quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A Tattoo

Novembro. Minha vida não andava lá grande coisa nos meus incompletos 57 anos. E como desgraça pouca era bobagem lá estava eu desempregado pela 33ª vez, lutando bravamente com a solidão causada por uma  mulher que me deixara há menos de três meses.
O seu nome era Elisabeth, e em nosso último mês de convivência  ela dera de me chamar de bêbado e  alcunhar-me de  “o escritor fracassado”. Claro, jamais seria ingênuo o suficiente para não considerar algumas coincidências entre mim e alguns nobres e bêbados escritores de uma ou duas gerações anteriores à minha. E para piorar ou realçar as tais evidências eu achava-me um talento na escrita, um Ferdinand Celine ainda não descoberto. E esse clímax de desesperança, apatia,   tinha muito a ver com as infindas madrugadas onde  à caça de estórias  mirabolantes  eu deixei de deitar-me ao seu lado ou mesmo levantar-me à tempo para o  turno de trabalho que começava às 8 em ponto.

Sobre Beth, devo consentir que ela esteve sempre com a razão. Beth queria o que toda mulher quer; o corpo do seu homem na hora do descanso. Evidente, não no sentido de se dar mais uma boa trepada, mas sim, no aguardo do apego e da cumplicidade entre duas pessoas que se querem bem. E isso as deixavam felizes;  o roçar dos corpos por debaixo dos cobertores, onde as carícias e a calidez dos beijos  fazem-nas sentir que ainda aflora um resto de vida  e de romance dentro de suas almas e carcaças voluptuosas.
Do trabalho e do meu chefe eu jamais poderia reclamar; Fora a minha 17ª falta no ano, apesar de estarmos no mês agosto. Conclusão; bilhete azul na 2ª quinzena daquele mês..

Ocioso, minha rotina se constituía em enviar currículos pela internet e para as empresas que pudessem se interessar pelos meus serviços. Meus serviços? Uma grande piada, isso sim! Que préstimos poderiam existir num sujeito que abandonara a faculdade de administração no 2º semestre do primeiro ano? Quais serviços relevantes poderiam sobreviver num cara que jamais se especializara em algo e que vivera toda sua vida de servicinhos  variados, ora fazendo um bico aqui, outro ali? Confesso até que em minha juventude tentei me sobressair no boxe. Tentei, porém o meu queixo de vidro e um fígado tanto sensível acumularam 7 nocautes nas 10 primeiras lutas. Lembro-me ainda desta última luta onde eu ajoelhara ante o meu adversário e ao terrível castigo que impusera à minha linha de cintura.   Recordo também que antes de levar-me ao nocaute em definitivo eu o olhava com muita raiva ao girar em seu torno; “Vou te matar,  filho da puta!”  Eu lhe dizia.  E foi desta forma,  procurando na lona pelo meu protetor bucal que tive a mais absoluta certeza que  a nobre arte  jamais se faria o meu forte.

Talvez, essa entre outras tantas de minhas inconstâncias aliadas ao fato de eu supor-me um grande escritor  tenham pesado na resolução tomada por Beth; O que eu poderia dar a ela se não meia dúzia de pães franceses e margarina Delícia ao alvorecer?
Portanto ali eu estava e sozinho dessa vez, sem nada e sem ninguém,  salvo o abrigo das madrugadas onde as minhas estórias, amargas regadas á vinho barato eram criadas  para depois serem impressas em folhas de papel A4.  Dormindo sempre depois das 5 da matina eu acordava um pouco depois do  meio dia,  preocupado,  já que em minha caixa de e-mails nunca havia respostas para os meus currículos. Pior;  seria aquele  penúltimo mês do meu seguro desemprego.
Porém,  naquela manhã algo começara diferente já que debaixo da porta uma correspondência aguardava a atenção dos meus olhos.

