sábado, 24 de dezembro de 2011

Operação Tequila - The Natal -


Olho para baixo e as pessoas parecem do tamanho de brinquedos. É na sacada do 23º andar que vejo parte da minha  cidade amanhecer e depois repousar. Sento-me na espreguiçadeira e retiro um cigarro da  carteira enquanto observo as luzes natalinas cintilarem  nas janelas e varandas dos edifícios vizinhos.
Algo me incomoda. Levanto e encaminho-me para o peitoril  e novamente olho  para baixo e noto que muitas pessoas zanzam pelos jardins do nosso edifício enquanto outras rapidamente abandonam o condomínio.
É noite de Natal, noite onde cada um de nós tenta  parecer ou sugerir a ideia de ser ou estar feliz. No apartamento vizinho ouço a mesma música de anos anteriores e Simone canta "Então é Natal". Olho no relógio e os ponteiros indicam algo mais que 23 horas, e o "facto totun" diz que em  menos de uma hora champanhes serão estouradas num brinde com os votos de Feliz Natal. E as pessoas sorrirão e serão simpáticas e  trocarão presentes e abraços antes da ceia natalina ser avidamente consumida.

As pequenas lampadas multicolores continuam piscando quando amasso o cigarro no cinzeiro e volto ao bar no fundo da sala e sirvo-me de outra generosa dose do meu Ballantines. Era o meu primeiro Natal sozinho.

-Aristides, seu devasso! Por que essa falta de Deus? – A pergunta me fora feita por minha ex-mulher, um ano antes, precisamente dia 23,  antevéspera do Natal.

-Jesus! Você é uma criatura vil e pecadora! –  Nervosamente ela insista.

Naquele momento, Eleonora deixou cair pesadamente o corpo sobre o nosso sofá  de cinco lugares.
As coisas ficariam muito ruins para o meu lado; É que apenas não percebera que ela chegara em casa e adentrou o meu escritório sem que percebesse que se postou às minhas costas. E qual seria  o motivo para tanta indignação e ira? Simplesmente o que ela viu na tela do meu computador.

Ao vê-la  desfalecida preocupei-me correndo à cozinha e trazendo-lhe um copo de água gelada com algumas gotas do adoçante predileto. Auxilio o copo em sua boca que lentamente ingere o líquido. Se refaz, levanta-se ainda amparada em pernas titubeantes e procura na bolsa a cartela do Prozac; Eleonora é depressiva e viciada em comprimidos. Depois com ela em mãos  vai ao meu computador  e salva alguns arquivos e os envia diretamente para o seu e-mail. Por fim abandona o PC e caminha para o bar das sala onde escolhe a garrafa de um bom vinho do Porto. Escolhida,  ela  a passa para mim; Eleonora jamais conseguiu a suficiente força nas mãos para abrir uma daquelas. Abro e derramo a bebida em sua taça enquanto sua indiferença olha para o líquido rubro  como se fosse ele o sangue escorrido dos meus pecados. Vagarosamente leva a taça à boca e ingere uma boa dose junto de duas drágeas. Fora  pouco; Serve-se mais duas vezes antes que o corpo e  a mente se tornem refém da fluoxetina. Em menos de uma hora está completamente bêbada e dopada, porém me acostumara com aquilo.

No dia seguinte acordo com alguém tagarelando ao meu lado. Era Eleonora que convocava nossos filhos para naquela mesma noite estarem na ceia de Natal. “Precisamos tratar de assunto de vital importância ” ela  diz ao final de cada das ligação - " E por favor, não falte" -. Ela recomenda a cada um deles. Desligado o aparelho e sem me olhar ela  levanta-se da cama como o robbie ajustado ao corpo e retira-se do quarto. Sua atitude me deixou reflexivo já que desde a noite anterior ela e eu não mais trocáramos qualquer palavra.

À noite, precisamente às 20 horas lá estavam os nossos três filhos: Alessandra, 28 anos, psicóloga.  Alberto, 27 anos, advogado, e Kaic, 24 anos, grafiteiro profissional. Ah sim,  presente também Cecilia, nossa caçula de 12 anos e que morava conosco. Sobre ela é aquilo que  defino como a paixão de minha vida. Alegre, inocente, linda, infelizmente Cecília  requer atenções e cuidados especiais.
Após os cumprimentos rotineiros Eleonora se mune do seu notebook e junto dos  filhos se dirige à biblioteca anexa à sala de estar; A reunião tinha o seu início apesar de não compreender a necessidade de  Cecília estar entre eles. A bem da verdade, assim que a porta foi fechada  um pressentimento dos piores se instalou em mim.

Passados talvez uns 30 minutos eles saem com feições carregadas tal qual a minha premonição, exceto os largos risos de Cecília, provavelmente sem compreender o motivo de tanta alegria.  Colocados diante de mim Alessandra convida-me à sala de estar,  talvez por ser a filha mais velha. Como era de se esperar o seu ranço autoritário  assume o comando e ela  exerce aquilo que pude deduzir como perícia psicológica.  Pelo jeito o veredicto seria pronunciado.

- Papai, você sabia... - Ela começa empurrando para cima os óculos que deslizam pelo nariz - ...que meus amigos psicanalistas comentam que hoje em dia o sentido de culpabilidade dos pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção de pretender o prazer? - Nesse ponto ela assume um tom professoral. Aí finaliza entregando-me o troféu " A carapuça do ano" - Agora, assim como o senhor as pessoas não mais se sentem culpadas quando têm prazeres ilícitos ou infiéis, e...

Deus! Eu não suportava aquele blábláblá acadêmico. Seguramente  o que me irritava em Alessandra era aquele fanatismo por Freud, Lacan e tantos outros.  Para mim e sem exceções eram  uns desajustados.
Eu olhava Alessandra e ouvia-lhe a voz e assumia que eu fora um dos responsáveis por sua mocidade enfiada em livros acadêmicos  e nas salas de aulas de duas faculdades. Terminadas ambas sobraram-lhe responsabilidades mas, faltaram as alegrias de um bom casameto e um par de filho brincando num play ground qualquer. Aliás,  houve o casamento, porém, outro dos seus enganos.
Eu persistia o olhar nos seus lábios carnudos e percebia claramente  que a solidão cobrava o seu preço ao deixar-lhe a alternativa dum próprio e concorrido consultório na charmosa  Avenida Europa. Aliás, eu sabia muito mais sobre o seu sucesso; Ricos, como três mais três são seis, sempre supusseram-se problemáticos; Óbvio que a tese jamais se aplicaria a mim, um rico de raízes humildes e dos pés e mãos fincados em terras de produção de laranjas.  Sendo assim, Alessandra nada poderia trazer que me fizesse modificar a postura ou alterar a visão que eu tinha da vida e dos problemas que enfrentávamos.

Porém não era somente Alê a dona de todas as verdades desse mundo caótico. Agora era chegada a vez de Alberto, um rapagão de  inteligente rara, mas de tão baixa- estima como a  de se tornar atormentado pela traição de Claudia, sua ex- noiva, roubada por seu melhor amigo e bem debaixo de suas lentes esverdeadas.  Após veio o cancelamento de um casamento que tinha tudo para ser pomposo. Lembro-me que naqueles dias, amargurado,  apegára-se à mãe como se ela pudesse protegê-lo mais essa vez  e evitar que seus  olhos marejassem além do sugerido pelo bom senso.
Portanto com aquilo que ele poderia supor como "coincidências"  é que chegou a sua vez. Sem dúvida que defenderia a mãe a qualquer preço, ainda mais agora  preso pelo cordão umbilical.

