domingo, 28 de novembro de 2010

E por falar em poesia......

Ele saíra de um desses prédios comerciais onde fora entregar para a firma  alguns contratos importantes e que deveriam ser vistados pela outra parte. Já  na rua, sentou-se numa das mesas dum barzinho da moda e em plena Av. Juscelino Kubitschek. Olhou para o relógio; quase 18 horas dum estúpido horário de verão. Olhou também para o cardápio e deu por falta do rol de bebidas. Estalou os dedos e chamou o garçom que voltava de uma mesa próxima:

-Meu rapaz, você pode me servir uma dose da Sputnik.

- Espu... o quê senhor? - O garçom arregala os olhos

-Sputnik! - Paciencioso esclarece e depois complementa - Sputnik é uma vodka, nacional, muito boa por sinal!

-Ah, é uma pena, mas,  não temos, senhor! – Ele confirma e depois sugestiona - Senhor, o que temos é uma polonesa,  ótima, aWiborowa, ou, se preferir a Stolichnaya, russa. Maravilhosas, ambas!

-Humm... e quanto sai a dose? - O senhor pergunta-lhe com um olhar cravado no desinteressante cardápio. Talvez o incitador dessa  apatia foi o preço do primeiro sanduíche que pousou os olhos  - X Burguer à moda do Rei - 28 reais.

- Bem...A polonesa, 42 reais. A russa, 46,  a dose, senhor! - Ele respondeu num sorriso encabulado - Claro, a essa altura o garçom devia ter percebido os trajes do sujeito que,  aliado à deplorável aparência de sua barba de  mais de três dias faziam-no um peixe fora da água e  bem distante das praias que costumava frequentar. Em todo o caso, o forasteiro se surpreende com os valores.

-Nossa! Tudo isso? -  Assusta-se

-Bem senhor.... em promoção temos a tônica da Antártica. Dois reais e cinqüenta! Sabe como é, né? Esses jovens não querem saber de água tônica. Pra falar a verdade acredito que nem saibam que gosto tenha – Completa com ares de  propriedade naquilo que fala.

O cliente o olha de cima àbaixo. Ele tal qual o garçom  também viera de baixo, ele podia perceber. E vindo de baixo  tinha a certeza de quanto é duro subir nessa selva de vidraças e concretos. Contudo, simpatizou-se pelo rapaz.

-Seu nome? - Ele pergunta.

-Genivaldo, senhor! - Devolve-lhe o garçom  dirigindo-lhe a mão em cumprimento.

-Prazer! Gonçalves –   Retribui.

Então ele pede ao rapaz  duas garrafinhas de 290 ml  daquele refrigerante; era necessáio se refrescar do calor que rachara mamona naquele tarde embolorado.
Talvez Genivaldo fosse um sábio ou uma criatura bondosa como Madre Teresa de Calcutá, afinal poderia ter-lhe  indicado o boteco mais próximo e que fugisse daquele corredor de ostentação. Portanto, com a sua simpatia induziu-o às duas garrafetas, pressentindo talvez que o sujeito estivesse propício á embebedar-se  caso encontrasse preços compatíveis com o poder aquisitivo do su bolso pelos bares da redondeza.

Colocadas em cima da mesa, o velho despejou o conteúdo num  copo alto e sorveu o líquido em fortes talagadas,  estalando a língua no céu da boca assim que o copo se esvaizou.  Genivaldo sorriu.
Atrás do forasteiro, numa mesa,  dois garotos e uma garota riam alto. Ele olhou para  eles e percebeu que eram bem bonitos e que vestiam roupas caras, de grife, e provavelmente estivessem ali às custas de seus carros do ano e contas de poupanças mantidas pelos pais. Continuou bebendo seu refrigerante enquanto os observava pelos cantos dos olhos. Eles continuavam rindo, rindo muito,  sabe-se la de quê. Repentinamente os risos foram cessando quando um deles consultou um laptop colocado à sua frente. Achado o que procurava, o silêncio. Ele pigarreia duas vezes, enquadra os ombros numa postura ereta  e solta a voz na declamação de um poema; uma poesia de sua criação.

“Que pensaram as araras,
divisando ao longe as naus
naquele dia de abril?”
Que terão pensado as onças,
as tainhas e os saguis
quando os botes do homem branco
vieram dar ao litoral?
Teriam previsto o destino?
Teriam sentido que......."

Era uma poesia de época e que retratava um Brasil descoberto, as aflições, os transtornos que esse descobrimento causou aos povos indígenas, à flora e à fauna.
De onde ele estava pode ouví-lo com toda clareza; o poema seguia linhas descompromissadas com o sentimento do ser ou de suas inexploradas profundezas.
E o seu poema era lido sem interpretação, raso, um desses que não se envolvem em demasia, que não  falam  da dor, do amor e nem de nada que demande alguma carga emotiva contundente. Ao terminar  pode ouvir dos  amigos que o acompanhavam os mais efusivos elogios: “Oh, que bárbaro” ... “Putz, cara! Que bacana!"

Ele sorriu. De fato não gostara do poema com um todo. Houvera sim uma ou outra parte interessante, porém distante das viscerações e daquilo que ele tinha como valores. E analisando a situação concluiu que  hoje,  mais que ontem,  lhe parecia que o importante era ser o explorador dos seus próprios oceanos. Que era necessário mergulhar e de lá submergir trazendo consigo as dores, esperanças e as desilusões que não foram encontradas na superfície, mas que certamente estariam  escondidas nas profundezas e entre as pedras mais rasteiras.
 E o tema?  Oras! Tanto faz! - Concluiu - Não lhe parecia importante desde que trouxesse sentimentos ao chegar-se na superfície.


Após a declamação os rapazes voltaram aos sorrisos e discutiam os caminhos da poesia enquanto o nosso cliente consultava o relógio se dando conta das horas.  Pago os refrigerantes, apertou a mão de Genivaldo e seguiu o seu caminho;  ainda pensava naqueles três. Sorriu novamente ao olhar para trás. Dessa vez um sorriso cúmplice; Naquela idade ele também fora um contestador do seu tempo. Recordou que  gostara de alguma de suas namoradas. Mas, gostava-as acima de tudo quando entre de quatro paredes, sem  exposição.
Amou algumas delas,  é verdade, mas não admitia demonstrar publicamente o seu afeto. Palavras meladas então, nem pensar! À seu ver eram coisas sentimentalóides, de babacas! Claro, ele jamais quis  pagar o mico já que sabia que seria interpretado pelos amigos como um mero atorzinho afeito aos dramalhões, assim como eram as novelas mexicanas de então.
Portanto vencida a juventude e com a maturidade lhe batendo nos calcanhares foi necessário que mergulhasse nos mares da existência e de lá surgisse à tona com a sensibilidade debaixo de um braço e a fragilidade por baixo do outro.

