quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O pecado mora sob a vermelha saia da empregada

Eu estava cheio de problemas. Em contrapartida os problemas andavam saturados de mim - há tempos não nos dávamos bem - Em todo caso o fato não deveria servir de pretexto para preocupá-la, afinal fazia dois dias que me encontrava fora de casa e sem qualquer aviso. Digitei alguns números no teclado iluminado.
Após o terceiro toque atenderam:

-Alô! – Antecipou-se a voz do outro lado

-Matilda, sou eu! Alguma novidade?

-Ah, tem sim seu Zambini! Aquele homem da semana passada, de ontem para hoje esteve  quatro vezes. Lembra? Aquele que o senhor me pediu pra dizer que tinha viajado pra Portugal.

Essa era Matilda, a minha nova empregada. Estava comigo há uns 3 ou 4 meses. Morena, gaúcha, 34 ou 35 anos, dona de um rabo fenomenal e de instrução um pouco além do 1º grau que a tornava bem peculiar. Contratada junto a uma agência de emprego eu havia achado interessante o seu currículo e algumas cartas de referências dos seus ex-patrões. Contudo, neste curto espaço de tempo constatei a possibilidade da massa cinzenta de Matilda haver se deslocado e se concentrado no meio das suas coxas. Talvez o fato de estar sempre "fora do ar"  fosse o maior responsável pelos curtos períodos em que se manteve no trabalho. Em todo caso eu gostava dela.

- Ah sim, o Oficial de Justiça! – Balbuciei.

Ah! Oficiais de Justiça, sujeitinhos intragáveis, prepotentes, mal educados. Incomodava-me a persistência desses sujeitos. Impressionava-me sobremaneira o fato de às vezes serem tão pegajosos e grudentos quando previam algum tipo de vantagem para si como o ganhar uma grana extra ao notificar. Todavia a persistência daquele rapaz era digna de louvor.

- Ah! E ele, disse alguma coisa? – Perguntei aborrecido.

-Disse sim, seu Zambini! Ele disse: Meu amor, espera o paizinho daquele jeito que você gosta!

-Como? Como assim Matilda? –

-Ah seu Zambini, o moço disse isso pra mulher do celular!

-Do celular? Que celular, Matilda?

-É assim, seu Zambini: Enquanto ele me perguntava pelo senhor tocou o celular dele e ele atendeu.

-Ah sim, entendi! Mas o que eu quis dizer, Matilda foi se ele disse algo ou se deixou algo em meu nome, como os papéis da outra vez – Esclareci impaciente, referindo-me ao fato do oficial ter deixado na vez anterior uma folha informando que estava à minha procura.

Porém essa era mais uma das pequenas provas do quanto Matilda sofria ante às percepções das coisas da vida. E o pior, ou melhor; Ainda bem que os seus cabelos castanhos escuros não eram louros. Se assim fossem não seria de estranhar que tentassem lhe colocar arreios.
Enfim, era melhor desta forma - Empregadas inteligentes além de gostosas invariavelmente tornavam-se sérios problemas, se não na área trabalhista, em alguma outra vara cível. Eu mesmo havia me tornado refém desse conflito, e o oficial de justiça era parte representante dele; A minha pendência judicial com a Doralice o obrigava a estar à minha caça –

Ah, Dora Doralice! Tudo não poderia ter sido infinitamente mais simples?
Ela fora a minha última empregada – Estava com 29 anos agora. Uma garota bonita, sensual, dona de ótimas pernas e um par de seios pra lá de protuberantes. Ela estivera comigo nos últimos 7 anos. No início, somente uma serviçal, depois se tornou mais que isso. Óbvio, na época, desconhecida e vinda de um lugarejo do interior e sem ninguém para lhe dar uma chance na cidade grande sujeitou-se a serviços menores.
E assim, às custas de alguma amizade com a empregada do Luis Alfredo, do 468, veio dar aqui em casa e evidente, desprezando o seu currículo inexistente fiquei a mercê daquele seu olhar de cão abandonado e da magia das sensacionais pernas amorenadas debaixo da diminuta saia vermelha, fiéis garantidores da sua contratação.
Nesse tempo que esteve comigo Dora enturmou-se, estudou e incentivada por mim completou o supletivo, fez cursinho e até tinha o sonho de ingressar na Faculdade de Jornalismo quando estourou a  nossa pendência.
Porém, essa proximidade criou-nos mais dificuldades que facilidades: Queria mandar em mim, em minha vida. Cercava-me por todos os cantos onde eu estivesse, querendo saber onde, com quem e por que estava. Dora não permitia meu celular manter-se calado. À princípio depois de tantos aborrecimentos eu o deixava no “vibra call” mas aquele frêmito constante irritava-me. Daí tentando resolver o impasse mudei para o modo “silencioso” Surtiu efeito, claro, mas também perdia ligações importantes. Porém, o que Dora não entendia ou fazia não entender era que a vida de um escritor devia ser exercitada nas ruas, no meio das pessoas, entre fatos e longe de quaisquer influências, internas ou não.
E em não entendendo deixou de dar certo.