- Papai, na separação judicial litigiosa o cônjuge protagonista da separação tem que comprovar os motivos elencados no artigo 5.o da Lei do Divórcio - E pelo jeito foi nisso que o senhor incorreu; em grave conduta de desonra...

Ainda com a severidade citou que o artigo estabelecia que a separação judicial devia ser pedida por um dos cônjuges quando esse imputasse ao outro a conduta desonrosa ou que importasse em grave violação dos deveres do casamento... - Nesse instante ele faz uma pausa, dessas que tentam impressionar o corpo de jurados para uma sentença favorável; Provavelmente para ele ali não estava o pai, mas sim o réu.

Por fim acusou-me de permitir que a situação chegasse nesse ponto de incompatibilidade. E ele estava certo. Era esse o preço a ser pago por ter sido pego com a “boca na botija”.  Poxa vida!  Por que Eleonora aparecera naquela hora?

Foi o instante que a eloqüência jurídica de Alberto foi abortada por Kaic. Ah! Ele também necessitava tirar uma lasca do pobre Aristides. Porém, o que Kaic poderia me dizer? Justo ele, um sujeito de vida tão aparvalhada, envolvido com escândalos, meretrizes e boemia?
E ele disse o previsível,  porém de forma bem menos sofisticada que os irmãos:
-
-Aí  velho! To sabendo do teu Hip Hop com a gringa do MSN. Pelo jeito tua casa caiu! O que você fez foi crocodilagem das grandes. Ainda mais porque a mãe te pegou. Sabe mano, esse lance de pretender ser Freestyle não combina com você!

Despejou de forma jocosa. Eu sentia o seu sarcasmo ante os implacáveis olhos de Eleonora.
Após, simulou calma voltando- se para a mãe num tom demasiadamente forçado, desses que por  mais que nao queiramos acabam por soar falso.

-Sabe mãinha...Se esse lance tivesse sido comigo eu chamava os Ratos de cinza. Olha minha mãe, saiba que sempre estarei no mil grau contigo. Pode confiar! - Para finalizar abrandou a voz - Apesar de que às vezes você minha mãe parece-me algo "Wilde style", porém isso não quer dizer que  te considere uma Toy -

Eleonora, perplexa,  olhou para ele e não emitiu qualquer comentário. Da minha parte freei a vontade de rir, afinal, não um bom momento. Ah sim, sobre Kaic apenas a elucidação que passou duas temporadas grafitando murais de Salvador. Portanto o “meu rei” e “mãinha” eram mais que justificáveis.

Naquela mesma noite fiquei matutando sobre o seu palavreado de maneirismos e a curiosidade  fez-me procurar na internet alguns desses significados do universo hip hop. E encontrando algumas traduções  consegui compreender o recado que o "Brow" nos dera, principalmente sobre os tais  “Ratos Cinza” que significavam o uso de força policial. Depois, na parte mais amena me julgou um "free"  no “Freestyle” ou seja; um sujeito libertino, porém muita responsabilidade.  
A parte que coubera à Eleonora se encaminhou com mais suavidade, já que “Wild style” é alguém que não se faz entender por completo, e “Toy” que condiz com a pessoa que não faz o mal, que não é má e nem pretende prejudicar alguém.

Terminada as colocações  Eleonora pigarreia e depois de certa que a garganta encontra-se limpa e que sua voz soaria será audível, dirige-se para mim. A sua feição é dura, e a voz também.

-Aristides, eu quero o divórcio! Ouço o seu pedido com a máxima atenção.

-Sim, eu dou! - Concordo. Era mais que sabido que o nosso casamento vivia de indifrenças e horas extras.

-Aristides, também pretendo ficar com a casa – Ela diz apontando o indicador para o piso de jacarndá.

-Claro! Tudo bem. –  Aceito. Pelo jeito a primeira parte do acordo estava am andamento.

Depois dos advogados veio o acordo  dos bens, o valor da pensão pensão judicial e a necessária paz para estar  neste apartamento de quatro quartos e três suítes encontrado às pressas. Apartamento que não me exime da análise de nossa vida e da probabilidade do casamento ter feito água após o nascimento de Cecília. E concluo dessa forma porque sempre nos fora  difícil aceitar que ela era um bebe dotado de excepcionalidade. É é mais que provavel que até hoje culpemos um ao outro pela gravidez  fora de tempo e imprevista.  Contudo,  depois de constatada a tal anomalia tentamos a fé,  promessas, ofertórios e tudo que um bom cristão possa imaginar.  Lembro até que num rompante da crença fomos à Aparecida do Norte certos de  que providências divinas seriam tomadas e elas  livrariam o nosso anjo de toda e qualquer imperfeição.  Não deu certo e nem a foi a fé que faltou; Talvez Deus tivesse outros planos para nossa garotinha.

Daí em diante eu me vi desmoronado nos caminhos do Senhor. Eleonora não, contrária, se apegou á Deus na espera que ainda se operasse o milagre.  E não fora unicamente a Deus que ela se apegou, mas  também aos ansiolíticos e o vício da bebida. E isso isolava nossa vida comum que aos poucos deixava de ter coisas em comum; Eu ia ao futebol, ela, à missa. Ao jantares e comemorações, ela, às novenas. Eu precisava de sexo, eventual, porém ela abraçara o celibato apesar de se permitir uma vez ou outra, aliás, talvez nem fosse ela, mas sim a bebida.
E o que já não vinha bem piorou quando insistiu em colocar um imenso quadro de Cristo defronte à nossa cama. E mesmo bêbada já não me permitia ver partes do seu corpo e nem sentir o cheiro bom dos seus perfumes de mulher. Ainda tentei por quatro ou cinco vezes fazer  amor diante da imagem santa. Porém a frieza  de Eleonora aliada aos espetaculares olhos do filho de Deus freavam toda e qualquer iniciativa. Por vezes eu fitava o azul dos olhos  e eles parecia um oceano ameaçador; Sempre tive para mim que os olhos  daquela tonalidade eram mais desafiadores e penetrantes dos que quaisquer outros. Assim, com pouca intimidade eu e Cristo também fomos  nos afastando e tornando-nos indiferentes ao outro.
Quanto a mim e a Eleonora os nossos  antigos traços de intimidade cúmplice foram exaurindo  até se extirparem de vez. Não restara mais nada. Não havia conversas, críticas ou incentivos, mas apenas a indiferença, a bebida e os ansiolíticos. Lembro duma vez que vendo o barco naufragar tentei uma conversa com Jesus quando disse : “Ei filho de  Deus, você pactua com tudo o que está acontecendo?” - Como resposta eu só obtive o exuberante olhar azul além do temor que ele me causava.

E assim,   meio que sem eira e nem beira é que fui me afastando de Eleonora até chegar àquilo que os experts em internet taxam de "SECOND LIFE" -  Ou seja uma outra vida,  virtual -  Na época recordo-me que pouco conhecia desse mundo virtul,  fato que persistiu até que o chefe do RH da empresa me ensinou os caminhos e eu comecei a navegar. Foi com ele que descobri as salas de bate-papo, que aprendi a interagir com as pessoas e esquecer-me um pouco da solidão. E essa vida virtul acentou-se quando Eleonora mudou-se para um outro quarto vago sob a alegação de que eu roncava e que isso não a deixava dormir, numa argumentação estranha já que eu roncara por toda uma vida.  Com os corpos e quartos separados comecei a usar a internet de forma intensa e descobrir outros sites de relacionamentos. E foi num daqueles que conheci Tâmara, a “gringa do MSN”.  Á princípio meu relacionamento com aquela mulher 15 anos mais nova foi cordial e respeitoso. Entretanto, o tempo e a carência que esbofeteiam as faces dos solitários fizeram- nos aproximar até tornarmo-nos tão íntimos quanto cúmplices naquele nosso novo jogo; o sexo virtual, o qual, infelizmente foi presenciado por Eleonora naquela ocasião.