Antes de dobrar a esquina parou e voltou o olhar. De  donde estava ainda era possível ver-lhes as roupas.
O rapaz de camisa amarela que aplaudira a poesia parecia estar agora compenetrado no laptop do seu amigos,  provavelmente à caça de outros poemas  ou de fotos de garotas no HD . A garota loira,  de pernas bonitas e lindamente bronzeadas atirava os seus lindos cabelos, ora para o lado, ora para trás, enquanto  o poeta,  de camisa vermelha, não conseguia  traduzir que aquele lance da menina e dos seus cabelos eram  com ele. O velho sorriu saudoso do tempo. Provavelmente jamais tinham alertado aquele poeta – Concluíu  - À ele alertaram sim! Isso quando entrou pela casa dos 14 ou 15: - "Filho, toda mulher que insistentemente joga os cabelos enquanto conversa com você, é porque tem a intenção de conhecê-lo mais intimamente – Instruiu-lhe o pai. Houveram muitas ocasiões em que seu pai errou já que nunca fora um sábio. Mas....e quanto a isso?

-Te devo essa, velho! Isso naunca falhou! - Admitiu num sussurro de saudade. Depois sorriu para o nada, sacanamente.

Sobre àquele garoto poeta,  ainda havia tempo para ele.  Tempo suficiente para que aprendesse essa e outras coisas da vida, além dos sentimentos e das esmeradas poesias, é claro!


Copirraiti 2010NOV
Véio China©

sábado, 27 de novembro de 2010

Rio 40 graus!

Bexigas amarelas, verdes, azuis estouravam ao contato de ínfimos gravetos colhidos no chão de terra. – A gurizada se deleitava entre brincadeiras de pega-pega e de pular cavalinhos. Surpreendentemente no aniversário outro balão acabava de espocar. Um balão humano e de sorriso arteiro mesmo  lhe faltando um dente. O que se viu foi o sangue esvair e manchar de encarnado o corpo pequeno e frágil de pouco mais de sete anos. O gosto da morte se apossou de tudo; do bolo de chocolate aos sanduíches de cachorro quente.
Nas vias de acesso ao morro homens fardados numa mescla de tonalidades do verde empunhavam metralhadoras poderosas pondo em polvorosa toda a comunidade. A cena era de terror. Tiros espocavam morro abaixo, morro acima. Nas ruas, veículos incendiados  pelas mãos do tráfico como se fossem tochas de balões indicando o aviso fatal;  Estamos aqui, venham nos buscar!

Mais tiros à deriva se ouviam numa possibilidade infinda de ceifar outras vidas  ou atingir  outras gentes inocentes de tal gravidade que  nunca mais recuperassem seus movimentos.
O cheiro da morte persistia na atmosfera. O vento sul  soprava nos estreitamentos daquelas vielas  deploráveis,  silêncio apenas entrecortado pelo trotar das ágeis pernas dos soldados e das vozes estabelecendo comandos. Nas entradas dos barracos nenhum morador;  todos enfurnados para dentro de suas portas de madeiras compensadas,  reclusos no próprio medo. Nas escadarias nenhum agrupamento de crianças, suas algazarras, muito menos o som pueril de seus pés serelepes escalando os degraus que as levavam morro acima.

Perto dali os braços abertos de uma estátua descomunal pareciam assimilar a violência.
Ela nos olava. Olhos pétreos que à tudo percebia e que pareciam chorar as mesmas lágrimas das nuvens, contudo, impotentes, e mesmo em  sendo o Cristo, não pôde fazer.

No dia seguinte em meio ao trânsito caótico e na frieza dos envidraçados corredores das segundas feiras, homens fardados e autoridades civis se pronunciariam ante um batalhão de repórteres e microfones e TVs. Naquelas horas das mais tristes onde se perdeu gente inocente e não se chorou por filhos que não eram deles,  se baseiam em estatísticas para amenizarem o caos que nos vemos expostos-  “ Neste ano, se comparado ao  mesmo período do ano anterior,  veremsos que as mortes ocasionadas pela guerra do tráfico” reduziram em 25%  – Dirá um deles  dentro dum terno de boa marca e um sorriso eficiente.

Para eles, acostumados a estudar a desgraçada alheia como mero número estatístico  pouco importará que estejam há poucos momentos do laudo do  IML com o resultado da “causa mortis” da criança aniversariante – “Disparo de projétil de arma de fogo - calibre 38” –  Certamente confirmarão os caracteres de um laudo  gélido ante a insensíbilidade alva da folha de um computador.

Nos céus o sol continuará cintilando, forte,  desumano, 40 graus,  enquanto  as areais se enamorarão das ondas sob os olhares plácidos de mulheres que se bronzeiam em toalhas estiradas. As agitadas ruas de bairro acolherão os feirantes que bradarão  suas bacias de um real.  No alto, o Redentor continuará de braços abertos numa postura impassível para mais um dia das sabidas desgraças.
Nas vias, casas e escritórios outras guerras acontecerão, sejam elas do tráfico, de casais, de pais e filhos, amigos e inimigos,  ou mesmo,  dos chefes e seus subordinados.
Muitas sirenes se farão ouvir. Muitos choros  serão inaudíveis viscerando apenas um pranto de alma. - " O Rio de Janeiro continua lindo/O Rio de Janeiro fevereiro e março/Alô, alô, Realengo/Aquele Abraço" Gilberto Gil cantará em alguma caixa de som de qualquer  bar de orla. O turista o  ouvirá sorridente  e meneará os quadris numa tentativa  desastrada de repetir com  sucesso os passos vistos num mestre sala vencedor do carnaval.
" O Rio de Janeiro continua lindo" Insistia o poeta.


Copirraiti 2007/2010
Véio China©

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A morte pede carona na ABL

Sabiam que peixes se constituem animais perigosos?
Sim! Saborosos, mas de alta periculosidade!
Entre eles posso citar o mais terrível: O “We are Champion”

O que muitos não sabem sobre o “We Are Champion” é que é um peixe de água doce e se origina no Rio Tamisa, na Inglaterra, berçário de sua espécie. E o fato nos passou despercebido até que foi trazido ao Brasil da era colonial pelos fidalgos ingleses, assíduos freqüentadores dos salões de Buckingham. Também não devem saber que esse peixe fornece uma carne compacta e de sabor inigualável. Contudo, apesar de tantos predicados o We are Champion veio junto com alguns dissabores, tornando-se algoz de muitos de nossa corte ante o despreparo de nossos "chefs" no processo do estripamento e preparo do peixe, e o que permitia que, camuflados, seus perigosos espinhos fossem à frigideira.