“Sr. Erico Zambini, Favor entrar em contato com editoração deste jornal “  -
Daí,  davam o endereço, o nome da pessoa, e o horário que deveria me apresentar. Olhei novamente para o comunicado e pensei ; finalmente estavam dando uma chance pro genial escritor  que entregara-lhes suas estupendas estórias há  mais de mês?  Eu sorri.
No dia seguinte lá estava eu na sede do Jornal Aqui e Agora.

-Senhor Erico, sou a Matilda.  Um minutinho, que o Sr. Maciel irá atendê-lo – Apresentou-se a secretária. Olhei para ela enquanto ela se levantara  para regular a temperatura do aparelho de ar condicionado. De costas, um vestido justo e negro colado ao corpo acentuava o seu bumbum  e linhas das perna. Eles eram estupendos.

Temperatura ajustada, ela retornou para sua mesa enquanto eu aguardava ali numa das poltronas da recepção. Esperando a minha vez ative-me atentamente a ela. Talvez  estivesse na casa dos  32 ou 33 anos. Morena clara, olhos negros luminosos e dona de uma voz sensualíssima assim como os lábios vermelhos e o seu jeito de se expressar. Sempre há mulheres que exalam sensualidade mesmo que não queiram – Acabei por concluir enquanto mantinha um sorriso idiotizado em meu rosto.
Nesse meio tempo o seu telefone tocou. Ela atendeu e após desligá-lo,  me pergunta:

-Sr. Erico, o senhor me permite  dizer-lhe uma coisa?

-Claro, fique à vontade meu anjo! – Foi então que ela sorriu. Um sorriso lindo, que faria o sol aparecer por entre nuvens densas de uma tempestade.

-Bem...é que o senhor me lembra alguém muito especial! – Respondeu-me num tom agradável,  cúmplice  até – Depois, voltando à realidade, solicitou-me: O senhor poderia acompanhar-me?  O Sr. Maciel falará com o senhor, agora!

Dito isso se pôs à minha frente e me conduziu á sala do Sr. Maciel. O seu modo de andar era espetacular,  estiloso, e as nádegas apenas meneavam discretas, majestosas. Entramos na sala do tal homem e ela fez o caminho de volta tomando o cuidado de delicadamente encostar a porta.

-Erico Zambini? – Ele me perguntou com um certo ar de idiota – Claro que eu era o Erico Zambini! Quem eu poderia ser?  Diego Maradona?

-Sim, sou ele mesmo, Erico Zambini! – Respondi num sorriso pálido. Era estranho, mas era comum acontecer comigo; Eu não fora muito com a fachada daquele sujeito.

-Pois bem Sr. Zambini. Gostamos dos contos que nos enviou e gostaríamos que escrevesse para nós nas edições dominicais. Poderíamos fazer uma experiência para vermos se da certo – Disse secamente.

-Claro, claro! – Concordei – E que tipo de material estão querendo? –

-Estamos precisando de contos cheios de sensualidade e  romantismo para o nosso caderno feminino! Contos que envolvam a sensualidade e algum erotismo, porém, sem flertar com o chulo ou o mau gosto – Ele afirmou

-Bem...esse não é o meu forte. Sou mais afeitos às estórias de  uma escrita mais pesada, e....

-Sim! Sabemos que é um contista que adora textos pornográficos – Ele me interrompeu – Porém, para alguém tão pródigo na criatividade com textos eróticos acreditamos que  a tarefa não seja das mais difíceis – Concluiu com naqueles seus olhos castanhos e imbecis e numa impostação de voz desses que acham sabedores de tudo.

-Fechado? – Inquiriu-me

-Fechado! – Confirmei. Eu não tinha nada a perder.