E aqui estou na solitude desta noite de Natal. Eu gostaria muito  mas,  Tâmara não poderá estar comigo já que está às voltas com um casamento tão fracassado quanto o meu. Enfim,  ela é persistente e aguarda o milagre num marido que a valorize, corteje e que ache o seu corpo e sexo mais atraente que aqueles que lhes são dados de forma gratuita ou que o seu dinheiro tenha que comprar. Enquanto o milagre  não se realiza, Tâmara insiste na crença das mudanças fazendo que não percebe o sentimento que nutro por ela.  E eu não tenho pressa, pois a precipitação nunca foi e jamais será o meu forte. Não vou forçá-la e nem pressioná-la, mas chegará o dia que ela notará que o seu jogo de canastras foi vencido mas,  que não foi por ela. E é desse jeito que aguardo o desfecho de mais uma novela,  uma mais às tantas que a vida sempre nos impõe.

É nisso que penso  quando ouço um "plim plim" distante que me avisa que o peru á Califórnia está no ponto . Vou á cozinha e retiro do microondas uma dessas embalagens prontas que comprei numa rotisserie próxima de casa. Acomodo no aparelho uma porção de arroz para ser aquecida e vou ao refrigerador  retirar a travessa de salpicão de frango e uma torta de amoras.
Não passam  mais que 10 minutos e a mesa está posta e será acompanhada duma imprevisível garrafa de Tequila. Sim, sei que pode parecer absurdo, mas dei preferência a acidez da Tequila que ganhei de um amigo mexicano. Olho para a bonita embalagem que trazia um pequeno copo estilizado e o retiro da caixa colocando-o sobre a mesa.

Cravo o olhar no relógio e penso que o bom velhinho bem que poderia estar descendo pela tubulação do exaustor. Insisto na imaginação e sorrio; Sim! Mas o que poderíamos dar de presente um ao outro? Talvez um bom scotch de 25 anos?  Uma vodka polonesa ou russa?   Eu reflito sobre a sabedoria daquele olhar de quem tem sobrevivido aos séculos e  tento supô-lo-o safado, passando a mão no rabo da estarrecida  Matilde ,minha fanática empregada evangélica - "O sangue de Cristo tem poder! Aos quintos dos infernos satanás barbudo!" - Ela o excomunga enquanto o bom velhinho mescla os infinitos “HO HO HO”  aos ébrios soluços da bebida.....

Continuo a escapulir de mim e persito delirando enquanto outros devaneios me tomam  a mente  levando-me a questões absurdas e insólitas. -  Será que algum dia Papai Noel ficou de pileque? - Sem qualquer indício ou pista eu abro a  Tequila e abasteço meu copo duma dose farta que me queima as estranhas ao percorrer um emaranhados de capilares - E se eu e o velho Noel convencêssemos algumas garotas “da noite” para nos brindarem com um “pulling dance”?  Heim? - Dessa vez aquilo que há de devasso em mim o imagina  excitado  num momento que suor lhe banha o rosto e o óculos tal qual o de Alessandra desliza no  nariz de tez oleosa.  Porém Papai Noel é íntegro e  perturbado com  a proposta não permite que elas se dispam, abortando assim a pecaminosa dança - “HO HO HO” -  O bom velho brada ao colocar-se ao lado do seu véiculo de  ilusões  -  “Entrem garotas.Todos nos esperam!" -   Ele as convida  para uma volta ao redor do mundo no trenó encantado – “Há muito trabalho para fazermos!” –  Bonachão ele brada para elas ciente de que não está solitário, agora. Elas se mostram surpresas e aceitando o pedido tomam seus assentos - “ HO HO HO. ADIANTE!” - Ele ordena assumindo as rédeas, incentivando  suas renas para o  alucinante voo  daquele serviço que executa com  a mesma presteza de sempre . - "HO HO HO” - Eu o vejo feliz ao zarpar  com destino à imensidão do nada; Ele  sabe que nesse dia o Planeta lhe pertence. E ele vara o espaço e seus "HO HO HO"  ecoam pelo universo, de polo a polo, de mar a mar até riscarem todos os ceus e à tempo de se livrar de todos os seus embrulhos. E eles, um a um são jogados por todos os cantos diante das garotas  que gargalham depravadas enquanto suas  saias, la no alto , deixam à mostra nacos de suas coxas alvas e indecentes....

- Ou Ou Ou......... - Acorda-te Aristides! Ordeno para o pouco que há de sóbrio em mim,  incrédulo das minhas tantas sandices quando o telefone chama. E eu olho para ele que nervosamente reverbera em meus ouvidos num claro sinal que não pretende parar. Com alguma  dificuldade motora saio trançando as pernas e  vou atendê-lo; Eu precisava dar um fim naquilo.

-Alôuuuu! É o  papai? – Eu reconheço a puerilidade da voz da minha garotinha.

-É claro que é o papai, filha! Estou morrendo de saudades de você! – Respondo, feliz. Ao fundo e do outro lado ouço a voz de Simone numa antiga canção de Natal. Emociono-me.

-Papai, sabe de uma coisa? -

-Não filha! O que?

Silêncio do outro lado. Aos poucos percebo o estralos de sua língua ao encontro do céu da boca; Geralmente ela o fazia quando algo a excitava ou a deixava ansiosa.

-Papai, você sabia que amo você? – Ela confessa, pura e delicada como sempre.

-Claro que sabia! O papai também te ama muito, filha! – Eu fazia o possível para renegar as gotas que ameaçavam brotar abaixo das pálpebras.

-Papai? - Ela pergunta continuando a estalar a boca.

-Sim filha!

-Sabe que acho o senhor muito “espétinho”?  – Eu sorri; Cecília sempre teve dificuldade com essa palavra. Certamente ela pretendeu falar “espertinho”

- Eu sou sim! E você sabe o que é? Você é o meu chocolate branco, a minha doce paixãooooooooooo! – Prolongo a sílaba final; Cecília adorava quando eu lhe falava daquele jeito.

-Papai...Eu sinto muito a sua falta, viu?  Um Feliz Natal pro senhor! - Ela conclui.

Em seguida a ouço desligar do telefone. Repentinamente, como se fosse uma onda extraordinária sinto-me invadido por uma sensação melancólica que agora não me polpa as lágrimas. Tento bancar o durão e dispenso-me de usar guardanapo da mesa e procuro me afogar em outras recordações quando percebo o resto do whisky deixado no copo ao lado do da Tequila – “Sim cara! Você bebeu muito, muito!” - Confesso cheio de repreensões - "Seu maledeto! Pretende acabar comigo?" -  Brigo com aquele dedo de ótimo malte. Eu continuo a olhar para o líquido como se me devesse algum pedido de desculpa. Naturalmente, nao houve qualquer resposta -  Talvez o Sr. Ballantines não pretendesse perder o seu tempo comigo....

Lá fora, agora,  a algazarra é intensa  e  gritos de comemoração são ouvidos enquanto e o céu se colore do espocar dos fogos. Vou à varanda e clarões de todas as matizes riscam o céu  deixando  rastros duma homenagem mais que merecida. Olho para a noite tão diferente de todas  e tudo me parece dotado de racionalidade e lógica. Continuo olhando para aquelas cintilações multicolores e sei que em tudo há a esperança  tanto quanto existe o bem e o mal, o amor e o ódio,  o negro e o branco. Retorno para a cozinha e tomo  o meu lugar à mesa e sorvo mais uma Tequila que desce queimando como as abrasivas cascaveis dos desertos mexicanos. Uma a uma trago na minha direção as travessas da ceia e sirvo num prato de dimensão avantajada um pouco de arroz, uma colher do salpicão, farofa e um bom pedaço do do peru à Califórnia. Tudo me parecia estar muito bom.

