sábado, 2 de janeiro de 2010

Pequenos flagrantes do Véio China

O dragão de todas as sextas

Me pareceu estar tudo bem. A figura mediana de uma mulher bonita beirando aos cinqüenta, nem magra e nem revolta em carnes fazia emergir seus predicados. No rosto, os imperceptíveis vincos e a tez ainda roliça pouco pareciam dever ao frescor e a maciez de algum dia do passado. Nos olhos um sombreado azul como se pintado a guache e os longos cílios negros a rotulavam de numa aparência surpreendentemente  jovial como aquelas mulheres que nos confundem vez ou outra ao supormos estarmos na presença de irmãs, quando na verdade não são mais e nem mesnos que mãe e filha.

A voz, parecia roubada de uma garota de 25 anos. Os trejeitos do corpo, a onipotência das mãos, e fundamentalmente aquele seu jeito de sorrir e olhar fisgaram-me  por completo.

- Nossa, Adamastor. Na verdade eu o imaginava mais velho! – Ela disse-me com sorriso de primeiro encontro. – Mercedes começava dar prova da sua generosidade -

-Olha, se você não marcasse o encontro nesse local e não tivesse com a barba que disse que estaria, jamais o suporia Adamastor. – Eu achei engraçado à sua forma de me referenciar, mas, sorri agradecido – Mercedes, benevolente persistiu:

-Sério, Adamastor! Eu imaginei que estivesse esperando por uma dessas jovenzinhas de hoje! - Exclamou arregalando os olhos e sorrindo daquele jeito que começa a me incomodar –

Foi ali, naquele instante que pressenti que seus sorrisos atormentar-me-iam para o resto da vida.

Levantei-me, abracei-a com carinho e nos beijamo nos rostos como dois sujeitos temperados. Ao nos separmos o seu perfume invadia a atmosfera como majestosas borboletas – o seu cheiro dr impregnaria em mim pelo decorrer da noite e só me abandonaria ao voltar-me  para realidade do mundo, à vida de mim, dissipando-se ante a náusea  do cheiro da fumaça queimada vazada por debaixo e pelo escapamento do meu carro.

As horas jamais tardam e o tempo desandou em segundos, minutos e horas enquanto conversávamos; usuparmos as horas e falamos sobre um monte de coisas, porém,  quase nada de literatura.
Ponderamos pessoas, atitudes e impressões. Falamos sobre sentimentos da solidão. Discorremos sobre rompimentos, separações, desistências, algumas persistências.
Falamo ainda de ex-maridos, ex-esposas, de filhos, e permitimo-nos algumas pequenas nostalgias ao falarmos deles.   Falamos de outras coisas também. Falei de algumas fraquezas minhas apesar do momento não ser producente para confessar-me tal - E por último, para descontrair, falamos de exercícios corporais e do ar que se escasseia no pulmão dos fumantes como eu.
Bem....e falando, bebemos,  não muito; no primeiro encontro a companhia sempre se torna mais importante que a bebida.
E bebendo, discreto, o dragão das sextas brincou feito criança pelo meu canal esofágico. Eu sentia a queimação, o dragão e seu lança-chamas, descendo e subindo á de todo instante, principalmente depois da caipira de vódka que a misturei a algumas cervejas. Nesse momento a única lamentação foi não haver no local algum poderosos anti-ácido para aliviar o mal estar.

Todavia, eu era duro na queda e os diamantes não se quebram tão fáceis assim..
Continuamos. Sujeitos maduros que éramos, não demos grande ênfase às questões do sexo. Não houveram olhares libidinosos, nem lábios feridos por caninos incontroláveis -  A experiência te faz perceber que sexo é mais que ejaculação precoce e te aponta para as preliminares mais prazerosas que propriamente a insanidade do orgasmo -

E o fazer das horase o andar da carruagem  te faz  lembrar que há um caminho de volta para ser percorrido.
Nos colocamos à postos, suportamos com algum heroísmo o odor da fumaça queimada e Mercedes, delicadamente é deixada à porta dum bom edifício. Os beijos  de despedidas ainda permaneceram mornos e as  fervuras controladas.

O longo caminho é vencido rapidamente. Na rua apenas mendigos e ladrõezinhos baratos - E ao perfazer esse caminho  relembro da  juventude, dos caminhos trilhados até então, que me foram lançados num tempo aquém e além da minha imaginação.
Ao chegar em casa tiro as calças, as meias,  e de cueca deito-me na cama de solteiro que range num gemido conhecido. Olho para o teto, acendo um cigarro de filtro alvo e me sinto jovem  pois o que me envelhece é a matéria e não o espírito. E o jovem de mim  relembra alguns momentos da noite onde o olhar de Mercedes, mesmo não sabendo  fulminou.
Olha para cima e a luz acesa vaza os anéis de fumaças que sobem na direção do lustre. Ambos me parecem tão insensíveis que percebo a imprecisa lógica daquilo.
Então sorrio. Afinal, nem tudo poderia estar perdido.