Conta a história que numa noite chuvosa da década de 20, na Academia Brasileira de Letras, o We Are Champion foi servido num jantar de gala. Milionário e sabedor dos segredos gastronômicos contidos aos redores do mundo, sigilosamente um dos imortais reproduziu a espécie em cativeiro e quis surpreender seus pares com um fausto jantar onde pudessem conhecer a inimaginável iguaria.

E assim foi; Numa mesa imponente O “We are Champion” foi consumido com avidez. Atônitos, os mortais procuravam entender o milagre daquilo. Todavia não contava o Barão de Tiririca, patrocinador do deguste e titular da cadeira número 5, que fosse sufocar ao ter um enorme espinho cravado à garganta. O desespero do barão tornou-se evidente para o seu companheiro de mesa.

-O que foi Barão? – Assustado perguntou-lhe Adamastor Freijó – titular da cadeira de número 29, apreensivo ao vê-lo esganiçar tal qual cachorro engasgado.

-We Are Champion! – Respondia o velho Barão, massageando a garganta com insistência.

-Sim Barão! Eu sei que o senhor é um vencedor, mas... – Retrucava Adamastor sem entender perfeitamente aquela estória de "We are Champion”

We Are Champion! We Are Champion! – Aflito insistia o Barão.

Evidente, o esforço vocal fazia o espinho deslocar-se e aprofundar-se na faringe do imortal. E, em se aprofundando o Barão passou a ter problemas para respirar – O ar parecia fugir dos seus pulmões –

-We Are Champion! We Are Champion! – Ele repetia ante a perplexidade Adamastor que estapeava as suas costas, mas sem que surtisse efeito.

-We Are Champi... We A…Cham… – O Barão murmurava. A sua voz agora rouca perdia a força como a de alguém em estado terminal.

Sem o ar para ventilar os pulmões o rosto do barão ganhou uma tonalidade arroxeada, acompanhado das pupilas dilatadas e pernas tremulantes. Não tardou para que desabasse como um prédio implodido. Surpreso, Adamastor gritou por socorro. Diante da gravidade do fato instalou-se um corre-corre, telefonemas e pedidos de ambulância. Porém, quando chegaram se fazia tarde; O Barão de Tiririca falecera, desencarnara. Após muito fuzuê, policiais, imprensa, curiosos, o corpo do homem foi retirado. Academia evacuada, os imortais aglomeraram-se no salão nobre para discutirem entre si o que se fazer numa situação daquela.

-Adamastor, como isso pôde acontecer? – Questionavam-no perplexos.

-Não sei ao certo, digníssimos colegas – Respondeu o imortal, desolado – Eu só sei que ele perseverava: We Are Champion! We Are Champion! E assim foi até arroxear-se e lhe faltar o ar vital - Respondeu desconsertado.

-Oh! Pelo grande Machado de Assis! – Exclamou um deles – Estúpida tragédia! – Retrucou o outro.

-Estúpida coisa nenhuma! Esse filho de uma puta mereceu! – Excitado berrou o quase centenário Afrânio Coutinho, titular da cadeira de número dois – Esse miserável não teve humildade nem pra morrer!

E o imortal Afrânio Coutinho, como se mergulhado num processo de perturbação persistiu na ladainha, duas, três, quatro, dez, vinte, trinta, cem vezes e até sua voz definhar. Ele estrebuchava e continuava fora de controle e nada nesse mundo e nem os protestos dos seus pares o fizeram calar. Aliás, algo fez sim; um fulminante enfarto do miocárdio.

E assim, melancolicamente, dois funerais foram agendados para a manhã do dia seguinte abortando uma pendência de mais de 40 anos entre os antagonismos literários e batalhas de egos.
Dizem as más línguas que a partir daquela desgraça os imortais jamais foram os mesmos. Dizem até que em comum acordo determinaram a proibição de almoços e jantares nas dependências da Academia.
Contudo e em respeito à fleuma britânica e, principalmente ao inesquecível "We Are Champion" mantiveram e realçaram um fato light e que se tornaria a marca registrada da casa; Precisamente, o chá com torradas, das cinco em ponto.



Copirraiti 2010Nov
Véio China©

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A Tattoo

Novembro. Minha vida não andava lá grande coisa nos meus incompletos 57 anos. E como desgraça pouca era bobagem lá estava eu desempregado pela 33ª vez, lutando bravamente com a solidão causada por uma  mulher que me deixara há menos de três meses.
O seu nome era Elisabeth, e em nosso último mês de convivência  ela dera de me chamar de bêbado e  alcunhar-me de  “o escritor fracassado”. Claro, jamais seria ingênuo o suficiente para não considerar algumas coincidências entre mim e alguns nobres e bêbados escritores de uma ou duas gerações anteriores à minha. E para piorar ou realçar as tais evidências eu achava-me um talento na escrita, um Ferdinand Celine ainda não descoberto. E esse clímax de desesperança, apatia,   tinha muito a ver com as infindas madrugadas onde  à caça de estórias  mirabolantes  eu deixei de deitar-me ao seu lado ou mesmo levantar-me à tempo para o  turno de trabalho que começava às 8 em ponto.

Sobre Beth, devo consentir que ela esteve sempre com a razão. Beth queria o que toda mulher quer; o corpo do seu homem na hora do descanso. Evidente, não no sentido de se dar mais uma boa trepada, mas sim, no aguardo do apego e da cumplicidade entre duas pessoas que se querem bem. E isso as deixavam felizes;  o roçar dos corpos por debaixo dos cobertores, onde as carícias e a calidez dos beijos  fazem-nas sentir que ainda aflora um resto de vida  e de romance dentro de suas almas e carcaças voluptuosas.
Do trabalho e do meu chefe eu jamais poderia reclamar; Fora a minha 17ª falta no ano, apesar de estarmos no mês agosto. Conclusão; bilhete azul na 2ª quinzena daquele mês..

Ocioso, minha rotina se constituía em enviar currículos pela internet e para as empresas que pudessem se interessar pelos meus serviços. Meus serviços? Uma grande piada, isso sim! Que préstimos poderiam existir num sujeito que abandonara a faculdade de administração no 2º semestre do primeiro ano? Quais serviços relevantes poderiam sobreviver num cara que jamais se especializara em algo e que vivera toda sua vida de servicinhos  variados, ora fazendo um bico aqui, outro ali? Confesso até que em minha juventude tentei me sobressair no boxe. Tentei, porém o meu queixo de vidro e um fígado tanto sensível acumularam 7 nocautes nas 10 primeiras lutas. Lembro-me ainda desta última luta onde eu ajoelhara ante o meu adversário e ao terrível castigo que impusera à minha linha de cintura.   Recordo também que antes de levar-me ao nocaute em definitivo eu o olhava com muita raiva ao girar em seu torno; “Vou te matar,  filho da puta!”  Eu lhe dizia.  E foi desta forma,  procurando na lona pelo meu protetor bucal que tive a mais absoluta certeza que  a nobre arte  jamais se faria o meu forte.