"Ho Ho Ho!" Feliz Natal, Aristides! - É como se a quimera ouvisse diante a fantasia dos meus olhos que flagrava o bom Noel saindo pela tubulação e despencando pela coifa. Insisto no duto  branco  duma tinta martelada à espera dum milagre igual o de Cristo ao multiplicar os pães e dividir o vinho. Insisto mais um pouco e nada acontece e jamais acontecerá. Fixo a mão que segura aquele copo de formato estranho e o sujeito de vidro mais me parece um dos  muitos cucarachas que se perdem de sua terra assim como distancio-me dos meus. E a cena  parece fazer algum sentido e mesmo sem  a noção exata do que faço ergo o copo num brinde vazio: "Feliz Natal, Aristides!" -  A mão ainda o mantém no topo quando patético volto o braço e recoloco o copo sobre a mesa. Sem saber se é o momento da ceia olho para o prato e todas aquelas travessas de prataria e observo um pouco mais além a sobremesa que repousa incauta na  toalha de rendas brancas. Como se hipinotizado atenho-me nela e noto que no  alto  amoras graúdas  duma coloração rubra imergem numa calda encorpada e de um vermelho menos intenso. Persito no olhar à procura dos mais ínfimos dos seus detalhes e percebo que há beleza ali,  há poesia e finalmente há o amor. E um a um aqueles sentimentos e sensações se avolumam e me confundem  transportando-me para a questão que o momento  torna crucial; Nao poderia a vida ser tão descomplicada quanto àquela torta de amoras? - Penso naquilo por uns bons 20 segundos ante os dedos que novamente irão manchar o copo mexicano.

-Talvez...talvez, Aristides - Foi a única resposta encontrada ao completá-lo com Tequila  enquanto  la fora a vida persistia em festas e num oceano de esperanças.


Copirraiti 24Dez2011
Véio China©

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Your Song - Uma canção -


Eu estava em casa com o olhar cravado no infinito enquanto o pulso girava o copo e juntamente as pedras de gelo no seu interior. O líquido de tonalidade ferrugem se digladiava com os cubos de gelo, e esses se debatiam chocando-se contra as paredes de cristal e produziam  silvos que lembravam os guizos de cascavel  Eu pensava no nada enquanto continuava emborcando um Jack Daniels, e mastigava algumas uvas passas secas que encontrara num pequeno pacote na porta do refrigerador.

O que mais restaria a fazer se não beber?
Naquele dia o meu espírito acordara tenso e nem ele e nem eu fomos para o escritório, afinal,  algo de um apelo nostálgico me fazia permanecer ali. Lentamente e ainda com o copo na mão me dirigi  para o system num canto da sala e coloquei um antigo CD do Neil Diamond que há anos não ouvia. Os primeiros acordes de “September Morn” sempre desafiavam o que poderia existir de sensato em mim. E com a suavidade dos tons vieram as recordações de quando ouvi a canção pela primeira vez. À época ela me fragilizou e chorei de um jeito doído,  ininterrupto, apesar de jamais saber o por que.

Lembro também que ao fim  o pranto cedeu e eu apenas sorri, pois quem me visse naquele estado de melancolia poderia imaginar que estivesse passando por problemas emocionais. Talvez nem isso, mas sim que pensassem que ali estaria um verdadeiro fraco, pois para a maioria jamais faria sentido que um sujeito passado dos 50 estivesse envolto em  tristezas sem saber o por que ou o  motivo da dor.

Porém e agora e novamente a voz de Mr. Diamond me colocava em xeque e ele parecia não dar a mínima para as minhas sensações e persistia cantando com sua voz aveluda, trazendo-me um idêntico choro como se eu persistisse  na criança birrenta ou no ateu em ato da conversão. Talvez  essa nova  sensação de melancolia fosse importante e necessária para abrandar a dureza do meu espírito – Pensei -   Então só me restou torcer para que aqueles momentos levassem embora e de vez o anonimato das minhas mágoas..

E essas eram minhas reflexões quando toca o celular e ele me devolve a vida:

-Por favor, é o doutor Adriano? – Pergunta a uma voz feminina, suave, quase sussurrada.

-Pois não! É ele mesmo – Confirmei esfregando a manga da camisa num dos olhos. Depois mudando o celular de mão rocei o punho no outro olho.

-Doutor, aqui é a Claudia Sabino. Desculpe estar ligando no seu celular. É que fui indicada por um amigo; o senhor Paulo Herberth.  O senhor conhece?

Sim. Eu conhecia o Paulo Herberth. Eu o havia defendido com sucesso numa ação movida por um ex-funcionário seu com mais de 20 anos de casa e que pretendia arrancar-lhe o couro. Antes mesmo de lhe confirmar, ela interrompe:

-Doutor, é possível marcarmos um encontro para hoje? É urgente e estou muito aflita!

-Claro, dona Claudia! Às 17,30 no meu escritório. Pode ser? – Perguntei –

-Sim, fico grata! - Diante a sua concordância passei-lhe o meu endereço. Então ela se despediu e desligou.

Algo me incomodava naquela voz. Era delicada demais, sensual demais. Desligando o aparelho ainda mantive o tom da voz em minha mente. Como seria ela? Loira, morena, ruiva, negra, mestiça?
Pensando no fato e ainda com o aparelho em mão ligo para Carolina. Carolina era a minha secretária.

-Carolina, boa tarde! – Sem dar-lhe o tempo para que relatasse tudo que acontecera naquela manhã, continuo – Por favor, dê uma ajeitadinha na minha sala que tenho uma cliente às 17,30.

-Ihhh, eu já sabia! Quando o doutor telefona e pede pra arrumar a sala, sei que tem rabo de saia por detrás! Aposto que será com uma que ligou aqui com voz de manteiga.

-Deixou o nome, Carolina? –

-Deixou sim, doutor! É uma tal de Claudia. Eu disse que o senhor não estava. E então a abusada urgenciou em responder... “Pode deixar moça, aqui no cartão também menciona o número do celular. Eu tentarei ligar, obrigada!” - E depois desligou, Carolina relata com um tom de voz incomodado.

- Ah Carolina, me poupe! Esqueça essa conversa de rabo de saia e faça somente o que te peço. Por favor, ok?

Bem... Esse era o meu tributo a ser pago, afinal, Carolina era minha  funcionária há mais de 18 anos. E evidente, decorrido tanto tempo o que sobrevivia não era a secretária, mas alguém tão próximo como uma irmã que se dá ao direito de palpitar na vida do irmão. Por vezes eu tinha quase a certeza que não se tratava de ciúme, mas de excesso de proteção.


-Ah, doutor! É bom que o senhor tenha muita calma e prevenção nessas horas! Como dizia minha finada avó; Canja de galinha e caldo de mocotó não faz mal a ninguém. E ainda mais por que o senhor porque não deve ter esquecido aquela situação lamentável e onde sofreu nas mãos da lambisgoia loira, uma perfeita cabeça de vento que nuca soube o que quis.

-Para com isso Carolina!  Por favor, poupe-me novamente. Diga só se entendeu o que te pedi! - Interrompi irritado dessa vez.

Era sempre assim. A princípio Carolina sentia a seriedade do meu tom de voz, e se a conhecia bem há essa hora ele devia estar mexendo em papéis em cima da minha mesa, pensando, bolando um jeito de retornar à carga:

-Entendi sim, doutor! E torço para que o senhor não caia nas garras daquelas de boca carnuda e bumbum arrebitado – A resposta veio como imaginei. Eu a conhecia bem.