Irmãos.


-Olha... Cuidado!
-Cuidado com o que?
 -Só estou te avisando. Cuidado!
-Por que, vai me matar? – Perguntou Ariel
-Não sei. Só mandei ter cuidado. – Afirmou Oscar

“Definitivamente, o álcool é a droga mais charlatã que a humanidade criou. Por ele as amizades se tornam amargas, os relacionamentos se falseiam  e os cordeiros laceram como lobos.”

Esses dois sujeitos discutiam acidamente num bar de esquina,  desses bem fuleiros. Totalmente embriagados, haviam ingerido  demasiado aguardente e as duas cervejas postadas à mesa eram o pretexto para a saideira. Discutiam  em falas arrastadas, gesticulam em demasia e os motivos se faziam enigmáticos. Só um outro e paciente alcoólatra poderia compreender alguma coisa  de suas mútuas acusações, afinal,  ofensas e brigas entre bêbados, só  mesmo os bêbados entendem.

-Seu filho da puta!  Você está  me ameaçando? Insistia Ariel
-Aí você que sabe. Só mandei ter cuidado – Devolvia Oscar
-Ah é? Então enfia esse tua ameaça no rabo da puta que te pariu! – Esbravejou Ariel.

Oscar se levantou da mesa rapidamente e agarrou sua garrafa  que estava pela metade e segurou com firmeza na parte delgada e num golpe certeiro transferiu o peso do casco à cabeça de Ariel. O baque foi seco, oco, surdo,  como se um grosso bastão de basebol acertasse o meio de uma moranga e a explodisse.

-Nunca mais! Ouça bem! Mas nunca mais mesmo me  diga que minha santa mãezinha é uma puta! – Oscar, bradava incontrolável  para o  sujeito estatelado  ao chão. Como se fosse um rio à procura do mar o veio escorreu rubro e denso por detrás da cabeça de Ariel

E Oscar continuava esbravejando e sacudia a sua garrafa ao ar, aliás, parte de sua garrafa, agora apenas restos de pontiagudos vidros.Evidente, Ariel jamais responderia, estava morto. Fora uma pancada  e tanto já que a garrafa se quebrou em sua cabeça e fez penetrar em seu  cérebro cacos enormes. Quem olhasse para ele agora teria a impressão que a cena mais se assemelhava às touradas, e aqueles cacos cravados no alto da cabeça nada mais que bandeirolas, dessas que se fincam no lombo do touro no decorrer da peleja.

-Levante seo covarde! Logo mais seu filho da puta a mãe vai saber do que você está xingando ela! – Ainda bramia o possesso Oscar diante o silêncio de Ariel –  

Eram mais de onze da noite e o volume de álcool ingerido por Oscar, não o permitia que desse conta da morbidez da  situação e só se lembrava das ofensas à sua mãe chutava o indivíduo inerte, nas costas, peito, cabeça, b oca e onde mais houvesse espaço para a sua ira. Talvez a quantidade de álcool tivesse  sido tanto que Oscar ainda não percebera que ao chão não estava  um sujeito desbocado e atrevido. Não, não era, quem estava ali era o irmão mais novo, Ariel. Feito e cansado de  tanto bater sentia o peito do pé dormente. Perplexos e estáticos o dono do bar e de mais dois clientes que bebiam ao balcão, o viram abandonar o local e seguir trôpego  pelo calçamento estreito da via.

As conseqüências não tardaram muito. Eram duas horas da madrugada quando a polícia colocou as mãos em Oscar; ele roncava  tranquilamente num quartinho dos fundos,da velha e pequena casa da mãe. A miséria denunciava o lugar e estampava as paredes que em grande parte não tinham reboco e  porcamente pintadas à cal.
Na rua as duas viaturas que davam suporte à captura  mantinham-se com as luzes girando intermitentes, dando a mais nítida da impressão que de hora para outra um show de pagode fosse  iniciar, e aquilo deixava desprotegidas outras ruas dos bairro onde assaltantes poderiam estar agindo livremente.
Dona Amélia, assustada, acordada pelos murros dos policiais em sua porta cedeu-lhe passagem e por eles mesmos soube da tragédia. As lágrimas da  sexagenária apenas rolavam, silenciosas. – Ela já temia pelo desfecho, e  em outras oportunidades o seu choro foi o único instrumento a dar um basta à violência daqueles Caim e Abel da contemporaneidade.

