sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Transtorno compulsivo de um cinéfilo depravado

Há pouco mais de dois anos a vida não poderia ter  estado pior para aquele sujeito que sonhara se formar em Artes e ser um famoso diretor de cinema, sua paixão. Seus devaneios na época estavam voltados para uma carreira de sucesso e uma mansão paradisíaca numa praia do nordeste brasileiro. Porém o sonho terminou tão rápido quanto começou, findando-se na bancarrota do seu pai diante das mesas de carteado.
E foi assim,  na qualidade de falidos que através de um favor do amigo de seu pai  que ele se viu obrigado a abandonar o seu primeiro semestre de Faculdade e travar contato com aquilo que tornaria o seu ramo de fé; a metalurgia.
Portanto, passados mais de 30 anos, lá estava ele diante de nova e surpreendente sinuca - O bilhete azul - Desta vez a demissão chegara depois de15 longos anos na linha de produção de uma montadora de veículos.
E as coisas ainda ficariam piores para o filho único de uma família que não mais existia,  um ex-garoto de  48 e que ainda tinha pela frente  10 misericordiosos anos até à aposentadoria. Claro, profissional e  realista ele não vislumbrava um futuro de calmarias e nem horizontes bem delineados.

Ele se recorda que após o aviso perambulou feito louco à caça de um novo emprego. Insistiu por diversas multinacionais, mas a recessão demitira a ele e outros tantos milhares de metalúrgicos.
E foi naquela circunstância, na solidão da sua vida, nas durezas do dia-a-dia que ele se viu enredado por um crescente processo de síndromes e esquisitices; Repentinamente o coração disparava e as pernas e os braços davam sinais de uma dormência estranha. Pior ainda se tais sintomas se manifestassem em ambientes fechados ou de  farta aglomeração; Era transtorno total.
Porém nem tudo parecia perdido. Por sorte e por conta da garantia adicional de 24 meses em seu plano de saúde marcou uma consulta com um neurologista que lhe quis descer goela abaixo poderosos comprimidos para euforia, pânico, além da costumeira insônia – Também pudera! Ele falara seguido por mais de 60 minutos até a impaciência do médico se tornar  perceptível. 
Abreviado pelo médico, ao término da consulta o doutor lhe entregara um cartão de visita,  além do receituário com  as indicações dos tarjas negras.

-Rapaz, acredite! Seus problemas serão resolvidos por esse homem! - Disse-lhe num entusiasmo, empurrando-o para fora da sala.

Ele pegou o cartão e passou os olhos por umas letras que pareciam desenhadas a mão. Estava impresso com letras e motivos góticos:
Aristides Prado Junqueira – Psicanalista -

Evidente, um neuro enviando-o a um psicanalista,  só poderia ser uma questão do lucro corporativo – Pensou com seus botões enquanto se dirigia para a porta de saída do conjunto.
De lá acenou um adeus para o doutor que recebia e fazia entrar no consultório a primeira cliente de uma sala abarrota de indivíduos com algum tipo de problema.

-Óh, que prazer em revê-la dona  Eufrásia! O que a traz aqui? – Perguntava-lhe alegremente, acariciando suavemente as costas daquela senhora dos seus 70 anos.
"Caracas!" Ele era obrigado a admitir; Aquele homem sabia como sorrir profissionalmente.

Antes de o médico fechar porta da sala, a educação o fez o retribuir o aceno – Ambos pareciam felizes por terem se livrado do outro. Ele mais ainda; Economizara as 250 pratas da consulta - Dinheiro jogado fora caso tivesse que pagar – Concluiu satisfeito –
Descendo pelo elevador procurou a primeira lixeira junto ao saguão  e se desfez da receita e do cartão do ”fabuloso” terapeuta - Preferia gastar o que restara com as putas - Pelo menos com elas não necessitaria dos comprimidos para reconhecer que estava se tornando um sujeito problemático-

Todavia o passar dos meses só fez a angústia progredir impiedosa
Ele sentia-se atormentado, infeliz, até que um dia resolveu fazer o diagnóstico, ser seu próprio analista, sacramentando assim o que o corroia; A existência.
Melhor assim. Melhor que fosse ele a se diagnosticar. Ele sabia que jamais admitiria que um humano detectasse seus problemas, imputando as responsabilidades a qualquer desgosto que tenha tido quando criança ou ao tabefe que lhe fora desferido pelo  pai no dia que completou 21 anos - Não, isso não. Jamais lhe convenceriam dessas baboseiras -