-Ara! Para Carolina! Que bobagem! – Respondi rindo. Jesus Cristo, não deveria ter dado nova abertura. E lá vem ela:

-Bobagem? Bobagem uma ova! Parece que o doutor tem verdadeiro fascínio por mulheres lascivas e de formas, digamos... arredondadas –

Devolveu num tom debochado, chacoalhando ambas as mãos na frente dos seus seios, insinuando a minha preferência por mulheres com peitos enormes. Tive vontade continuar rindo, mas agora era o meu momento de irritá-la. Era nervosa que ela queria ficar? Pois bem, eu a satisfaria:

-Calma Carolina! Dessa vez um pressentimento me diz que a próxima será um verdadeiro anjo e que me amará por toda a vida - Mal termino a frase e já imagino Carolina com os olhos arregalados. Então, finalizo:

-Mas te prometo Carolina! Se a que vier não ostentar um belo par de asas enviamos ela diretamente pros quintos do inferno. Prometo, ta! – Brinquei com ela antes de desligarmos o telefone.

-Sei... sei – Foi a sua última resposta.

O que teria sido a minha vida se não fosse Carolina?  Nada de importante! Absolutamente nada! Ela sabia aonde encontrar cada linha dos meus processos, cada um dos meus cheques, dos meus saldos bancários,  aplicações, compromissos e fundamentalmente os insuportáveis cartões de crédito. Enfim, sem Carolina eu seria um absoluto nada.

Abandono o celular e  me dirijo ao banheiro onde tomo uma ducha e faço a barba. Pontualmente as 16,30 o elevador me deixa no andar do escritório. Entro no conjunto e um cheiro de frescor invade meus pulmões. Um odor ótimo, algo silvestre, amazônico; Carolina caprichara dessa vez.
Ela me vê entrar e nada fala. Eu percebo a sua indiferença no olhar, e ele me ignora. Eu  a provoco com o mesmo silêncio das brincadeiras de infância - “Vaca amarela” – Lembram-se? Sorrio - Acredito que estivéssemos participando de um jogo de atitudes pensadas, algo próximo ao ensaio dos exímios enxadristas. Por fim ela abre a brecha para que se quebre o gelo.

-O doutor gostou do cheirinho? – Pergunta deslizando o indicador pela mobília como se querendo mostrar a eficiente limpeza e a remoção do pó.

-Ótimo Carolina! Ficou ótimo! – Concordei levantando o polegar num sinal de positiva.

Ela sorriu. Um sorriso bom, de agradecimento, daquele de quem sabe que está protegendo a sua cria.
Eu gostava de vê-la sorrindo, e então, por alguns instantes fiquei estático e apenas olhando para ela; o que teria acontecido com Carolina que não encontrara seu par nessa vida? Uma vida que eu testemunhava, árdua, de trabalho, sem família ou um par de filhos para se matricular na escola.

Fiquei adormecido nessas questões, e elas me propuseram uma volta ao tempo.  Recordei a primeira vez que a vi. Foi no dia da entrevista. Na época eu estava com 30 e tantos, formado há mais de dez,  e necessitando de alguém que tomasse conta da revolução que era o meu escritório. Estava numa fase promissora, de muitos clientes e dos sonhos que não se exauriam ao advogar causas, algumas importantes, por vezes movendo valores extraordinários  e que requeriam estratégias miraculosas. E por um algum tempo elas perduraram, todavia a minha resoluta desorganização emperrava aquilo que poderia estar sendo muito maior. Relembro bem daquele dia da entrevista.
E é como se eu possa vê-la sentada à minha frente; jovem, talvez uns 22, 23 anos, olhar tímido, aparência ingênua e decorada num vestido floral  justo nos quadris e que valorizava estupendamente as linhas milimétricas de um corpo delicado. Inexperiente, ela vinha de uma cidade do oeste paulista e  hospedara-se na casa duma tia à procura de alguma chance, óbvio, inexistente em sua cidade e  região.  Ao fim da conversa, gostando daquele olhar sincero e percebendo nela inteligência além do sotaque deliciosamente interiorano acabei por contratá-la.
Não demorou e ela me raptou das lembranças.

-Doutor, tenha muito cuidado com essas clientes de hoje em dia. Muitas delas são donas de olhares singelos,  pernas sensuais, mas são completamente caloteiras! –  Me adverte.

-Ara sô! Larga de besteira, Carolina! –  Eu ri. Agora não sabia se era ciúme ou proteção.

Entrei na minha sala e lhe sorri agradecido.  Por mais que Carolina batalhasse para manter a ordem sobre a minha mesa, por lá se avolumavam cópias e cópias de processos e muitos deles com anotações aos pés das páginas, observações essas que ressaltavam aquilo que achava importante. Depois de posse do conjunto de informações revia os processos e tabulava contestações. Contudo a vida de um profissional da lei jamais se compôs de sucessos nos sorrisos da vitória em tribunais. Não, não é, pois nesta vida de advogado também se inserem as derrotas que, sacramentadas,  nos fazem avaliar os vícios profissionais,  os erros cometidos em cada linha da defensa ou de acusação. Porém, muitos dos meus insucessos não permitiram que os mesmos enganos e erros  fossem cometidos numa próxima vez.
E na verdade,  eu me orgulhava mais dos  meus fracassos aos triunfos. Com eles aprendi que sempre teremos a possibilidade de irmos para o alto  mesmo que o momento da derrota nos amargue a boca, e o que é literalmente o oposto ao triunfo onde espocam os sorrisos falsos e tapinhas de amigo urso nas costas. Sim, a vitória te acaricia ego, mas ela não te sobe, te estaciona, ou quando não te leva ladeira abaixo.  E por vezes a descida  poderá ser tão cruel e vertiginosa que abalará a autoconfiança, a eficiência, tornando-nos, se não houver estrutura, náufragos de nós mesmos.

-O doutor não quer um café? – Carolina interrompe novamente meus pensamentos na tentativa de  injetar-me algum ânimo. Isso era normal nela, pois sempre que me via circunspecto imaginava dificuldades.

Bem, dela nada se escondia, e ela conhecia todos os meus olhares, expressões, meus assobios ansiosos, talvez até mais que a sua própria imagem refletida ao espelho. Ante sua gentileza faço um sinal afirmativo. Decorridos menos de 10 minutos lá estava o cafezinho, fresco, saboroso, misturado ao aroma de limpeza.  Ela serviu o meu, o seu,  e sentou-se à minha frente  com a persistência no olhar; Talvez o seu pressentimento de mulher  dissesse que algo não estava bem comigo. Ficamos nos olhando, quando pela primeira vez a vejo,  não com olhos do patrão, do amigo, mas sim com o olhar do  homem que também busca respostas. E ela me olha castanho-claro num olhar que ainda traz um ranço de menina e que consegue enxergar coisas que não mais vejo. E eu fico fitando a sua expressão e sinto consternação por aquelas contas que se adornam em discretas olheiras. E a pena é uma só, pois as chegar à minha vida eu estava muito encantado com o sucesso, com mulheres que me procuravam insistentemente e em relacionamentos que nunca me levaram a lugar algum, ao contrário. E hoje estou aqui, e sinto que o tempo de nossa convivência solidificou em mim um sentimento que se nutre por irmão, de sangue. Portanto, não havia lacuna para ela em minha realidade, nem ao menos nos devaneios que por vezes tentava manter por ela. Para mim era como se eu não mais pudesse encará-la no na manhã seguinte se, por acaso, eu a levasse para uma noitada em minha casa ou numa cama de motel.
Novamente Carolina me retira do poço das divagações.

