Pitta, próxima de casa. Todavia e apesar dessas ótimas considerações uma nova e terrível questão não se interpôs à bisbilhotice do neto:

-Ô vô, o senhor nunca fez "troca-troca" com os outros galos da rua, né? O neto o questionou com olhos arregalados, meneando o quadril num vai-e-vem que simulava o ato.

O avô o olhou aterrorizado, apesar de que para o neto a questão não parecia fora de propósito; alguns garotos maiores  sempre propuseram a ele fazer o tal de "troca-troca". Contudo, desconfiado, apesar de curioso, jamais cedeu –  E ainda mais porque era espada, muito espada. E tanto era espada que sempre se recorda duma  vez que o namorado de sua irmã  o flagrou olhando por debaixo da saia da mulher do tio Fredo que, displicente,  galgava os degraus duma escada que dava para a edícula no fundo do quintal:  "Guri,  homem que é homem tem que ser respeitador e espada. Nunca se esqueça disso!" - Victório lhe dissera naquela oportunidade enquanto descaradamente olhava  para o topo da escada  e pras belas coxas  da tia Doralice.

Para o avô, ao contrário,  a pergunta mais pareceu acusação, e isso o desconsertou - Como um pirralho daquele poderia imaginá-lo numa patifaria daquelas? E aquele seu gesto infame de simular o ato sexual?  Onde e com quem aprendera tanta besteira? Ainda mais com perguntas impróprias, insinuações torpes que o fizeram sentir-se ultrajado. Sim, ofendido sim, afinal em seus quase 40 anos de Brasil jamais houvera alguém que delirasse com tantos desatinos a seu respeito –  Aquilo tinha que estancar-se ali, terminar ali. Estava furioso quando respondeu:

-Isto non li interessa, seu infame! Isso nom é pergunta que se faça! E punto finale in questa conversa, capito, Mussolini? – Repreendeu-o com o dedo em riste. O tom autoritário e a rudeza do ato deixavam claro que aquilo terminava ali.

O brilho desapareceu dos olhos do garoto como o crepúsculo numa tarde de nuvens negras. Pedro fechou-se e se manteve em silêncio; O velho fez que não percebesse. Na varanda onde estavam,  o avô levantou-se da pequena mureta que a divisava a varanda e o quintal e andando pelo gramado  trouxe a bacia com a água aquecida pelo sol; uma das suas manias - Pedro conhecia todas as esquisitices do avô. Muitas vezes o velho contara os hábitos dos seus ancestrais. Discorrera os costumes que se passavam de geração a geração, enfim, todos os hábitos e manias trazidas da sua velha e querida Itália
Acomodando a bacia onde estava o senhor Abílio rumou para o quarto e de lá voltou vestido num short largo, verde, desses que se amarram na cintura. Ritual em andamento acomodou a cadeira, sentou-se e enfiou o pé direito, depois o esquerdo enquanto em seu rosto a feição de alívio acentuava os vincos da idade.

Pedro continuou sentado na mureta – olhava pras esmaecidas pernas do avô; sempre achara estranhas as suas artérias que, saltando logo abaixo dos joelhos seguiam como túneis até se findaraem nos calcanhares como obras inconclusas  - Às vezes tinha a nítida impressão que aquelas veias azuladas mais pareciam estradas cortando a palidez dum deserto.
Um pouco distante dali, ao fundo do quintal, as andorinhas gorjeavam alegres em cantos vindos da imensa mangueira enquanto o silêncio estabelecido entre os dois incomodava a ambos. Pedro raciocinava, procurava munir-se de coragem diante das dúvidas que o avô lhe causara; Será que o avô seria tão diferente de si e se dobrara aos garotos mais fortes da rua? Será? – Isso o remoia - Muniu-se de um pouco mais de coragem, a questão não podia esperar.

-Vô! - Repentinamente faltou o heroísmo para persistir. Depois  rumou para o quintal onde há três metros dali não apresentava grama, mas somente a terra batida.

-Parla, Marcelo Mastroiani! Parla para vostro avô, o que é! – O seu Abílio perguntou num sorriso de quem amansou a sisudez.

Sim, estava ciente que fora muito duro com o menino, reconhecia, mas foi bom deixar claro  que aquela conversa não o agradava, porém já tinha passado.
Pedro se concentrava em algum ponto do chão de terra; seus olhos flagravam uma taturana que próxima do pé esquerdo do seu Adidas fazia uma tournée pela terra com direção ao gramado. A extensão esverdeada do bicho imersa num exército de pêlos esbranquiçados contrastava com a cor da terra,  dando-lhe uma aparência tanto exótica.

Pedro ainda exitava, incomodado, decepcionado - Ele procurava pela bravura necessária para que as dúvidas abandonassem a sua boca -

-Bem... é assim vô... Pelo o que eu entendi... E pelo que o senhor disse... eu entendi que o senhor fazia bobagens com os meninos no galinheiro. Foi isso vô?