E o tempo persistia  escorrendo em desespero, jogando contra suas possibilidades.
A imutabilidade das situações o recortava em triângulos isósceles, desbravando o desanimo derrotista que aflorava em si. Perplexo, isso o arrasou; ele jamais se imaginara tão frágil.
Repentinamente esse amontoado de discrepâncias o tornou num ser insatisfeito e ele passou dar por falta de praticamente tudo; lamentava-se por não ter comprado uma casa, por não haver horta e nem uma churrasqueira de tijolinhos aparentes. Sentia falta dessas e de outras coisas mais exatas como as amizades, principalmente de algo que jamais lhe fora familiar; uma boa mulher. Ah! Como ele gostaria de estar com uma dessas.
Uma que fosse meiga, feminina, fala doce, porém voluptuosa o suficiente para esperá-lo debaixo dos cobertores numa diminuta calcinha de rendas vermelhas. Ah, sim! Sem esquecer que também deveria hipnotizá-lo tal qual uma naja e depois sussurrar-lhe obscenidades nos ouvidos.

Claro, essas necessidades o fizeram questionar-se – “Cara, mas, você precisa disso? As putas não suprem? Sim, de certa forma” - Assentia –
Mas, a sensação a respeito delas não era exatamente a do enfastio, afinal, algumas visitavam esporadicamente as dobras dos seus lençóis. Além do mais tinha por hábito tratá-las com respeito, com consideração. Eram apenas putas – Concluía – Porém o problema não era exatamente esse, e sim um sentimento de insatisfação a cada ejaculada, ao esforço despendido. Sentia-se lesado. Tudo se revestia de fosco, negro e oco como na última trepada onde Simone sorrira insanamente ao deslizar as 70 pratas do michê por entre os volumosos seios com formato de pêra,  após terem gozado. Numa outra ocasião, ainda com ela, não pintou o tesão que  imaginou estar. Então, deitaram de barriga para cima ficaram olhando para um ponto perdido no teto, Mas, tudo parecia tão irreal, falso, até que num sobressalto ela virou-se abruptadamente e o agarrou deslizando a língua encharcada pela extensão do seu rosto, melecando-o com uma saliva quente e pegajosa.

Depois  levantou-se e começou a se aprontar.

- Mon amour, precisando, é só me dar um alô no celular! Au revoir, meu bem! – Despediu-se ao apertar o último botão de pressão da sua blusa com motivos florais. Ele riu, achou engraçado aquele francês primário e o sorriso funcional e de dentes encavalados.

Às vezes uma ou outra abandonava às presas o seu leito, capengava, arrastava a carcaça varando a sala e dando o fora, impregnando o ar com o odor nauseante de um perfume falsificado.
- Claro! Outros clientes aguardavam. Mais que nunca, naquele ramo tempo era dinheiro – Concordava.

Em outras oportunidades, sozinho em sua minúscula kit net de 1º andar  de um prédio simples e de três pavimentos na Rua Augusta, algo tilintava dentro dele,  e curioso ele se dirigia à janela  para ver o movimento da rua.
Aí as via. As cenas multiplicavam-se diante dos seus olhos e ele as flagrava atuando num mundo de devassidões,  das drogas ilícitas e  dos desejos movidos por  interesses. Doía ver-lhes seus  braços ajustando ao corpo as saias de um palmo, as suas coxas sufocadas por meais surradas,  presas  à cintas-ligas, as vezes  maiores ou menores que deveriam ser. Então o  ocaso se dava e a noite chegava confiante, e elas se multiplacavam vindas de todas as direções, 20, 30, 50, 80 e se aglomeravam diante da perplexidade insana de um desfile  de pernas e bundas, expostas  quase cruas como se fossem  peças de carnes em prateleiras de supermercados. Deprimente ver-lhes as feições  depravadas, cansadas,  seus seios pequenos, médios, grandes,  de todos os credos,  saltando de decotes escancarados ante a  humilhação cintilante dos sorrisos que exalavam mentiras sob os postes de fosforescente luz néon.
E escurecendo ainda mais, as lãmpadas coloridas ganhavam vida e impregnavam os beirais, as marquises,  piscavam frenetivcamente  em luminosos à frente dos olhos tingidos de cores fortes, pobres orfãs relegadas ao esquecimento, um esquecimento doloroso àqueles que habitam o rude concreto do  asfalto paulistano.
E isso sem contar a desleal concorrência, a disputa  quase animalesca por clientes que lentamente transitam  seus veículos há pouco mais  de três dedos da calçada. Quanta vez as viu se engalfinhar por eles? Incontáveis vezes.
Não, não era isso que ele precisava, não era isso o que ele queria nem pra si e nem para elas.
 Porém, pra si ainda havia alguma esperança, para elas,   nem tanto.