-Tenho certeza que é a solidão que te corrói. A solidão e um misto de nostalgia e melancolia... não é? –  Carolina perguntou. A voz era dócil e seus olhos cintilavam ternura. Ela percebeu o meu desconforto.

A pergunta intimista veio à queima roupa, uma flecha no centro da maçã. Aliás, não era uma pergunta, e sim a confirmação. Ali não era a funcionaria que me questionava, mas sim a mulher que agora tocava no meu calcanhar de Aquiles, um dedo na  ferida que há muito estava aberta e não cicatrizava.
Eu era apenas um ser humano e que apesar de vários relacionamentos ainda não tinha encontrado um amor a ser perpetuado.
E isso me incomodava, aborrecia. Todavia a sua questão ficaria sem resposta já que ouvíamos os sons dos pequenos sinos afixados na parte interna da porta de entrada. Era o aviso que havia gente adentrando o escritório. Carolina levantou-se apressada, recolheu as xícaras, ajeitou seus cabelos com as mãos e rumou à recepção. Ali da minha mesa ouvi a  grave tonalidade de voz da minha secretária e um timbre feminino e que não me pareceu desconhecido:

-Um minuto, por favor! O Doutor Adriano já irá atendê-la. - Eu reconhecia o timbre; Era a moça do celular. Algo me disse que, repentinamente Carolina se sentiu irritada. Em seguida passos da minha secretária chegaram à minha sala.

-Doutor, a senhora Claudia Sabino está aqui para a reunião das 17,30 –  Sua voz soava austera, contrariada, combinando perfeitamente  com o seu lindo e aborrecido olhar castanho.

- Peça-a para entrar, por favor, Carolina! – Pedi desviando-me do seu olhar.

E assim que Claudia entrou, estremeci. Estremeci por tanta beleza. Simpaticíssima e gentil conversamos por um bom tempo; era como se nos conhecêssemos há anos. Ela trouxera as divergências de sua empresa com uma multinacional de cosméticos que a acionara por espionagem industrial; A concorrente pretendia provar que a fórmula de um produto anti-rugas da empresa da minha cliente fora copiada do seu laboratório. Evidente, a empresa de Claudia se antecipou à multinacional, e o produto obteve  ótima recepção no mercado dos “pés de galinha”. Evidente que contribuiu o fato do seu produto ter um preço bem melhor que da concorrente multinacional

- O que eles questionam, procede, dona Claudia? – Perguntei. Talvez eu quisesse saber se defenderia uma impostora.

-Jamais doutor! Nunca roubaria nada de ninguém! - Protestou. A fórmula é de um químico que trabalha há muitos anos para nós - Justificou-se - Depois sorriu calmamente e solicitou: -Doutor, retire o “dona”, por favor –

Era o que eu pretendia ouvir. Ao bem da verdade e no momento tanto a pergunta quanto a resposta me pareceram inócuas, pois eu a defenderia a qualquer preço. Aquela mulher viera pra chacoalhar a minha vida, pois ao colocar o seu lindo traseiro no banco de couro da poltrona à minha frente fizera meu peito arfar. Repentinamente senti o coração pulsando na  boca, e nela não encontrei qualquer indício e nem os exageros apontados por Carolina. Havia sim a doçura de um anjo, cabelos negros, morena, voz macia e uma postura tão suave quanto às porcelanas chinesas. Tive até receio em quebrá-la se a tocasse com as minhas mãos.
E ela continuava a me olhar e a sorrir daquele seu jeito mágico, devastador, levando-me a acreditar que, depois de juntos por quase duas horas seria capaz de segui-la insanamente, acompanhá-la até os quintos do inferno se fosse necessário. E aquilo me assustava.

Terminada a reunião trocamos outros números de telefones e  nos despedimos com um demorado aperto de mãos, excesso meu, óbvio. Por outro lado ela também deixou transparecer certa receptividade. Assim que ela saiu deixou impregnado em mim e na sala um cheiro de perfume de mulher, doce, insinuante, e o que me fez viajar na cauda de um sonho; Talvez estivesse ali a mudança das mesmices cotidianas, dos relacionamentos com mulheres que, apesar de interessantes  nada me trouxeram de novo, atolado que sempre estive nas  profundas incertezas dos amores. Com ela a sensação foi diferente; O olhar exalava tanta vida, esperança,  romance e a ponto de vislumbrar o amor e o jovem apaixonado que um dia fui. Eu me via susceptível á ela, escancarado. Era como num jogo de poker,  onde teria que arriscar todas as minhas fichas se fosse para ganhar. Evidente, sempre existiria a possibilidade dum blefe e o risco, afinal, jogos e amores trazem apenas dois resultados, vitórias e derrotas.
E é e sempre será assim com tudo. É assim quando se arrisca  nas bolsas de valores ou num manobrista de boate. É assim quando saímos de nossas casas sem sabermos se retornaremos, enfim, corremos o risco de ter uma bala alojada ao corpo, e o pior, talvez nem fosse para nós. E é e sempre será assim quando se ama ou deixa-se de amar, e em absolutamente tudo haverá o contrato impreciso e de cláusulas indecifráveis a infinita possibilidade entre o regozijo do céu ou a queima no inferno...

-Ai, doutor Adriano, adorei   a nossa conversa!  Percebo que estarei em excelentes mãos! – Ela diz sorridente ao iniciarmos as despedias. Retribuo o sorriso ao ajeitar um calhamaço de minhas introspecções. E ambos sorridentes dirigimo-nos à recepção. De forma educada e gentil, Claudia se despede da minha secretária:

-Boa noite, dona...

-Carolina  Frydmann Steimberg! –  Carol responde secamente e sem esboçar qualquer sorriso.

Faço que não noto; Não havia a menor necessidade de Carolina fornecer seu nome todo, e só faltou fornecer o RG, CPF e o atestado de antecedentes. E então delicadamente toco no ombro de Claudia com intuito de levá-la a saída. Carolina nos olha indiscreta ao sairmos pela a porta de vidro do conjunto e rumamos a passos lentos a caminho do hall dos elevadores.
Defronte a eles olho para a placa eletrônica incrustada na parede e percebo que ela indica que o elevador que serve meu andar encontra-se no estacionado no andar térreo. Como estávamos no 28º andar avalio que demoraria uns 5 minutos até sua chegada, ainda mais por estarmos ainda em horário de encerramento das atividades comerciais. Olho para ambos os lados do corredor e não há nada ali que não seja solidão e um ar frio que indica o início da noite. Num impulso desprovido de lógica me achego próximo do seu corpo e sinto a delicada fragrância daquele avassalador perfume de mulher. Sim, eu o reconhecera na minha sala; Era o Chanel Cinco.  Discretamente  exalo o aroma e ela percebe.

-Ai doutor Adriano! É o Chanel Cinco – Diz ansiosa numa voz claudicante.

Eu sorrio e aproximo-me mais. Seus olhos negros tomavam-me de assalto e praticamente tocávamos os nossos corpos quando a enlaço pela cintura a trago ao meu encontro. O beijo foi dado, apaixonado, calmo no início e selvagem ao fim. Ao toque dos meus lábios, Claudia pareceu assustada, porém, cedeu. Eu sentia o sabor da sua boca, o toque da sua língua e o estremecimento dum corpo que se  colou ao meu. Vingava em mim  a sanidade, a loucura dos incautos pega de surpresa m encantamentos.

-Adriano, liga pra mim assim que chegar à tua casa?  – Pediu, agora sem usar o “doutor”. Aliás, não era um pedido e sim um convite  feito por alguém que ostentava um estranho e desafiador brilho no olhar

-Ligarei! – Confirmei num mesmo momento que o elevador estacionava descerrando a porta. Fiquei olhando ela entrar e provavelmente eu deveria parecer um desses ingênuos jovenzinhos acometidos pela primeira paixão ginasiana.