Foi então que ele discorreu sobre o valores.  O pagamento semanal não era estupendo, contudo o suficiente para livrar-me do pesadelo do seguro-desemprego. Instruiu também que eu deveria entregar a matéria até as 17 horas de sábado para que houvesse tempo suficiente para a editoração  e prensagem no jornal
Concordando com todos os detalhes, o Sr. Maciel chamou a secretária para que me levasse  ao RH da empresa e onde eu deveria apresentar os meus documentos pessoais e já deixar assinadas as duas vias do nosso contrato de prestação de serviços.
Evidente, o Sr. Maciel acha que não percebi, mas vi pelos os cantos dos olhos ele bolinando a bunda da secretária. Reparei ainda no sorrisinho safado da Matilda ao fechar a porta e me encaminhar ao Sr. Dilermando. Apresentado ao encarregado do RH ficamos por ali no preenchimento dos documentos enquanto Matilda não desgrudava os olhos de mim. Isso poderia me parecer estranho, mas não era, afinal, algumas mulheres gostam do feio, ou do não tão belo. Tudo assinado sai com ela me levando pelo braço onde senti alguma pressão da sua delicada mão. Antes de sair, num repente de coragem que são destinados unicamente aos heróis, arrisquei:

-Matilda, quer sair amanhã para bebermos algo? – O amanhã que eu me referia era a sexta feira, dia seguinte. Ela pensou por alguns momentos e fez o fatal charme de mulher:

-Amanha? Amanhã...não sei se devo! – Sussurrou naqueles lábios carnudos e tingidos de carmim.
.
-Só para alguns drinks. – Insisti, delicado.

Então ela  sorriu e me deu o telefone da sua casa.
Sexta feira, conforme combinamos pelo telefone lá estava eu em frente ao seu endereço num bairro próximo dali. Talvez ela tenha estranhado ao entrar no meu Gol 85 – Provavelmente Matilda estava acostumada aos carros imponentes, luxuosos.
Em todo o caso foi uma noite excelente, onde bebemos bastante, trocamos muitas confidências e acabamos na cama de um motel de terceira e com espelho no teto. Eu torrava a grana do meu seguro desemprego, mas, sem problema; eu estava empregado e com um futuro promissor pela frente; quem afirmaria em sã consciência que eu não poderia vir a ser o redator chefe daquele jornal? Ninguém!

Da noite de sexta e  da madrugada de sábado ótimas lembranças. Ainda mais porque aquela garota foi um espetáculo na cama. Deixei-a em sua residência por volta das 4 da manhã e fui para casa. Chegando, extenuado fisicamente caí na cama e ferrei no sono.
Abri os olhos e olhei para o relógio:

-Jesus Cristo! Quase duas da tarde! A crônica! – Exclamei ao dar um salto da cama.

Fui à cozinha, passei um café e me entreguei ao computador e à crônica. Depois de duas horas lá estava eu com o serviço pronto. Eu havia escrito uma belíssima crônica sobre a sensualidade e independência  da mulher moderna. E, modéstia á parte; uma crônica finíssima, refinada, nada de chulo ou de mau gosto. Após a última revisão, e conforme o que acertáramos enviei uma cópia por e-mail ao Sr. Maciel e  depois imprimi. Tudo terminado saí em disparada para o jornal; eles faziam a questão da minha presença junto ao editor-chefe;  talvez para troca de  idéias sobre o texto ou a mudança de algo que se fizesse necessário.

Cheguei por lá faltavam 15 minutos para as cinco da tarde. Eu estava orgulhoso de mim dessa vez.  “Nada como a responsabilidade”  - Murmurei comigo mesmo.
Entreguei o material para o editor que o examinou minuciosamente para depois se abrir num sorriso: “Ótimo! Uma grande matéria” – Disse ele, parabenizando-me.
Em seguida nos despedimos e eu retornei para casa. Naquela noite de sábado eu nada quis escrever, muito menos chegar próximo do computador. No armário,  uma garrafa de vinho do Porto que me fora dada de presente  por Beth, guardava uma ocasião muito especial. Haveria dia mais especial que aquele?  Não! Aquele dia era  tão especial que abri a garrafa e a sorvi durante a noite  intercalando com algumas doses de vodka e latas de cerveja. Eu fiquei bêbado, um bêbado feliz que se sentia o rei da farofa de camarão rosa.  Adormeci, profundamente.