Assim, sem saída e a nossa convivência tornada um calvário fui obrigado a despedi-la. Ela chorou, bateu portas, disse que o quanto aquilo era ridículo, porém, vencida, saiu de casa prometendo vingança. No dia seguinte alguém entitulando-se seu advogado ligou-me e perguntou como faríamos pra acertar as contas da sua cliente.
Depois de tudo acordado, no dia marcado lá estava eu no Sindicato das Empregadas Domésticas para quitar todos os seus direitos trabalhistas. Além das obrigações e demonstrando a minha boa vontade paguei-lhe alguns extras que não eram devidos, afinal, tanto tempo.
Contudo, aquilo não lhe pereceu suficiente - Na Vara de Família ela reivindica direitos como houvesse sido a minha legítima esposa – Seu pedido inicial é de uma pensão mensal de R$ 3.800,00 mais o Pálio 2006 e a posse definitiva da kitchnett de dois cômodos que comprei na praia do Gonzaga há menos de dois anos. O mesmo advogado ligou para mim dias depois da homologação e tentou um acordo nessas bases, prontamente recusados por mim. Portanto, não se fazia segredo o motivo da visita do oficial – Eu era um foragido da lei -
Os meus pensamentos planavam nessas questões quando fui acordado pela voz estridente de Matilda.

-Ah, seu Zambini! Ele disse mais coisas.

-O que, Matilda?

-Então, ele falou assim pra moça: Espera que hoje à noite o papai vai fazer um “gluglu gostoso” com você –

O que Matilda acabara de comunicar fulminava-me tal qual a bomba do B29. Parecia que a ogiva havia expluído em meu crânio ao invés de Hiroshima.

- FOI ISSO QUE ELE DISSE, MATILDA? EXATAMENTE ISSO?: O PAPAI VAI FAZER UM GLUGLU GOSTOSO COM VOCÊ? -

-Foi, seu Zambini. Foi exatamente isso que o homem disse. – Ela respondeu assustada.

-SUA VAGABUNDA! SUA FILHA DE UMA PUTA! - Acometido de rompante fúria eu berrei ao telefone:

Depois da ira o aparelho permaneceu mudo, constrangido, até que ouvi as lamúrias e choramingos de Matilda. Depois munida de certa coragem defendeu-se entre os discretos soluços:

-Seu Zambini, eu juro por tudo quanto é sagrado! Não era pra mim que ele falava essas coisas! Era pra moça do celular! Eu sou uma mulher honesta!

-AI MEU JESUS CRISTO! NÃO FOI PRA VOCÊ QUE EU DISSE ISSO, MATILADA! PARE DE CHORAR, PORRA! – Esbravejei irritado – Passados alguns instantes deixei de ouvir os seus soluços. Agora calmo continuei.

- Desculpe, Matilda! Eu não queria gritar com você. Agora me fala uma última coisa. Ele disse algo mais antes de desligar o telefone?

Novamente o silêncio do outro lado. Talvez Matilda estivesse receosa com mais um dos meus ataques de fúria. Assim que percebeu a mansidão do momento, articulou-se:

-Falou sim, seu Zambini. Ele continuou falando pra moça: Calmo amorzinho! Fica tranqüila que hoje eu pego o safado! E antes de desligar ficou dando beijinhos no celular e se despediu dela assim: Tchau minha vida! Te amo, Dorinha!

- Ta bom Matilda, tudo bem. Nessa semana não volto pra casa. Vou continuar viajando, mas te informo. Qualquer coisa ligue pro meu editor, o Marco Antonio. O telefone dele ta na agenda. Ta bom? Se precisar de algum dinheiro, ligue pra ele. Na agenda, letra “M” de Maria! Certo?