E desta forma ela se foi e deixou atrás de si uma das marcas de sua personalidade; o apaixonante Chanel Cinco.
Por alguns instantes permaneci olhando para a placa indicativa de andares – 27º, 26º, 25º... O elevador buscava o andar do térreo. E lá chegando e ao abrir a porta eu sabia que outros homens a estariam olhando com os mesmos olhos dos lobos. Homens que poderiam até fazer uso do seu creme anti-ruga,  agora um produto de espetacular rentabilidade envolvido numa feroz batalha judicial. Eu entrava no jogo,  e não era pra perder.

Com  firmeza de propósitos fiz-me no caminho de volta ao escritório, porém um barulho assustador me surpreendeu e fez Carolina sobressaltar da sua cadeira executiva. Eu viera tão anestesiado de sedução e por aqueles beijos que nem me dei conta que porta de vidro estava fechada. Conclusão; choquei violentamente o meu rosto contra o vidro Blindex temperado.
E foi  assim na pele do próprio Pateta que adentrei ao conjunto enquanto meus dedos acariciavam o rosto. Um rosto constrangido, idiotizado, aliás, um a mais num mundo muitos imbecis.
Passado o susto Carolina não sorriu e manteve-se sisuda ao recolher suas coisas e ajeitar a sua mesa de trabalho. Assim que conseguiu enfiar o mundo na sua bolsa de 30 centímetros de altura por 20 de profundidade atravessou a porta de vidro e se caminhou para os elevadores.

Fiquei perplexo e um tanto aborrecido, afinal, por aqueles anos todos foi uma das raras vezes que ela se foi sem despedir-se de mim - Paciência. Percebi também que nada poderia fazer - Agora sozinho, cuidadosamente travei a porta e voltava para minha sala quando ouço nervosas batidas no vidro. Retorno e  dou de cara com Carolina. Provavelmente esquecera algo – imaginei  - Abro a porta, mas ela não pretendia entrar.

-Seu cego, estúpido! Você não percebeu que ela tem celulites e seios P? – Disse-me num tom de ira. Surpreso foi que reparei que seus lábios e pálpebras tremiam.  Descarregada daquilo que necessitava  deu-me as costas e voltou para os botões  dos elevadores.

A princípio permaneci perplexo, sem ação, para depois cair numa estrondosa gargalhada; Era um blefe, pra não falar... uma mentira deslavada! Carolina, às vezes jogava pesado, mesmo sabendo que não poderia vencer.
Agitando a cabeça num divertido sinal de negação retorno à minha sala e agendo coisas  e penso em ligar para ela.  - “Calma, doutor Adriano! Ela está no meio dum trânsito irritante. Quer estragar tudo?”   - Convenço a mim e a esqueço momentaneamente o desejo. Ao sair apago todas as luzes, travo a maldita  porta de vidro e desço no mesmo elevador. Poderia ser fantasia, mas parece que ainda há nele cheiro dela e do Chanel Cinco. O elevador se movimenta e me deixa no subsolo. La, pego o carro  e abandono o edifício. Na esquina  entro num posto Skell 24 Horas que tem ao fundo uma loja conveniências.
No interior da loja passeio pelos pequenos corredores à procura de alguma novidade. Nada. Então compro apenas o trivial; cigarros, revistas e cervejas. Por fim solicito ao meu amigo empacotador que trabalha no caixa quando o funcionário responsável por ele está em horário de janta:

-Mané, por favor, 100 pratas em recarga da "Ei".

-Uai, dotô! Num vai ser os “quinzão” de sempre? – Mané pergunta surpreso.

-Não não, Mané! Entrei numa roubada aí.  Sabe... uma dessas baitas gatas? Então... dancei! E você  ouviu corretamente! São 100 reais de crédito no “Ei” –

-Mas, mas, mas  ou dotô num tem telefone fixo em casa?

-Tenho. Mas... ô Mané, esse negócio de telefone fixo é fora de moda pra se falar com uma mulher. Com celular não! Você fala deitado, vendo TV, jogando cartas. Capicce?

-Ah, é... Coisa de rico é outros quinhentos! – Ele diz na sua simplicidade linguista. Eu rio gostoso. Ele também.

Vagarosamente Mané digita os dados do meu celular na maquina enquanto eu abro uma latinha de cerveja e a viro no gargalo. Mané me olha desconfiado. Eu estava tão feliz que seria capaz de contar para ele tudo o que ocorrera naquela tarde.

“O senhor só pode ta louco, dotô!”  – Fatalmente ele sentenciaria.

Precavido e com aquele jeito de desconfiado é mais certo que Mané não seja do tipo que acredita em amor à primeira vista. Pensando em sua crítica  resolvo não arriscar e mantenho-me calado apesar do meu jogo ser insuperável.
Dessa vez eu tinha a certeza que a partida cederia ás minhas cartas.

- Royal Flush! Ganhei Mané! – Exclamo, alto e ele sobressalta e arregala os olhos.

-Qui diabo é isso, dotô? - Ele me pergunta com a sua eterna feição de dúvida. Eu poderia explicar pra ele que era a jogada vencedora dum jogo de poker.

-Ah, Mané! Deixa pra lá! –  Achei melhor não arriscar e lhe dei a piscada de todo santo dia. Mané era um cara legal, e eu gostava dele.

Em seguida pego o troco das minhas despesas e abandono a loja. Por momentos olho para trás e percebo que Mané ainda me olha e coça a cabeça. - Acho graça e sorrio e levanto o polegar direito. Ao longe ele retribui -
A caminho do carro me bate uma enorme  vontade de assobiar “Your Song”  Era uma canção de Elton John com versões diversas, mas nada que se compare com a excepcional interpretação de Rod Stewart. Diz uma parte da letra.

“E você pode dizer a todos que esta é sua canção
Pode ser bastante simples, mas agora que está feito
Eu espero que você não se importe”

Continuo assobiando a canção para uma noite que se abre excitada quanto um  belo par de coxas no aguardo do verdadeiro amor. Entro no meu carro, acendo um cigarro e expilo a fumaça para fora da janela, mania minha. Ligo o rádio giro o botão e sintonizo um canal de notícias onde repórteres relatam um Brasil de corruptos e corruptores. Claro! Sempre haverá alguma exceção. Aquilo me aborrece e vou para uma estação de música clássica. Ali, Chopim é tocado por um exímio pianista. Ele dedilha com maestria a impressionante  "Polonaise". No farol um desses garotos que vendem pequenas guloseimas se aproxima da janela, e eu estou com o vidro aberto. A música é tocada alta, e a fusão do piano com alguns outros instrumentos de orquestra como o trombone e violino que, certamente soem incompreensíveis para aquele pirralho de uns 12 anos.

-Nossa tio! Que som louco isso! - Ele exclama surpreso.

Eu sorrio e dou o seu "real" sem que leve as suas rotineiras balas de goma. Ele não perde tempo e avança serelepe para outro veículo. Sim, o Brasil tinha que produzir, trabalhar, não importava o porquê, o se é ou não devia ser.
Pelo retrovisor eu vejo o garoto se apoiar na janela de outro sujeito enquanto o meu  pianista martela as teclas com a mesma violência que Chopim martelaria. E isso me faz relembrar um pouco da  história do grande mestre polonês e sua mágoa com os russos que,  no velho mundo, sempre se meteram em confusões. Porém, para mim isso não fazia qualquer diferença.
Há tempos eu não me sentia tão confiante


Copirraiti 05Dez2011
Véio China©




quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Cenas

Somos anjos e demônios.