Talvez, essa entre outras tantas de minhas inconstâncias aliadas ao fato de eu supor-me um grande escritor  tenham pesado na resolução tomada por Beth; O que eu poderia dar a ela se não meia dúzia de pães franceses e margarina Delícia ao alvorecer?
Portanto ali eu estava e sozinho dessa vez, sem nada e sem ninguém,  salvo o abrigo das madrugadas onde as minhas estórias, amargas regadas á vinho barato eram criadas  para depois serem impressas em folhas de papel A4.  Dormindo sempre depois das 5 da matina eu acordava um pouco depois do  meio dia,  preocupado,  já que em minha caixa de e-mails nunca havia respostas para os meus currículos. Pior;  seria aquele  penúltimo mês do meu seguro desemprego.
Porém,  naquela manhã algo começara diferente já que debaixo da porta uma correspondência aguardava a atenção dos meus olhos.

“Sr. Erico Zambini, Favor entrar em contato com editoração deste jornal “  -
Daí,  davam o endereço, o nome da pessoa, e o horário que deveria me apresentar. Olhei novamente para o comunicado e pensei ; finalmente estavam dando uma chance pro genial escritor  que entregara-lhes suas estupendas estórias há  mais de mês?  Eu sorri.
No dia seguinte lá estava eu na sede do Jornal Aqui e Agora.

-Senhor Erico, sou a Matilda.  Um minutinho, que o Sr. Maciel irá atendê-lo – Apresentou-se a secretária. Olhei para ela enquanto ela se levantara  para regular a temperatura do aparelho de ar condicionado. De costas, um vestido justo e negro colado ao corpo acentuava o seu bumbum  e linhas das perna. Eles eram estupendos.

Temperatura ajustada, ela retornou para sua mesa enquanto eu aguardava ali numa das poltronas da recepção. Esperando a minha vez ative-me atentamente a ela. Talvez  estivesse na casa dos  32 ou 33 anos. Morena clara, olhos negros luminosos e dona de uma voz sensualíssima assim como os lábios vermelhos e o seu jeito de se expressar. Sempre há mulheres que exalam sensualidade mesmo que não queiram – Acabei por concluir enquanto mantinha um sorriso idiotizado em meu rosto.
Nesse meio tempo o seu telefone tocou. Ela atendeu e após desligá-lo,  me pergunta:

-Sr. Erico, o senhor me permite  dizer-lhe uma coisa?

-Claro, fique à vontade meu anjo! – Foi então que ela sorriu. Um sorriso lindo, que faria o sol aparecer por entre nuvens densas de uma tempestade.

-Bem...é que o senhor me lembra alguém muito especial! – Respondeu-me num tom agradável,  cúmplice  até – Depois, voltando à realidade, solicitou-me: O senhor poderia acompanhar-me?  O Sr. Maciel falará com o senhor, agora!

Dito isso se pôs à minha frente e me conduziu á sala do Sr. Maciel. O seu modo de andar era espetacular,  estiloso, e as nádegas apenas meneavam discretas, majestosas. Entramos na sala do tal homem e ela fez o caminho de volta tomando o cuidado de delicadamente encostar a porta.

-Erico Zambini? – Ele me perguntou com um certo ar de idiota – Claro que eu era o Erico Zambini! Quem eu poderia ser?  Diego Maradona?

-Sim, sou ele mesmo, Erico Zambini! – Respondi num sorriso pálido. Era estranho, mas era comum acontecer comigo; Eu não fora muito com a fachada daquele sujeito.

-Pois bem Sr. Zambini. Gostamos dos contos que nos enviou e gostaríamos que escrevesse para nós nas edições dominicais. Poderíamos fazer uma experiência para vermos se da certo – Disse secamente.

-Claro, claro! – Concordei – E que tipo de material estão querendo? –

-Estamos precisando de contos cheios de sensualidade e  romantismo para o nosso caderno feminino! Contos que envolvam a sensualidade e algum erotismo, porém, sem flertar com o chulo ou o mau gosto – Ele afirmou

-Bem...esse não é o meu forte. Sou mais afeitos às estórias de  uma escrita mais pesada, e....

-Sim! Sabemos que é um contista que adora textos pornográficos – Ele me interrompeu – Porém, para alguém tão pródigo na criatividade com textos eróticos acreditamos que  a tarefa não seja das mais difíceis – Concluiu com naqueles seus olhos castanhos e imbecis e numa impostação de voz desses que acham sabedores de tudo.

-Fechado? – Inquiriu-me

-Fechado! – Confirmei. Eu não tinha nada a perder.

Foi então que ele discorreu sobre o valores.  O pagamento semanal não era estupendo, contudo o suficiente para livrar-me do pesadelo do seguro-desemprego. Instruiu também que eu deveria entregar a matéria até as 17 horas de sábado para que houvesse tempo suficiente para a editoração  e prensagem no jornal
Concordando com todos os detalhes, o Sr. Maciel chamou a secretária para que me levasse  ao RH da empresa e onde eu deveria apresentar os meus documentos pessoais e já deixar assinadas as duas vias do nosso contrato de prestação de serviços.
Evidente, o Sr. Maciel acha que não percebi, mas vi pelos os cantos dos olhos ele bolinando a bunda da secretária. Reparei ainda no sorrisinho safado da Matilda ao fechar a porta e me encaminhar ao Sr. Dilermando. Apresentado ao encarregado do RH ficamos por ali no preenchimento dos documentos enquanto Matilda não desgrudava os olhos de mim. Isso poderia me parecer estranho, mas não era, afinal, algumas mulheres gostam do feio, ou do não tão belo. Tudo assinado sai com ela me levando pelo braço onde senti alguma pressão da sua delicada mão. Antes de sair, num repente de coragem que são destinados unicamente aos heróis, arrisquei:

-Matilda, quer sair amanhã para bebermos algo? – O amanhã que eu me referia era a sexta feira, dia seguinte. Ela pensou por alguns momentos e fez o fatal charme de mulher:

-Amanha? Amanhã...não sei se devo! – Sussurrou naqueles lábios carnudos e tingidos de carmim.
.
-Só para alguns drinks. – Insisti, delicado.

