sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ÀLCOOLFAGIA

Tento sonhar com um tempo presente dissipado das quimeras que sempre infernizam minha vida

As pálpebras pesam e eu reviro no leito e o sono tarda, porém vêm sem que eu precise contar carneirinhos.

Na madrugada, aos sobressaltos acordo. Acendo o abajur enquanto meus olhos estalados rondam pelas paredes e mobílias. Nada de anormal; não há monstros de antenas azuis impregnados no meu teto e nem por detrás das persianas de alumínio. Procuro por Dandara, a quem me acostumei chamar de "Dand".
Dand é a minha ursa de pelúcia; Minha velha e cinqüentenária companheira que jamais soube dos prazeres da vida. Claro, e continuará virgem apesar da companhia.

Agora, literalmente desperto percebo que nada mudou; Os meus sonhos continuam como sempre foram; insólitos. Sonhei com o passado e me vi de pernas entrelaçadas nele. Não gostei de suas pernas frias e compridas, aliás, maiores que as minhas.
O futuro também não escapou ileso; Ele pareceu-me uma linda garota de seios avantajados e mamilos protuberantes; Apertei-os no bojo, afinal, eles sempre nos causam dúvidas e espanto; Os seios do futuro eram reais, não havia neles qualquer material ou prótese siliconada.
Talvez incluindo uma ou outra coisa que devo ter me esquecido, em regra foi o que sonhei. Com se evidencia, ainda continuo sonhando com loucas fantasias. E por ter essa certeza é percebo o quanto sou contraditório; Seria o sonho algo mais que uma pujante fantasia?

Perdido neste conceito levanto-me e coloco o meu roupão branco feito de um tecido grosso, felpado, e noto que os seus dois números maiores ao que deveria ser me deixam com a fisionomia de um desses ex- campeões mundiais de boxe. Algumas vezes chego a imaginar que sou um, então fecho a porta do quarto e fico me exercitando em frente ao imenso espelho que instalei na folha interna da porta. Com feição severa faço jogo de pernas, solto jabs, e outras firulas até remeter meus potentes cruzados de ponta de queixo. Atingido, invariavelmente meu oponente ilusório beija o carpete. Fim de corrida para ele, faço uso do meu braço esquerdo para me erguer o direito, declarando-me vencedor do combate. O que também não se constitui surpresa; No meu roupão, do lado esquerdo, no alto, há um imenso bordado com linha grená - We are the Champions - lê-se claramente. Exercito as pernas, saltito, enquanto de mim só cumpro a sina de não perder para lutadores imaginários.


Ainda ruminando o sonho atravesso a sala igual a um zumbi. Na penumbra, desajeitado vou colidindo com os objetos que cruzam a minha frente. É habitual quebrar enfeites da mesinha, vasos decorativos, inclusive houve uma vez que ao perder o equilíbrio destruí um quadro pintado a óleo que estava preso à parede. Sim, eu consegui a façanha!
Poderia acender as luzes ao atravessar a sala, porém um estranho pressentimento nunca me permite acende-las ao cruzar o cômodo. Eu sempre questionei que pressentimento seria esse, contudo, como isso poderia me levar à viagens piores, evito.

Saindo da sala encontro a porta que eu precisava. É a porta do banheiro; sempre a deixo fechada, pois minimiza os cheiros indesejáveis que alcançam os cantos da casa. Acendo a luz, olho-me no espelho do armarinho e não me assusto. Evidente, eu teria todos os motivos para me assustar; Os quase 60 anos parecem ter envelhecidos e estacionado nos 80. Rugas adornam os sulcos do rosto. Ao lado dos olhos ranhuras diversas fazem-me recordar que já tive bonitos olhos castanhos. Com um certo desponto desisto do espelho, abro a tampa da latrina e urino. Poderia vomitar também, mas, não agora; não me parece uma boa hora pra se vomitar. Olho pela janelinha ao lado do box do banheiro e na rua despontam os faróis de um ou outro carro que transitam nesta hora. Repentinamente um deles para bruscamente onde uma garota morena com cabelos tingidos de loiro se exibe numa escandalosa micro saia.Ela se dependura na porta do passageiro. Percebo que ela gesticula bastante os seus braços. Logo após parece que o preço do michê foi acertado pois ela entra no carro e eles partem

.Ainda penso na garota enquanto lavo e enxugo o rosto. Inspeciono-me e sorrio; a aparência não me melhorou. Desligo a luz, saio do banheiro e dirijo-me à cozinha. Lá abro o armário da dispensa e pego uma caixinha de remédio: Revia® é o nome.

Trata-se de um medicamento cujo componente é o naltrexona, e é indicado para o tratamento de alcoolismo. Faz um bom tempo que o tomo, mas até o momento não surtiu o efeito desejado já que persisto na indômita vontade de beber.
Com o comprimido à mão vou até à geladeira e pego a garrafa de água mineral gasificada; Como tantos outros velhos tenho minhas manias, talvez frescuras, não sei ao certo. Derramo o líquido num copo e o engulo a drágea, fazendo a minha parte do acordo.

Saio da cozinha, apago a luz e volto pela sala onde o meu joelho derruba um novo enfeite comprado a menos de uma semana. Por sorte ele resiste ao meu poder de destruição. Ao entrar no quarto acendo a luz e noto que um lado da box casal está vazia e isso me leva a divagar que poderia ter alguém ali deitada ao meu lado. Meã culpa! Redimo-me; eu não quis ou não fiz a menor questão que houvesse uma mulher que recebesse o seu extrato bancário no mesmo endereço meu. Além já se faz muito tarde para levar isso em consideração  já que devo estar no fim do meu prazo de validade.
Ainda imaginando que nesta noite eu gostaria de ter alguém debaixo do edredom, deito-me,  cubro-me e tento dormir. Talvez dessa vez me seja necessário contar carneirinhos.

O amanha  é hoje e ele virá. Virá presente com muito sol,  chuva, calor ou frio, nunca sabemos. Além do mais será um dia 5, dia de aluguel, de despesa de condomínio e da mensalidade do carro no estacionamento da esquina.
Talvez essa seja uma daquelas noites de expectativas para alguns; A do síndico (dono do meu apartamento) torcendo para que eu resista a mais essa noite, e a minha,  em não querer entregar a rapadura tão fácil assim. Afinal, já não fui um campeão mundial?

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