E para ela e a partir de agora seria muito difícil, principalmente num dia como aquele, domingo. Sim, seria muito difícil, pois para ela os domingos eram especiais,  ainda mais porque a sua maior alegria era de estar ao lado dos filhos, mesmo que vivessem às turras. Porém nos domingos não havia contenda, pois ela determinou que os domingos eras os dias da paz, de um quase amor. E mais, domingo era o dia dos seus  sorrisos resplandecendo ao preparo do macarrão que comeriam juntamente dum frango assado com farofa comprados na padaria da esquina, mesmo que ás custas da sua pequena aposentadoria

-Como? Eu matei meu irmão? Cês estão de brincadeira comigo? –  Um perplexo Oscar murmurou  ao ser algemado O sargento da PM nada respondeu e apenas empurrou a obesidade  para fora dos cômodos mofados.
Foi com lágrimas nos olhos que dona Amélia viu o filho ir embora trancafiado na “gaiola” do crime

Ah, domingo!   Foi o domingo mais triste na vida de dona Amélia. Ela lembra que o corpo de Ariel  no IML à espera de laudo enquanto Oscar a essa altura já devia estar  no presídio com outros  10 ou 15 bandidos por cela.
Para ela foi um dia sem macarronada, sem frango, sem parentes, sem mais lágrimas fadigadas. E ela apenas reunia forças para as  coisas que deveriam ser resolvidas: A Municipalidade arcaria com o custo do caixão? Do enterro? E a vala no cemitério público, haveria  espaço para o  filho?
Quanto à Oscar, claro, ela pensara nele, mas não queria chorar agora, e o visitaria sempre que possível.
E então o rosto se contorceu tão dilacerado que  se iluminou  ao  imaginar-se atravessando os perturbados corredores da Penitenciária do Estado.  Parecia-lhe um pesadelo visitar os filhos num mesmo domingo,  ambos mortos, porém, um deles ainda com vida.




Escadarias para o paraíso


É enigmático acordar sobressaltado ás quatro da manhã, ligar o system, colocar o CD na bandeja e descobrir que “Stairway To Heaven” ainda me fragiliza.
Desolador é ouvir e perceber que a melodia da canção insinua que algo te aborrece, que não se acomoda no lugar e nem na construção inconclusa que você se tornou.
Perturbadores são os riffs de Page, que sopram escarnecidos que a morte traça rotas enquanto as umidades nas paredes te olham assustadas.

Quanta de extravagância houve às quatro da manhã?
Quantas ilusões sonhei às quatro da manhã?
Quantos pedaços de mim foram perdidos e encontrados às quatro da manhã?

Muitas vezes destrocei-me em noites entorpecidas, embriaguei-me de nostalgias e devassidões que enodaram o que já era negro.
Será tão difícil extirpar-me do impuro e separar o melhor de mim?
Será tão intricado deixar-me de pactuar fraudulento?
“Ela está comprando uma escadaria para o paraíso”, no canto de muitas gerações poetisa Mr. Plant.

Talvez seja penoso aceitar que ainda possa haver escadas para mim.
Impreciso, já fui tragado o suficiente no quebranto das auroras e pela insensatez que me oculta no plausível a que me imponho.
Eu não mais quero fenecer ante o pranto gélido das quatro horas da manhã.

Pode me ajudar, Mr Plant?


Coisas de um velho paulistano

Dois bons e tranquilos velhinhos podem encher a cara numa cidade como essa?

Minhas referências em São Paulo não são la grande coisa e nem das melhores. Sempre enfiado em butecos de bêbados, onde maníacas damas escarlates retocam as carregadas maquiagens sempre que seus clientes se vão. Depois sorriem para as notas de vinte que repousam entre os seios murchos e flácidos.

E isso me faz sentir que não estou com nada. E para um sujeito sem criatividade só resta o delírio - Então tento ser o mais autêntico dos subway a duelar com o que restou da minha sanidade. Aí me vejo convidando alguém que não seja daqui para um piquenique nas dependências do metrô. Mas mesmo no devaneio, a minha parte que insiste em ser sã repreende-me escandalosamente: "Cara! esse lance é programa de troglodita" - E isso me fez pensar seriamente na questão - Relaxado do jeito que sou, e se me flagram assoprando farofa pelo vão do túnel? - E o pior - Atirando os ossos da galinha sob as rodas da composição só pra ouvir o "craft-craft"

Diante tanta estupidez resolvo abrir mão do pensamento - Talvez a insensibilidade da grande metrópole interfira no que me tenha, no que pense, que julgo, no que é belo, feio, bom ou mau -

Talvez o fato de nunca ser chicoteado pelas brisas das praias nordestinas - que só conheço por postais - ou mesmo, ser um ignorante e nem saber ao certo da imensidão azul de que falam - e que pelo jeito não me deixaria sentir falta das outras cores - é que me faz supor um cara de emoções ainda cruas. Talvez o excesso do nada me faça permanecer aqui e sentir-me tão insensível quanto o dia que me farta. Tornou-se hábito amanhecer e a carranca do céu paulistano mal me deixar recordar o belo e infantil azul que me acostumei. E sem ele surgem por todos os lados pessoas com feições austeras, olhares desconfiados.

Cadê a alegria nas pessoas e os polegares para o sentido "out" das coisas?

Infelizmente Sampa, só vejo este inevitável cinza-chumbo-chuva do dia-a-dia.

Mas te amo e  sou  fiel.
 

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