No domingo acordei por volta das dez e meia e corri para a banca de jornal onde adquiri um exemplar do Aqui e Agora. Passei no supermercado, comprei duas caixinhas de cerveja, mais dois vinhos tintos  e voltei para casa. Chegando, desfolhei o jornal abrindo- o no caderno de cultura e procurei avidamente pela minha crônica. Nada! Nem uma linha sequer!
Reli o jornal de cabo a rabo e nem sinal do meu texto.
O que será que aconteceu? – Me perguntei. Porém, domingo, não haveria resposta para mim. O jeito era aguardar a 2ª feira.

“Ah! O Sr. Maciel vai comer o rabo de alguém!  Ah se vai!”– Sussurrei comigo. Evidente, alguém falhara, e não fora eu.

Durante à tarde eu enchi o caco de cervejas e acabei adormecendo diante da TV e do
jogo do meu time de coração. Acordei por volta das dez da noite. Levantei, fui à cozinha e fiz um sanduíche de presunto com queijo e voltei para a  cama. De madrugada acordei sobressaltado; o que aconteceu com minha crônica? – me perguntava – Fiquei pensando por alguns momentos até que novamente adormeci.

Segunda feira, 9 horas da manhã, o telefone toca, insistente. No oitavo toque eu atendo:

-Alô, quem é? – Indago

-Érico? – Perguntou-me a voz de uma mulher.

-Sim, ele! –

-Érico, aqui é a Matilda! – Ela disse-me seca, lacônica, bem distante da simpatia da noite do motel.

-Sim, meu amor! Tudo bem? O que foi, Matilda? –  Questionei gentilmente.

-Tudo bem o cacete! – Ela respondeu ríspida

-Com assim, não estou entendendo! – Exclamei surpreso.

-Erico! – Ela insistiu

-Sim, meu anjo, fale! - Aquilo estava me deixando confuso.

-Erico, então saiba; Você é um safado! – Ela retorquiu raivosa, irada.

-Hã? – Foi a minha única resposta

-A arara azul! Não era do seu direito....seu grande filho duma puta!  Eu fui demitida! – Ela esbravejou  e depois bateu furiosamente o telefone.

No exato momento em que eu voltava o telefone à base, toca a campainha. Ainda em estadoi de perplexidade fui na direção da porta; era o carteiro que trazia um telegrama. Abri:

“Sr.  Zambini, informamos que não mais necessitamos do seu serviço. Favor vir aos nossos escritórios para receber seu cheque dessa semana” – Dizia o texto em letras negras num formato Lúcida Sans, onde se lia perfeitamente o nome do remetente; Ortega Maciel.

Foi então que me caiu a ficha: A tal arara azul fazia parte da sensível crônica que escrevera para o jornal. Nela eu falava de uma mulher maravilhosa, independente, sensual e de sua belíssima arara azul cravada delicadamente em sua nádega esquerda; Uma tatuagem requintada, feita por um artesão, susceptível,  e tão real, apesar de diminuta, que não me surpreenderia se ela tivesse alçado vôo num daqueles momentos de luxúria. Talvez  houvesse alguma chance para Matilda se eu não fosse tão perfeccionista e não tivesse descrito a coloração rósea de algumas de suas penas que se fundiam  sensíveis à uma quase totalidade do azul escuro do restante da  plumagem.

E pensando nisso eu sorri. Um sorriso amargo, de derrota, de abatimento,  como tantos outros que sorri  em minha vida.  Ortega Maciel não era exatamente um homem a quem devíamos tratar ou tê-lo  por imbecil.
E eu sentia a falta de Beth. Agora, mais que nunca.


Copirraiti  Nov2010
Véio China©

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