-Certo, seu Zambini! Marco Antonio, na letra “M” de Maria, de Matilda...Ta bom! Se precisar eu ligo.

-Tchau, Matilda!

-Tchau, seu Zambini! – Respondeu com a voz cantada dos sulistas enquanto assuava o nariz. Depois desligou.

A vida me era assim e eu estava cercado de raposas - Como a natureza feminina podia ser tão maquiavélica? - Evidente, aquilo não fora fruto de coincidência e sim de prévia manipulação; Doralice estava tendo um caso com o Oficial de Justiça. E tudo ficou muito claro, pois o “gluglu” era uma brincadeira de cunho sexual que existia entre nós. Aliás, fora ela quem criara aquela estória de “Gluglu”; pois era essa a forma que ela se referia quando queria ser fodida por trás – Doralice adorava dar o rabo – E outra: Me conhecendo sabia que não deixaria encontrar assim, tão fácil, daí a sua necessidade de ter o controle total da situação.
Logo, era necessário contra-atacar, mostrar que aquilo não me abalava.
Eu não poderia e nem deveria aceitar aquilo de forma passiva, fugindo às pressas desses malditos sanguessugas da lei , malditos auxiliares de xerife.
Ligando novamente o aparelho procurei na agenda.
Achado, teclei alguns números. No segundo toque atenderam.

-Alô! É da Advocacia Venâncio Paes? – Perguntei

-Sim, é ele mesmo! Doutor Venâncio a seu dispor! – Respondeu-me uma voz grave e profissional.

-Doutor, aqui é o Erico Zambini. Eu sou aquele escritor que lhe foi apresentado pelo Marco Antonio, da editora, lembra-se?

-Claro que me lembro senhor Zambini! E que noite aquela, heim? – Respondeu-me. Eu percebi a malícia em sua voz.

Ele se referia a uma festa acontecida há quase um ano na sede da Editora. Eu tinha tomado todas, até que uma dona de um belo rabo empinado, vestida numa deliciosa micro saia branca nos brindou com a cor da sua calcinha vista através da alvura do tecido. A imagem foi demais para um sujeito como eu. Embriagado eu só tinha olhos pra bunda daquela divindade. E assim que ela passou por mim naquela sua feição depravada agarrei-me furiosamente às suas nádegas.
A piranha assim que sentiu minhas mãos bolinando as suas carnes fez o maior escarcéu. Tentando se livrar, girou o corpo, fechou os punhos e socou-me furiosamente a cabeça. Conclusão; três sujeitos vieram ao seu auxílio até que conseguiram fazer-me desgrudar do tal vestido. Depois disso o Marco Antonio me levou para casa – Eu estava muito bêbado para dirigir -

-Pois é doutor! Foi uma confusão dos diabos, né! Mas, olha...Estou com um problemão danado. Não estou me defendendo de uma última ação proposta contra mim e agora me encontro em apuros – Cientifiquei tentando me desviar do incômodo daquele assunto.

-Apuros? Ok. Podemos marcar um horário - Respondeu voltando a sua tonalidade profissional.

-Claro, podemos sim, doutor! Em todo o caso, estou ansioso e com uma pequena dúvida.

-Dúvida? Elas se fazem matéria mãe e na qual vive e persiste o estado de direito. Vamos a ela, senhor Zambini! - Exclamou num tom catedrático, desses que sabem o que dizem. Eu gostava da impostação da sua voz; exalava confiança. Talvez tivéssemos grandes chances.

-É assim Doutor: É possível contestarmos essa ação e propormos uma contra uma ex-empregada doméstica que tive? O senhor acredita que é ela que está me acionando na Vara da Família? – Comuniquei demonstrando um ar de perplexa incredulidade.

-Empregada doméstica, Vara de Família, é? Meio inusitado, mas ... Depende da gravidade do caso. Eu mesmo desconheço casos julgados, mas.....

-Sim doutor, este caso é de uma gravidade extrema! – Afirmei convicto. Eu começava a me sentir desconfortável com aqueles seus “mas, mas”.

-Bem...se é tão extremado, vamos a ele. Que ação está pensando em propor contra a sua empregada doméstica, senhor Zambini? – Questionou-me.