O velho o ouviu atônito – Inacreditável! O neto além de nada entender lá vinha novamente com as maldosas insinuações.  Que tradução estapafúrdia que o neto dera às suas falas – Claro! Quando ele se referiu aos “galos estarem de olho”,  referiu-se aos relacionamentos com mulheres proibidas, comprometidas. Todavia ele nem sabia por que fizera a alusão ao fato, mas já estava feito. Contudo a crueza que Pedro o despira da sua masculinidade fez seus pés emergirem rapidamente da bacia, espalhando água para os lados – Irado  tentou içar o pesado corpanzil da cadeira- O som dos seus calcanhares chocando-se violentamente com a borda  da peça em alumínio assustou o garoto.

-Pernachia! figlio di um camundongo! Explodiu o velho ao se manter em pé à procura das sandálias que esquentariam a bunda daquele fedelho insolente!

Esperto, Pedro  ao perceber a gravidade empreendeu uma louca e desabalada corrida. Ao chegar ao portão o coraçãozinho parecia escapulir-lhe pela boca – De longe ele fitava o avô, e este  gesticulava com o braço erguido e o punho cerrado - “Vagabondo, ordinário!" - Depois o velho se acalmou e voltou para o seu  banho de pés – Assim que se pegou fora de perigo o coração desacelerou e a respiração tornou-se mais amena. Contudo um estranho aborrecimento o incomodava ao ver aquele senhor arredondado e de cabeça calva estirado na cadeira. Não era como a sua dor de barriga ou aquela que doíam nos seus pés ralados de tanto jogar bola nas ruas de asfalto. Não, não eram essas. Era um sentimento vindo da alma, uma quase mágoa. Porém ele não se sentia o responsável por aquilo, afinal, havia mácula na honra da família, o desatino de um senhor e seu afrescalhado passado que por ele não foi provido, mas que agora também o denegria, afetava a sua honra.

O que diria aos seus amigos se  descobrissem sobre o seu avô? Como se justificar?
Justo eles que desdenhavam dos garotos menores que lhes caíam na lábia  – “Lá vai o florzinha!” – eles gritavam para quem quisesse ouvir. “Lá vai o menininha!” eles escarneciam daqueles se submetiam a um fajuto "troca-troca" sem  nada ganharem em troca. – Afinal, do mundo das ruas nada se esconde e tudo se sabe –
Ah não! Com ele não! Jamais gostaria de ser conhecido como “Pedro, o neto do seu Florzinha”. Jamais! Enfim, a dor estava ali e seu avô, infelizmente um "Juquinha".

Assim pesaroso fixou-se na figura do avô por mais alguns segundos e suspirou fundo. Voltando à amarga realidade, empreendeu a caminhada e desceu pela rua, cabisbaixo e silencioso, chutando as pedras que seu par de Adidas topava pela frente. Estava preocupado consigo, com seu futuro, com as dúvidas se, haveria ou não a maldição. Será que a hereditariedade colocaria as garras em si como bem alertara a dona Gertrudes, sua professora que,  falava sobre genética e dos genes hereditários que, por vezes são responsáveis por  males que afligem a humanidade, esses que incluíam a calvície e as varizes.

Agora,  miseravelmente naquela situação  ele percebia o quanto Dona Gertrudes estivera certa.
Tudo fazia sentido; as conversas sobre os ancestrais, a tradição,  os hábitos,  os pés escaldando em bacias de alumínio,  as grossas varizes que também talhavam as pernas do seu pai, bem como as dos tios Giuliano, Giuseppe e Fredo. Agora, mais que nunca tudo o levava a crer que a ciência era a coisa mais poderosa que existia e jamais se enganava –
E as semelhanças não paravam a, pois havia mais coisas em comum entre todos além das calvícies e varizes; Suas estaturas, seus timbres de voz e os seus jeitos espalhafatosos de quem apenas conversando naquele frenetismos de gestos poderiam atravessar oceanos. Se havia algo mais?
Sim havia muito mais, já que sem qualquer exceção todos eram motoristas de taxis!
Pedro apenas se lamentava do irrefutável, do análogo zombando da sua razão.

Sabia que diante de  tanta certeza precisaria de energia  para uma franca conversa com o seu pai.
Antemão e sem que ele soubesse iria à missa das oito de sábado e rezaria para que ele  tivesse escapado ileso da maldição genética da sua ancestralidade. Oraria também para si e rogaria à virgem santíssima que jamais o deixasse à mercê de um destino tão infame. Tudo era uma questão de se ter fé, ele a tinha, fé que infelizmente tivesse  abandonado o seu avô.

-Minha Nossa Senhora de Parma, não me abandones numa hora dessas! - Ele rogou ao avistar a abóbada da Nossa Senhora da Caro Pitta,

Em seguida e diante do  templo cristão  abriu os braços para os ventos e  deixou-se tocar como se ungindo das forças mais sagradas. Depois, dirigiu o os olhos para o firmamento onde tentava vislumbrar por entre as nuvens indecifráveis uma  reconfortante piscadela da sua santa protetora.


Copirraiti02Jan2010
Véio China ©






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