quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Charlie & Nancy

Era apenas um velho. Um velho e decadente escritor de dois publicados e desconhecidos livros que se fazia acompanhar de sua amiga de bar.
Bebiam.  Ela bem mais que ele, afinal, ele já não agüentava beber como outrora.
E sobre isso, ultimamente ele se sentia entregando os pontos e sem encontrar  forças que o fizesse reagir, mesmo querendo. Quantas vezes  se questionara o por que de estar acontecendo isso? E o fato o perturbava. Não via sentido em consumir cada vez uma menor quantidade de álcool e a reação  vir tão fulminante, tornando sua fala confusa, e seus  olhos sempre desanexados do ponto de onde deveriam estar. E mesmo em estado de embriaguês  as pernas estremeciam sem qualquer controle como se estivessem desnudas numa estação polar.E o fato o aborrecia já que a bebida se tornara o único parâmetro do seu  discernimento ante a vida.
Para ele essas reações eram o indicativo de que as coisas não andavam bem e o que o final se aproximava de forma lenta e cruel.
Ali sentados numa mesa de bar ela percebia o que o lacerava apesar de não compreendê-lo por inteiro. Se dava conta que a auto-reclusão a que ele se impusera era a sua reação diante a desilusão que se instalara, a fuga de si e das suas deprimentes verdades. Nancy acreditava piamente no que a percepção de mulher lhe dizia;  as amarguras de Charlie não foram abortadas a tempo de lhes trazerem opções menos dolorosas. Contudo ela adorava estar na sua companhia e poder fitar aqueles olhos reluzentes e alcoolizados e a sua barba desgrenhada de fios negros e brancos.

Naquela noite ela percebia uma melancolia e laconismo além do habitual, até que num certo momento ele desatou:

-Nancy, queria te fazer um poema. Posso?

-Claro, Charlie! Adoro tudo que você escreve.

Foi o sinal pra Charlie se aprumar na cadeira, ajeitar o tronco no esgarçado blazer de lã cinza com rótulos de um couro negro nos cotovelos. Feito, buscou em sua mochila  a caneta e a inseparável agenda de trezentas folhas que o acompanhava havia anos.
Passados não mais de quinze minutos pigarreou, firmou as vistas no papel e as primeiras palavras lhes abandonaram a boca:
 
"Ai de mim, Nancy
Sem estes teus modos de borboleta
Dentro do sensual vestido vermelho
Que me veda nacos destas coxas macias
Bronzeadas em praias de ondas perfeitas

Ai de mim, Nancy
Se furtassem a tua companhia
Se com concreto vedassem meus ouvidos
E não mais me houvesse o tilintar dos copos
E nem o vento brando a celebrar nossa amizade

Ai de mim se não mais pudesse ver teu meigo sorriso
Refletido nestas doses de um uísque mentiroso
Destilado falso, criminoso, mas que finjo não percebo
Se não me fosse meu repúdio ante outras farsas vis
Que me envergam mas não destroem
Como a um escorpião sucumbido de morte ante a chama

O que seria de mim? "

Nancy ouviu atentamente a embriagada e  rouca leitura do poema. Os olhos marejaram e ela fez o possível para que as gotas não caíssem; não queria que ele percebesse. Tentou sorrir, não  conseguiu; Ela sabia que não havia valor inestimável no que Charlie escrevia, mas,  amava sobremaneira a honestidade na qual ele se expunha. Admirava-lhe a coragem de  desabrochar-se como uma flor que jamais mente. Todavia, logo após, Charlie retornou ao imutável laconismo, olhos cravados no rótulo da cerveja; Estava sendo impossível evitar que a amargura não o fizesse prisioneiro mais dessa vez. Uma amargura nostálgica, soturna, carregada de melancolias.  Nancy repassava em flashes muitas das cenas do seu relacionamento com Charlie. Relembrou que cinco anos haviam se passado desde que  se conheceram. E nesses cinco anos,  às sextas feiras  se tornaram sagradas para ela. Nestes dias não havia compromissos, nem mesmos os necessários à advogada de sucesso que se tornara. Nada, absolutamente nada a afastava de Charlie e nem dos instantes que permaneciam juntos.

Ela continuava a fitar aquele estado lôbrego quando pressentiu uma sensação ruim. E ela não viera só, mas sim  acompanhado de um nó no peito, de algo que parecia dizer que alguma coisa se encontrava fora de lugar. E foi navegando nestes sentimentos que, inesperadamente  Charlie levou a mão direita ao centro do peito numa expressão de horror, de dor. Repentinamente sua cabeça desabou pesadamente indo se amparar no início do tórax. Assustada ela agitava com força o ombro do amigo.

-Charlie, Charlie! –  Não obteve resposta - Charlie, Charlie! – Insistiu num tom elevado e que chamou a atenção das pesoas próxima à sua mesa.

Incontinente alguns clientes se levantaram e foram ter com eles enquanto Nancy levava seus dedos para o pulso de Charlie à procura de sentir os latejamentos de sua artéria.- Nada -  A toque dos seus  dedos não detectaram qualquer pulsação. Em pânico procurou em sua bolsa  o espelhinho de maquiagem e o colocou diante a boca  e as narinas de Charlie  na esperança de ver algum embaçamento no vidro. – Outra vez sem  qualquer efeito - Charlie apenas permaneceu ali com o rosto cravado no peito como se estivesse em profunda penitência. Era  a parada obrigatória, o ponto final de Charlie.

Charlie nunca mais beberia com ela e nem haveria outras quaisquer sextas feiras. Charlie simplesmente se submetera á vida deixando o seu ali,  presente, até sentir-se  ternamente beijado em seu semblante num choro contido e sem lamentos. Naquele momento Nancy tinha por companhia a dor e o imensurável vazio que de tudo se apoderou. 

E aquilo lhe doía, doía como dói a saudade, como a dor que nos impõem como se decreto fosse.

E com Charlie aninhado por entre seus braços ele tomou consciência que naquele canto não mais haveria poesias e nem as tristezas do amigo.
Enfim, a partida dele deixara algo vago e incluso dentro de si: por que ela o queria tanto a.ssim? Que afeição era essa?

-Vá com Deus, Charlie! Ela sussurrou ao seu ouvido para depois revirar novamente a bolsa à procura do seu celular. Haviam providências a serem tomadas.

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