E a sua redenção poderia vir pelo amor sincero da mulher. Ele fechava os olhos e até podia sentir o sabor daqueles lábios imaginários. Não se importaria com a cor dos cabelos e nem a grossura das suas pernas desde que ela estivesse ali, sentada à mesa e ao seu lado na hora do jantar.
E encontrada, a levaria nas sessões das 10 de sábados, assistiriam compenetrados as interpretações dos monstros sagrados, depois rumariam à pizzaria – “Amigo, por favor, meia aliche, meio mussarela” – pediria - E daí em diante tudo ficaria por conta do acaso ante a discrição de um garçom tarimbado, desses que sabem o momento certo de bater em retirada sem constranger os clientes. E assim, saciados e ruborizados por uma ou talvez duas garrafas de vinho tinto talvez falassem baixinho e se olhassem com cumplicidade. Então pagaria a conta e voltariam para casa, mãos dadas, olhares exalando desejos. E na cama ririam antes de fazerem amor, falariam sobre o filme, as atuações, da qualidade da pizza e até sobre a camaradagem do garçom. Depois disso somente a luz do abajur permaneceria acesa. Então a possuiria com paixão, diferente do que ocorria com Simone, Gisele, Bruna, e sabe-se lá com quantas mais.

Era disso que ele precisava. Nada mais que isso.
O que lhes deixaram  foi apenas uma imensa cratera existencial e uma dezena de prostitutas decadentes, além dos 80 livros dormitando numa  prateleira empoeirada e uma montanha de 400 DVDs de filmes favoritos. E isso lhe parecia muito pouco.
A vida se assemelhava a uma armadilha, um engano, onde as traiçoeiras garras dos mentirosos estavam sempre em alertas para alcançarem a jugular. Lennon mentiu quando disse que não havia nada pelo que matar ou morrer.
Bukowski iludiu com suas linhas forradas de utopias, justo ele, o mais venerado dos seus ídolos, velho solitário igual a si, encontrado morto na companhia de uma buceta de 23 anos que se agarrara mais à sua fama que propriamente às suas pelancas – Claro, uma puta mais refinada talvez, porém, puta -

E todas essas e outras decepções o faziam divagar - Quais reais motivos do desinteresse das mulheres? Talvez fosse a sua aparência rude, seu estado físico precário e aquém ao de um atleta. Talvez os traços que não havia e que os deixavam distante dos cinqüentões grisalhos de Hollywood.
Ele simplesmente não sabia identificar todos esses fatores. Sabia sim que deveria reconsiderar grande parte das suas atitudes, tomar cuidado com a aspereza das suas palavras, sua truculência, seu jeito malandro de ser, mesmo sabendo não ser um.
Precisava acreditar de uma vez por todas que poderia haver em si qualidades que empolgassem uma mulher, principalmente a essas a quem nada se paga,  e que nada exige.



Passados quase dois anos e meio da demissão ele se livrou de parte das síndromes e se encontra empregado há quase doze meses. Evidente, teve que abrir mão do mercado metalúrgico e se contentar com um serviço de vigia noturno num condomínio de luxo. Todavia não perde as esperanças e está sempre de olhos nos classificados dos jornais à procura de voltar ao seu ramo apesar do salário atual não ser dos piores. Também é importante esclarecer que no decorrer desse tempo ele conheceu uma mulher de verdade e pela qual se apaixonou visceralmente. Infelizmente não deu certo. Eunice o abandonou e hoje ele sofre de uma dor que parece não ter fim. Em todo caso o assunto é recente e o incomoda sensivelmente.
À custa disso os seus traços e modos ainda permanecem obscuros e incógnitos para a grande maioria.
No trabalho tem se mostrado responsável, porém arredio a qualquer aproximação dos colegas.

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“Uni duni te. Salamé mingúe”.