Então ela  sorriu e me deu o telefone da sua casa.
Sexta feira, conforme combinamos pelo telefone lá estava eu em frente ao seu endereço num bairro próximo dali. Talvez ela tenha estranhado ao entrar no meu Gol 85 – Provavelmente Matilda estava acostumada aos carros imponentes, luxuosos.
Em todo o caso foi uma noite excelente, onde bebemos bastante, trocamos muitas confidências e acabamos na cama de um motel de terceira e com espelho no teto. Eu torrava a grana do meu seguro desemprego, mas, sem problema; eu estava empregado e com um futuro promissor pela frente; quem afirmaria em sã consciência que eu não poderia vir a ser o redator chefe daquele jornal? Ninguém!

Da noite de sexta e  da madrugada de sábado ótimas lembranças. Ainda mais porque aquela garota foi um espetáculo na cama. Deixei-a em sua residência por volta das 4 da manhã e fui para casa. Chegando, extenuado fisicamente caí na cama e ferrei no sono.
Abri os olhos e olhei para o relógio:

-Jesus Cristo! Quase duas da tarde! A crônica! – Exclamei ao dar um salto da cama.

Fui à cozinha, passei um café e me entreguei ao computador e à crônica. Depois de duas horas lá estava eu com o serviço pronto. Eu havia escrito uma belíssima crônica sobre a sensualidade e independência  da mulher moderna. E, modéstia á parte; uma crônica finíssima, refinada, nada de chulo ou de mau gosto. Após a última revisão, e conforme o que acertáramos enviei uma cópia por e-mail ao Sr. Maciel e  depois imprimi. Tudo terminado saí em disparada para o jornal; eles faziam a questão da minha presença junto ao editor-chefe;  talvez para troca de  idéias sobre o texto ou a mudança de algo que se fizesse necessário.

Cheguei por lá faltavam 15 minutos para as cinco da tarde. Eu estava orgulhoso de mim dessa vez.  “Nada como a responsabilidade”  - Murmurei comigo mesmo.
Entreguei o material para o editor que o examinou minuciosamente para depois se abrir num sorriso: “Ótimo! Uma grande matéria” – Disse ele, parabenizando-me.
Em seguida nos despedimos e eu retornei para casa. Naquela noite de sábado eu nada quis escrever, muito menos chegar próximo do computador. No armário,  uma garrafa de vinho do Porto que me fora dada de presente  por Beth, guardava uma ocasião muito especial. Haveria dia mais especial que aquele?  Não! Aquele dia era  tão especial que abri a garrafa e a sorvi durante a noite  intercalando com algumas doses de vodka e latas de cerveja. Eu fiquei bêbado, um bêbado feliz que se sentia o rei da farofa de camarão rosa.  Adormeci, profundamente.

No domingo acordei por volta das dez e meia e corri para a banca de jornal onde adquiri um exemplar do Aqui e Agora. Passei no supermercado, comprei duas caixinhas de cerveja, mais dois vinhos tintos  e voltei para casa. Chegando, desfolhei o jornal abrindo- o no caderno de cultura e procurei avidamente pela minha crônica. Nada! Nem uma linha sequer!
Reli o jornal de cabo a rabo e nem sinal do meu texto.
O que será que aconteceu? – Me perguntei. Porém, domingo, não haveria resposta para mim. O jeito era aguardar a 2ª feira.

“Ah! O Sr. Maciel vai comer o rabo de alguém!  Ah se vai!”– Sussurrei comigo. Evidente, alguém falhara, e não fora eu.

Durante à tarde eu enchi o caco de cervejas e acabei adormecendo diante da TV e do
jogo do meu time de coração. Acordei por volta das dez da noite. Levantei, fui à cozinha e fiz um sanduíche de presunto com queijo e voltei para a  cama. De madrugada acordei sobressaltado; o que aconteceu com minha crônica? – me perguntava – Fiquei pensando por alguns momentos até que novamente adormeci.

Segunda feira, 9 horas da manhã, o telefone toca, insistente. No oitavo toque eu atendo:

-Alô, quem é? – Indago

-Érico? – Perguntou-me a voz de uma mulher.

-Sim, ele! –

-Érico, aqui é a Matilda! – Ela disse-me seca, lacônica, bem distante da simpatia da noite do motel.

-Sim, meu amor! Tudo bem? O que foi, Matilda? –  Questionei gentilmente.

-Tudo bem o cacete! – Ela respondeu ríspida

-Com assim, não estou entendendo! – Exclamei surpreso.

-Erico! – Ela insistiu

-Sim, meu anjo, fale! - Aquilo estava me deixando confuso.

-Erico, então saiba; Você é um safado! – Ela retorquiu raivosa, irada.

-Hã? – Foi a minha única resposta

-A arara azul! Não era do seu direito....seu grande filho duma puta!  Eu fui demitida! – Ela esbravejou  e depois bateu furiosamente o telefone.

No exato momento em que eu voltava o telefone à base, toca a campainha. Ainda em estadoi de perplexidade fui na direção da porta; era o carteiro que trazia um telegrama. Abri:

“Sr.  Zambini, informamos que não mais necessitamos do seu serviço. Favor vir aos nossos escritórios para receber seu cheque dessa semana” – Dizia o texto em letras negras num formato Lúcida Sans, onde se lia perfeitamente o nome do remetente; Ortega Maciel.

Foi então que me caiu a ficha: A tal arara azul fazia parte da sensível crônica que escrevera para o jornal. Nela eu falava de uma mulher maravilhosa, independente, sensual e de sua belíssima arara azul cravada delicadamente em sua nádega esquerda; Uma tatuagem requintada, feita por um artesão, susceptível,  e tão real, apesar de diminuta, que não me surpreenderia se ela tivesse alçado vôo num daqueles momentos de luxúria. Talvez  houvesse alguma chance para Matilda se eu não fosse tão perfeccionista e não tivesse descrito a coloração rósea de algumas de suas penas que se fundiam  sensíveis à uma quase totalidade do azul escuro do restante da  plumagem.

E pensando nisso eu sorri. Um sorriso amargo, de derrota, de abatimento,  como tantos outros que sorri  em minha vida.  Ortega Maciel não era exatamente um homem a quem devíamos tratar ou tê-lo  por imbecil.
E eu sentia a falta de Beth. Agora, mais que nunca.


Copirraiti  Nov2010
Véio China©

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

São Paulo 1993 - Numa noite de inverno -

-Sabe...acho você demasiadamente triste - Ela sussurrou.

Apesar de estarmos bêbados eu achei o murmúrio algo despropositado e um tanto fora de hora; não se fala pras pessoas ébrias que elas sao ou estão tristes. Muito menos com aquele seu sorrisinho de de escárnio impregnado nos cantos dos lábios. Eu não entendia bem os motivos, mas, a bebida nos fazia degladiadores, como se estivéssemos duelando por nossas vidas sobre uma toalha quadriculada em preto e branco. Eu olhava para a garrafa de cerveja e acompanha o suor que, escorrendo pelo seu corpo vítreo desbrava o caminho pelo tecido grosso e de plástico.