Depois de um tenebroso silêncio me posicionei:

-TRÁFICO DE INFLUÊNCIA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA!! –

Eu andava bem a par daqueles termos já que os noticiários de TV não davam conta de tanta gente sacana e de gatunos que queriam levar vantagens às custas dos outros.

O telefone permaneceu impiedosamente mudo por uns bons instantes. Repentinamente ouvi algo que se iniciou como uma tênue risada e foi ganhando proporções até findar-se numa estrondosa gargalhada – O doutor Venâncio não conseguia parar de rir – Claro, aquilo me desanimou profundamente - O seu riso soou a escárnio e ainda retumbava em meus ouvidos quando decidi, unilateral, desligar o aparelho. – Talvez eu lhe parecera um imbecil – Talvez, também o Dr. Venâncio Paes não fosse tão bom quanto o meu editor alardeara –
Assim que coloquei o celular no bolso avistei uma padaria de esquina e fui tomar um cafézinho com leite. E pela primeira vez eu pensei num acordo enquanto remexia a nata que parecia dançar um tango de Gardel dentro do copo fumegante.
Será que Doralice aceitaria o meu Pálio 2006?
Será que ela insistiria na pensão de R$ 3.800,00 ?
Ah! A minha kitt do Gonzaga eu não daria nem a pau!
Abandonei o copo com quase todo o volume e me dirigi para o caixa.

-Moça, por favor, um cafezinho e um Hollywood vermelho!

-São quatro reais e cinqüenta centavos – Ela respondeu sem me olhar nos olhos enquanto abria a caixa registradora.

Dei uma nota de cinco pilas e aguardei o troco.
Assim que me deu a moeda a coloquei no bolso e saí. Lá fora um sol das duas da tarde abrasava a existência. Andei pela calçada no sentido da Rodoviária que ficava próxima dali. Passando por um terreno baldio notei que alguns garotos jogavam bola. Parei para vê-los. Entre eles havia um crioulinho, talvez um  pouco mais de 10 anos e ele era muito bom. “Gollllllllll” ele gritou após driblar 2 garotos brancos e enfiar a bola entre as pernas do goleiro. “Golllllllll” eu festejei pulando em comemoração. O negrinho olhou pra mim e achando divertido riu um riso gostoso, infantil, talvez de quem ainda não soubesse que a vida poderia estar guardando-lhe um lugar entre os deuses do futebol. Eu também sorri e fiz um sinal positivo para ele.

Dentro do ônibus, sentado ante uma das janelas eu via gente vendendo garrafinhas de água mineral, saquinhos de amendoins, guloseimas e eu pensava o que a falta de estrutura obrigava essa gente fazer para poder sobreviver. Todos  insistiam demasiadamente com os passageiros, puxando-os pelas camisas, pelos paletós,  pareciam compenetrados da gravidade da situação e da  necessidade de levarem algo para suas casas,  suas vidas, pras suas míseras existências.

Pensei novamente em Doralice e na Justiça – Talvez essa última fosse cega, caolha, ou quem sabe, exata como os testes de paternidade. Sei que haveria para nós um caso cheio de malandragens, de leros-leros, de excelentes atores. Haveria barganha por todos os lados, algumas possíveis e outras nem tanto.
Eu apenas eu iniciaria a luta, uma entre as milhões de guerras que a humanidade trava diariamente.

-Doralice! Aí vou eu! – Exclamei alto e para mim ante da surpresa de uma senhora obesa que acabara de sentar ao meu lado, na fila do corredor.

Diante da minha reação ela sorriu sem graça e eu nem tanto. Eu achava curioso o fato das pessoas se constrangerem por tão pouco, por quase nada. Ali, no guichê da companhia de ônibus resolvera modificar o meu destino. O ônibus deu a partida e uma fumaça de óleo diesel queimado adentrou a janela e me fazendo tossir.  Lentamente ele percorria as estreitas ruas da cidade até pegar a estrada e imprimir maior velocidade.
O sol penetrava através do vidro ofuscando-me a visão, então deslizei o grosso tecido da cortina e me vi livre do clarão daquele tórrido fim de tarde. Reclinei ao máximo o banco e com o corpo semi-deitado serrei os olhos na tentativa de dormir um pouco. Doze longas horas me separavam de casa e dos problemas.

Eu voltava para minha guerra, santa, pra minha cidade louca e para defender com unhas e dentes aquilo que me era de direito.

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