– Papai necessita desesperadamente ser amado –

Papai já tentou e não conseguiu, fracassou – Papai gostaria de continuar pensando como aos 17 anos, quando supunha que todas as mulheres se apaixonariam por ele, eternamente.
Papai sente-se perdido, sem saída, tocado por labaredas de um dragão imenso e insensível que persistente chamusca as suas esperanças.
Então papai pensa em rodar por aí, sem destino, com seu Uno Mille 91 em péssimo estado e comer muita poeira de estrada.
Papai às vezes necessita embriagar-se de todas as bebidas antes que seu fígado desintegre. Sugestionável, papai tem se tornado neurótico, colocando na cabeça que é têm que morrer bêbado – Papai elegeu um filme como o mais significativo de sua vida. A película fala sobre um cara que diante da desilusão extrema botou o pé na estrada e bebeu até morrer. Papai sempre acha romântico e nostálgico aquele lance do sujeito partir pra outra com o fígado em frangalhos diante da exuberância física e apaixonada de uma agente da KGB soviética. – “Ah, pelo amor de Deus! Pelo menos ele morreu feliz!” – Papai procura convencer-se ao relembrar a cena de” Despedida em Las Vegas”

- Se Nicolas Cage pôde, eu também posso!

Porém, quando isento de álcool e liberto dessas neuras ele entende o que faz a si. Compreende perfeitamente que é ele é o ator da sua vida, o diretor do seu próprio enredo. Nessas horas de lucidez ele percebe que sua existência sempre foi um filme, uma mistura de ficção à mesquinhez da realidade.
E são nesses momentos que ele tenta reaver as partes roubadas de si. Ele mesmo lesou-se mais que o suficiente por acreditar cegamente nas estórias escritas ou interpretadas por seus ídolos.
Hoje ele sabe que Bukowski, Scorsese, Newman, Rossellini, De Niro, Fante, Cage, Hoffman, Bergman, Pacino, Celine e outros dos bons jamais poderiam ter sido seus heróis como foram. Hoje ele compreende perfeitamente que eles nada mais são que fantásticos escritores, atores, diretores, porém nada mais que isso.
E isso faz papai revoltar-se, principalmente quando está de caco cheio:

E mais; Tem ocasiões que papai procura esquecer-se, apesar de saber que mil mentiras nunca terão o peso de uma única verdade.
E ele tenta desesperadamente não mentir. Não mais para si, ao menos, mas nem sempre consegue.

Então papai sorri. Não é um sorriso alegre, é triste. E isso o faz supor que talvez haja a necessidade de um terapeuta - “Pena ter me livrado daquele analista” Lamenta-se engolindo um comprimido branco com potentes 100mgs de atenolol para a sua pressão arterial.
A pílula desce a seco – Ele não gosta de misturar água; acha que perde a eficácia - Então tenta achar graça em si mesmo e rebola jocosamente ao abrir a porta da sua pequena Electrolux. Papai assobia a música favorita de Eunice, que acabou por se tornar a sua - “Eu te darei o céu” de Roberto Carlos, dos anos 60.
-Merda! Como fui me esquecer do suco de tomate? – Vocifera ao inspecionar as grades da geladeira para depois, permanecido algum tempo nela, fechá-la bruscamente com a flexão de um dos joelhos.

Em todo o caso seria querer demais que ela escapasse  imune ao  assalto; Papai jamais sairia de mãos abanando diante da frialdade do eletro doméstico. Um sorriso de vitória foi dirigido para ambos os braços onde mãos seguras sustentavam os louros da vitória; Dois pequenos  limões-galegos e uma intocada garrafa de vodka Smirnoff, todos escandalosamente gelados.

Contudo a falsa alegria é só uma questão de tempo e papai sabe disso.
Sabe que depois duns 50 minutos e três copos duplos de caipirinha ele chamara por Eunice. A princípio é um clamor calmo, reconfortado.
Porém a bebida o devastara de efeitos e ele a buscará com mais veemência. E não haverá respostas. Então papai gritará sinsana e sucessivamente por Eunice e depois se lamentará num choro convulsivo. E o pico da embriaguez se fará o momento ideal para papai pretender morrer à Nicolas Cage. Como sabem, papai quando bêbado só acredita nas verdades das telas de cinema.
É um processo lento, de quase duas horas entre o iniciar, terminar e ele despencar embriagado e roncar no chão, junto à janela da sala.

Porém, antes disso,  o casalzinho da porta ao lado se sentirá incomodado com a loucura dos  gritos “Se ele pode,  eu também posso! Estão me ouvindo?“ Mas nem registrarão queixas; já que estão desanimados com indiferença da falta de providências do senhor síndico.

  “Um sorvete colore. Sonho encantado onde está você?"

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