-Bem...acho que não sou exatamente um sujeito triste. Talvez, apenas nostálgico - Cada qual sabe da cruz que carrega. Defendi-me.

À mim só coube a tentativa de preservar-me e não deixar ruir os meus elefantes construídos em areias de devaneio. Em todo o caso estava sendo difícil enfrentar o seu olhar. Um olhar de quem reabre feridas e não respeita cicatrizes. Eu me senti acuado e defendia minha rainha ante o seu exército de bispos e torres. Talvez o xeque-mate me fosse iminente.
Perturbado lancei-me com desespêro em defesa da realeza:

-À propósito, mesmo com esse olhar de quem não erra em jogo eu te sinto extremamente melancólica. Talvez me seja mais fácil conviver com as saudades das coisas que não estão comigo mas, que ainda permanecem lá, ao resistir bravamente à melaconlia donde nada ressuscita

Foi a vez dela sentir o golpe. Nos seus olhos brotaram apenas duas lágrimas, tristes, transparentes, dilaceradas por dores que eu não sabia quais eram e que me deram a sensação de reabrirem fendas que o tempo tentava unificar.
Eu nada mais  disse pois não foi necessário.

-Mais um cerveja? - Propus ao olhar nos seus olhos e perceber que incomoada procurava se entreter com o copo deslizando sobre ele suas unhas esmalte carmim.

-Sim! - Ela respondeu num som abafado, talvez saído mais das  chagas que da embriaguês.

-Garçom, mais uma Boehmia! - Pedi estalando os dedos.

Repentinamente soergue o rosto e suas lágrimas ainda nao haviam secado quando  me sorriu; Um sorriso diferente dessa vez. Trazia no olhar apenas a mansidão de quem também evitava o ruir das suas borboletas de areia.

Momentaneamente, imaginário,  empurrei todas as peças ao além do tabuleiro; Não havia motivos para que houvesse algum ganhador.
Naquele instante eu tive a plena certeza do quanto as palavras tinham o poder de unir, ou até mesmo, destruir.
Um sorriso mútuo dessa vez, ainda triste, é verdade, mas,  nós lutávamos para não sucumbir.

Copirraiti nov2010
Véio China

sábado, 13 de novembro de 2010

A estória mais espetacular dos últimos tempos!

Cheguei em casa passava das sete da noite. O dia fora exaustivo naquele sol de verão onde à sombra chegou-se a mais de 35 graus. Correndo de um lado para outro em estações do Metro apinhadas de gente, pressa, muita pressa, unicamente pressa é o que se via no olhar e andar das pessoas. São Paulo se tornava cada vez mais desumana e amada.
Entrando em casa, com a ponta do sapato direito fiz pressão sobre outro calcanhar, livrando-me do sapato do pé esquerdo. Com o pé desimpedido procedi da mesma forma com o outro, ganhando assim a liberdade condicional; Sim, condicional sim! Afinal, tudo na vida não é condicional?  Tudo que nos cerca é condicional. Respiramos até termos força e ar em nossos pulmões. Enquanto formos potentes teremos relações sexuais. Inclusive até o amor é condicional; não amamos até se findar amor?  Aliás, talvez aí resida um erro de avaliação; Talvez o amor flutue nas nuvens da transitoriedade e não num deserto de condicionamentos.

Desapertei-me da cinta, do nó da gravata e lá estava eu em cuecas na sala de estar. Utopia era denominar aqueles seis metros quadrados como sendo uma sala de estar. Mas como é chique se referir a ela dessa forma, então eu digo de boca cheia; eu tenho uma sala de estar!
Jogados em cima do sofá deixei a minha calça de tergal risca de giz e a puída camisa branca de mangas longas que me acompanham por uns bons anos.. Inspeciono o local e na mesinha de centro percebo uma crosta no vidro. A sua tonalidade de um cinza esverdeado não me deixou dúvida; “O filho da puta do Alfredo andou cagando por aí!” Resmungo comigo ao curvar-me e observar atentamente o empastamento em alto relevo.

-Alfredo! Onde você está? – Vocifero Se eu o conheço bem ele não tardará a se manifestar

-Currupaaa! Currupaa! Aqui! Aqui! – Ele da sinais de vida ao sair detrás de um Buda; um bibelô de mais ou menos 15 centímetros de altura por 25 de largura. Eu nunca soube quais eram os seus motivos, mas, Alfredo sempre foi fissurado pelo gorducho.

-Alfredo, seu mini urubu tingido de verde! Vem aqui com o papai! – Eu o provoco

-Urubu verde! Urubu verde! – Ele repetiu ao voar para o meu ombro esquerdo.

Eu e Alfredo éramos do tipo "bom camarada" E desta longa convivência sobreviviam gostos que nos mantinham unidos, tais como ao amor ao mesmo time e a profunda admiração pela música de Tchaikovsky.   Geralmente os humanos se derretem por seus canídeos, felídeos, fazendo deles o seu bicho de estimação, quando não a extensão de suas próprias famílias.  Comigo não tinha essa! Eu sempre preferi os psitacídeos; jamais um cão uivará um “Currupa”, latiria um "filho da puta" ou gostaria de música clássica.

E assim com a mascote em meu ombro me dirigi à cozinha, abri a geladeira e peguei a garrafa de água mineral gasosa e a emborquei num longo gargalo. Isso pareceu ter incentivado Alfredo.

-Vodka! Vodka! – Falou tão rápido quanto suas patas que iam num daqui pra la, de la pra ca em minha musculatura.

-Isso não é vodka, seu filho da puta! É água mineral com gás! – Para o Alfredo, tudo que se mostrasse líquido e incolor tinha um nome; vodka.

O papagaio tinha uma facilidade estupenda em aprender coisas, por isso eu estranhava o fato dele não conseguir assimilar o “ah” que em vão eu tentava ensinar-lhe.
E isso me deixava perplexo, pois o que seria um “ah” diante das falas dificílimas que ele produzia? Até alguns nomes próprios o Alfredo falava!
Bem, também isso não tinha importância agora.  Saciado da minha sede devolvi a garrafa à geladeira e me dirigi ao quarto. O que falar de um quarto que mede 2,5 X 2,5?  Absolutamente nada!
Ao entrar percebi que a luz de alerta da secretaria eletrônica mantinha-se piscando, portanto havia recados para mim. Olhei no visor e havia somente um. Apertei o botão de mensagem:

-Véio, preciso falar com você, urgente! O assunto é de extrema importância! – Disse a voz quase em súplica. Aliás, não era uma voz qualquer, e o timbre um tanto afrescalhado logo o denunciou – Assim que chegar, por favor, me ligue! – Ele pediu no final da gravação.

Gigio era o seu nome. Eu o conhecera há uns bons anos. Gigio era o dono de uma produtiva comunidade de Orkut, denominada Bar do Escritor. O Bar era um local virtual voltado à literatura e que abrigava milhares de escritores que lá postavam seus textos para as críticas dos demais. Peguei o telefone e me dirigi à sala e liguei a TV.

..... “A presidenta eleita Dilma Houssef prevê um 2011 com significativos avanços para a classe trabalhado..... – Não deixei o repórter da TV Globo terminar reportagem. Com o controle remoto em mãos apertei uma tecla e mudei de canal.  
... –“Foi sem querer querendo! Ele falou para o senhor Barriga. Eu também não sabia dos motivos que me faziam adorar os personagens do "Chaves", principalmente o seo Madruga. Dei algumas boas risadas, porém o meu pensamento estava voltado para o recado no telefone. Será que seria dinheiro emprestado? Fiança em contrato de aluguel? Aval em Nota Promissória? Bem, eu não sabia. E Não sabendo eu tinha que estar preparado. Peguei novamente o telefone, diminui o volume da TV e pressionei algumas teclas. Dois toques. No terceiro, atenderam.

-Gigio?

-Fala Veio! Pegou meu recado, né?

-Parece que sim! – Respondi laconicamente a sua pergunta imbecil. – Então continuou:

-Véio, como você está comigo há uns bons anos, e por respeitar a sua experiência queria a sua opinião em algo que to pretendendo fazer.

-Sim, e qual é?

- Sabe esse treco de vender cachaça em balcão pra poetas não ta dando muito certo. Esse mundo literário é excessivamente ególatra e nada lucrativo – Disse-me ele.

-Sim, e daí? – Perguntei.

-Daí que to pensando em mudar o ramo. Fazer do Bar do Escritor um Clube de Mulheres e de Homens! – Respondeu eufórico.

-Como assim? Não to entendendo completamente!  – Repliquei

-Assim, eu explico,Veio! Segunda, quarta, sexta e domingo, Clube das Mulheres...Terça, quinta e sábado, Clube dos Homens!

-Sim, mas... O que isso quer dizer, Gigio? – Eu não estava alcançando aonde ele queria chegar.

-Calma! Eu chego la! O que eu quero dizer é que convidarei alguns escritores para estrelarem os shows! Claro, mediante uma participação financeira, é óbvio! –

Meu Deus! Aquele cara só poderia estar louco! – Pensei – Ele estava excitadíssimo

-Veja, Veio. Imagine que bacana seria se nos fizéssemos shows de Pole Dancing. Imagine as meninas em lingerie negras, no mastro de metal dando voltinhas, subindo, descendo, fazendo bocas e caretas! – Ele exclamou com um entusiasmo que há muito eu não ouvia.

-Gigio, por Santa Filisbina! Você está bem? – Com muito custo consegui me expressar.

-Claro que to, Veio! Imagine a Barbara, Maria Julia, Michelle, Magmah, Cristina, Cris, Lena, Yvana, Hadassa, Michelle, Mare, Juleni, Márcia, Ruth, Liz, Olga e mais uma pancada de garo...

-Epa...opa! – Eu interferi -. Você só pode estar batendo estacas! Márcia, Ruth. Liz e Olga são damas de alta estirpe. Algumas são casadas, têm filhos. Uma é até avó! Duvido que elas se prestem a essas coisas! – Revidei na tentativa que enxergasse a quimera que se entregara.

-Será que não topariam? – Surpreso, e pra não fugir do padrão ele respondia com uma nova pergunta.

-Claro que não, porra! – Da onde você tirou essa idéia, Gigio?

-Bem, tudo bem, vá! A Márcia a gente coloca na bilheteria. A Ruth assume o cargo de diretora de palco. A Olga, a gente registra como redatora chefe.

-Registrar? Redatora chefe? Redatora de que? – Questionei

-Ah! É que ainda não te falei tudo! É que to pensando também em produzir um teatrinho erótico - Disse numa cara bem safada.

Eu simplesmente não pude acreditar no que ouvia.

-Bom...e a Liz? – Respondi impaciente, dando corda para ver até onde iria a sua insanidade.

-Bom...a Liz...a Liz...bem, na peça a gente da pra ela o papel de “tia das meninas"

-Heim? O que você disse Gigio?

-Isso mesmo que ouviu, Veio. E além do mais, ela leva jeito para esse papel.  Você nunca reparou no seu ar de autoridade?

-Sei, sei! Traduzindo; na tua peça a Liz seria a dona do bordel! !  

-É! É isso mesmo! Dona do bordel! – Ele exclamou satisfeito

-Puts! Só me faltava essa! – Respondi com certo desânimo. – E você ainda quer um show só com os homens? - Emendei

-Sim, claro! Quero o show com os rapazes, também. To pensando neles na barra de metal. Imagine o Allan e seus longos cabelos numa sunguinha fio-dental, branca! Ele, Gutemberg, Sacharuk, Daniel, Axl, Zulmar, Cruz, Lanoia, David, Tiago, Calaça, Edy e tantos outr... – Novamente fui obrigado a interrompê-lo:

-O Calaça? Com aquele corpinho esbelto que ele tem? Cheirou Água Raz, Gigio?

-Puts! É mesmo, ele é excessivamente forte, né? Bem, então pra ele não da. Mas... não é o Calaça que mexe com teatro? 


-Sim. O Calaça mexe com peças teatrais. E daí?

Então, Veio! O Calaça pode ser o diretor da companhia. - Respondeu eufórico. Parecia que seus olhos saltariam das cavidades oculares a qualquer momento

-Ta bom! – Acabei por concordar – Eu estava doido pra terminarmos aquele papo de gente biruta. Além do mais, que eu poderia fazer numa circunstância daquela?  Meter-lhe camisa de força? E se ele fosse do tipo agressivo?

-Viu Veio? Não é mesmo uma idéia genial? – Perguntou-me com certo convencimento.

-É... Mas... é melhor saber agora; você  não poderá contar com o Edy – Centifiquei-o.

-Ué! Não poderei contar por quê? – Novamente a miserável mania de responder-me com uma pergunta.

-Porque pegaria muito mal! O Edy tem uma caveira do Edie, do Iron Maiden, tatuada na em nádega esquerda! E isso desanimaria qualquer público feminino, exceto essas garotinhas que andam de negro e curtem heavy metal. E convenhamos... é um público bem diminuto

-Ah! É verdade! Aí num dá mesmo – Se ainda fosse a tatoo da Lady Gaga, até que passava! – Ele concluiu num profundo suspiro.

-É... – Concordei.

Mantivemo-nos em silêncio por alguns instantes. Eu apenas ouvia a sua ofegante respiração; certamente ele devaneava outras soluções.  O silêncio perdurou enquanto o Alfredo me olhava com certa desolação; E era como se aquele filho da mãe percebesse aquela loucura toda..

-Ah, Alfredo! Que bobagem a minha! Imagine se você teria a compreensão dessa piração toda?  Disse-lhe enquanto sentia os seus pés indo e vindo no meu ombro.

Foi então que envergou as asas e soltou a voz de uma forma que eu nunca ouvira;

-Dá licença, chefe filho da puta? Vocês são tudo porra louca! E o Gigio é gay!

Atônito eu o ouvi. Era a primeira vez que Alfredo não citava palavras isoladas. A primeira vez que ele formara frases e com raciocínio. Vencida a perplexidade veio a vontade de rir. Eu ri e gargalhei até provocar-me dolorosas contrações abdominais.  
Do outro lado da linha alguém berrava descontrolado, insano, desvairado:

-Veiooooooooooo, seu filho da puta! Eu ainda como a rabo desse teu papagaio!

Copirraiti Nov2010
Veio China ©


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domingo, 7 de novembro de 2010

O exterminador de mendicantes.


Sargento,   posso colocar fogo nesse aqui ?

-Nao, não pode! Vai feder à churrasco de terceira –

-Certo, senhor! - Acata o soldado ao dirigir sua arma para a cabeça do mendigo.

E o miserável o olha assustado ao receber o balaço. Há tempo ainda para  um último gemido; não se soube se de dor ou resignação. No ar, agora,  apenas os odores fétidos emanados do seu  corpo  e um nauseante cheiro de sangue que  escorre da  sua têmpora  esfrega-se ao chão numa trajetória impune por entre as imperfeições do asfalto da calçada.
Não se sabem os mandatários e nem os motivos; uns dizem ser  os comerciantes locais enquanto outros apenas indicam  a índole desumana e carniceira das milícias. Pensasse também, porém  improvável nesse caso,  nos filhos das classes mais abastadas;  garotos mimados  e truculentos, que vêem os mendicantes como  meras tochas de balões de São João ou batatas doces em  brasas vivas.
Todavia, seja qual for o grupo o fato remete-nos ao hediondo, à uma espécie de inquisição dos tempos modernos onde o discernimento se faz sentença de morte num julgamento instantâneo, desonesto, sem defensor, promotor,  júri ou juiz.  
Contudo a cena me parece tão escabrosa que a seqüência, infame,  não me custa devanear......
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-Sargento, com esse são três vagabundos. Duzentinho cada....dá seiscentas pilas, é isso?

-Exatamente, soldado! Seiscentas pratas! Pagamento na segunda, no boteco e hora combinada

-Graças à Deus! – Exclama o milico; nos seus lábios paira o riso dos  inocentes.

-Graças á Deus, por que? Não entendi! – Espanta-se o sargento.

-Bem, chefe...é que agora vai sobrar algum pra uma festinha e cervejinhas pros  amigos. Sábado é o batizado da minha menorzinha – Confessa o soldado ao recolher a arma  e alojá-la na cintura. No ar agora  uma atmosfera mais carregada, ocre mistura entre os cheiros de pólvora e do corpo do pobre infeliz.

-Tô nessa, soldado! Gosto de prestigiar os homens da minha corporação -  Presunçosamente convida-se o sargento.

-Certo chefe! Será um prazer ter o senhor em nossa casa! A minha bonequinha vai estar linda como um anjo no vestidinho de rendas brancas que vi e vou comprar nas Casas Pernambucanas.  Cento e cinquenta mangos, custa! - O subalterno  exclama feliz  ao comunicar o moitivo da sua alegria.

- Clao que  ela vai estar linda! Crianças nessa idade são como  anjos da guarda! – Sorri o sargento ao dar  tapinhas amigáveis no ombro do seu rapaz.

Serviço executado, os corpos transcendem numa atmosfera fúnebre como se fossem resultados dum  campode batalha.   Silenciosos, os assassinos ajeitam suas roupas respingadas à de gotas de sangue e entram no carro  sem placas e somem na calada de uma noite sem lua.

No alto do poste apenas uma lâmpada neon sombria e enfraquecida pelo tempo. A  tristeza é tão sentida que parece inferir em sua tênue luminosidade. Testemunha solitária dos horrorres daqueles momentos, impassível à tudo  olha.
Porém,  se questionada do caso, precavida, dirá que nada viu.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Asas de Vidro

Das encruzilhadas se faz o meu caminho.
Porém, as pernas pesam, os passos não andam e a visão se turva impendindo-me de saber onde estou. O destino me observa impassível e parece zombar de alguém que não sabe da sua estrada.  Sem opões  fito à minha direita e volto o olhar à esquerda; Aonde eu poderia ir?
Na dúvida  desisto das outras direções e olho em frente para uma reta que jamais se funde ao horizonte.

E os descaminhos me remetem ao pequeno pardal que num dia de tempestade de outono bateu as asas na minha vidraça. Não havia guarida para ele, somente concreto, esquadrias e vidros. Por instantes ele me olhou e no lugar dos mirrados olhos só havia um rastro de pavor,  frio, e um medo tão humano que tive vontade de abrir a janela  e convidá-lo para algumas migalhas de pão e restos de um bolo de chocolate.
Todavia resisti à minha  insanidade e não lhe abri a vidraça deixando-o à própria sorte

Obstinado,  as suas asas batiam  com mais vigor no vidro e isso pareceu ferí-lo. Novamente os diminutos olhos me fitaram, desta vez perplexos e ungidos de dor: Eles me questionavam os motivos que me fazia renegá-lo de forma tão desumana.
E assim, no meu silêncio e na falta de minhas atitudes ele desistiu e atravessou a tempestade  para um futuro que nem ele e nem eu sabíamos.

E são essas lembranças que neste momento insistem em não me abandonar enquanto o destino persiste a observar-me impassível. Olhando para a reta que não tem fim eu tento vislumbrar a luz de outros  caminhos; não consigo. E mesmo que conseguisse minhas pernas estacaram no concreto e não há um passo sequer. Sorrisos de derrota  espocam em meu rosto impregnado-me os lábios. Há neles algo de impotência e  irônico escarnecimento; A obsessão do destino  tomou-me de arrebato  transformando-me  numa redoma de cristal.

E é na frieza do vidro que expurgo e me limito refém da própria sina:
A de relembrar mortificado o magoado olhar daquele inofensivo pardal.