Enquanto anjo te visito na doçura das preces ao querer-me dedilhando poros e sugando tuas cavidades. E é assim extasiada de imaginação que te escancaras  enquanto beijo tua boca e acaricio teu sexo. Como de hábito suavemente nos possuímos e sorvemos as delícias que nossos orgasmos excretam.

Porém , nem sempre quer-me assim; Doce, sacro e santo.

Por vezes torna-me brasa; Então me fazes o demônio que lateja e arde dentro de ti numa chama que jamais se apaga.
E assim ecoam os teus gemidos, e eles se  alastram pelas paredes e elas pudessem apenas ouvir e ocultar  os segredos de todos nossos sussurros.
E é nesta hora que não sou mais dono de mim e nem deste teu olhar depravado. Excitam-me teus lábios carmins que  proferem palavras desvairadas que se sustentas num riso insano:

- Cara! Aqui não é solo santo e nem você é meu anjo agora! -  Autoritária determinas.

Ainda te ouço num mesmo tempo que  ofegam nossas respirações; Sabemos, a hora é chegada:

- Anda! Penetra-me, mais rápido! – Ordenas num ir e vir  de corpo - O que importa naquele momento é o prazer que te concedo na pele que me impôs;  A dum pobre apaixoando perdido da alma  –

Ages como se eu fosse um principiante e então debochas e  ris arrogante ao cerrar os olhos e desfalecer de tanto prazer.
Depois de alguns minutos o  hábito de sempre; Com cara de vadia evitas tua própria nudez ao vestir as lingeries.  Recomposta olha-me com fogo e saltitante te levas ao banheiro. Ali, como de costume te inspecionas  no espelho,  retocas a maquiagem e  pressionas os lábios deslizando as mãos no corpo,  ajustando as peças íntimas com extrema delicadeza.

De onde estou curvo o tórax e pela pequena abertura da porta vejo parte das tuas ancas  adornadas  pela ínfima calcinha vermelha; Provavelmente o reflexo no espelho te previne  que és capaz de enlouquecer um homem. Retorno o corpo, acendo um cigarro e sorrio ao expelir a fumaça que segue na direção do teto. Contudo antes de chegar ao destino ela deixa pelo caminho traços e  contornos imprevisíveis.

Então você ressurge entre a fumaça e faz careta para o vício que arde entre meus dedos. Você não gosta de supresas;  Verdadeiramente detestas os meus cigarros tanto quanto persistes linda e deliciosamente sensual.
Aos poucos o olhar da mulher  se despe do tom de censura e se abre num sorriso de dentes perfeitos; Outra vez a magia de ti; Faceira,  cedes o lugar para uma garota  que sussurra-me mimos e depois debruças e  mordiscá--me os lábios; sei que gostas disto.

Por fim te jogas na cama e te aninhas em meu peito deixando neste pobre diabo um oceano revolto da mesma sensação; Para mim, eternamente, será como se houvesse sido a primeira vez.


Copirraiti 2011Set21
Véio China©

sábado, 1 de outubro de 2011

A metáfora miguxa e a fábula das letras iletradas

“Se a vida der apenas um limão; chupe!
( autor desconhecido)

Porém, se não apreciares o cítrico em sua forma natura e gosto acre, existe a possibilidade de fazê-lo limonada. Lembre-se: cuidados especiais com a diabetes; Para ela adossante à vontade. Se incólume e na posse da saúde perfeita, assúcar, porém com certa parcimônia; É de bom alvitre utilizá-lo dum jeito que não coloque em risco o teu esmalte dos dentes. E se ainda assim, diante dos riscos acarretados   insistires na refrescante limonada, faça-a  mais saudável e amena ao seu organismo. Nesse caso  abuse do mascavo, um assúcar extraído do caldo da  cana.  A saúde é sempre tua, porém não se esqueça: Quem avisa... amigo é”

Foi exatamente desta forma que o “ EU SOU MIGUXO GRAÇAS A DEUS” um novato de taverna acabara de postar o seu primeiro escrito numa confraria literária conhecida por ” O BURACO DA MADALENA” Óbvio, o texto além de mostrar-se pródigo na mistura de pessoas e tempos verbais trazia um teor esdrúxulo num tom de quase gozação. Porém deveríamos levar em conta de que não fosse essa a verdadeira intenção. Mas, mesmo que  tentássemos vestí-lo de sério havia um imperativo quebra-cabeça a nos desafiar. Talvez desnudá-lo fosse tão simples ou complexo quanto os erros de grafia disperos  em frases que nada de novo trazia à area da ciência terapêutica ou gastronômica. Enfim, possível era o fato de simplesmente depararmo-nos com uma redação algo incomum e que não buscava grandes reconhecimentos como tantas outra que ali foram postadas e esquecidas. Claro, poderíamos creditá-lo como de mau gosto, oco, vazio e indicá-lo ao "Prêmio Sergio Mallandro de Literatura”

Assim,  pronta, a crônica ( se é que também podemos entendê-la como crônica) foi afixada no mural aveludado ao lado do balcão das bebidas. Depois sentou-se e indiferente aguardou as primeiras avaliações. Contudo algo de inusitado aconteceu naquele caso e os enganos gramaticais acabaram por propiciar algo parecido com uma revolução, um levante dos erros” E ela se deu como um número de magia; as
palavras incorretas se duplicaram e saltando das linhas  tomaram assentos numa das mesas próximas. E era tanto insano pegar as letrinhas naquele papo insólito, desconexo, meio que sem pé e nem cabeça. Suas conversas e intenções desfilavam claríssimas:  Elas estavam lá pra ver o circo pegar fogo.

-Eu quero mais é que esse cara se lasque! Você viu em que textinho requenguela esse metido à escritor foi nos meter? – Esbravejou o Assúcar - Nem sei onde  arrumei tanta paciência pra fazer parte dessa bobagem sem sal, sem tempero.

-Bem... Sou obrigado a fechar com você! –  Concordou - E digo mais; Sem açúcar também! -  Concluiu o Adossante. Porém ele se esquecera de algo.

-Ah, e  AÇÙCAR, saiba seo carboidrato inculto...AÇÙCAR se escreve com C e cedilha  –  Tudo óbvio e cristalino; tratava-se duma tremenda carraspana,

Adossante se surpreende com o tom professoral do amigo. Contudo, sua resposta vem aos gargalhos:

-Pois é ignóbil aspartame! ADOÇANTE também se escreve com C e cedilha! - Assúcar fora a forra à galope.

- Caraca amigo! Você está certo? O que pode estar  acontecendo com essa nossa descolorada gramática? –  Adossante recrimina-se  diante do próprio engano.

- Bem... pra falar a verdade, conosco nada! Somos nada mais nada menos que traços manipulados por  quem nos escreve. Portanto somos os inocentes, ou melhor ainda;  vítimas de um asno que se meteu a escritor! - O Assúcar  justifica-se  à la Pilatos,  num lavar de mãos. Depois persiste:

- E como estamos falando de literatura... sabia que a ignorância dos maus escritores é a mesma dos caras que se acham? Você notou como esses soberbos agem com desdém com o que não seja de sua  produção ou dos amiguinhos de patota? –

-Claro que já reparei, Assúcar. E aqui eles surgem aos montes! Quando percebo fico de olho nesses chatos! – Interviu o amigo – E sabe... você tem razão; os suprassumo se sentem assim como... semi-deuses, enfim... são uns tremendos duns baba......

Um fato inesperado faz Assucar abortar as falas do amigo.

- Xiu! Calado, Adossante! Algo me diz que coisa boa não vai sobrar pro nosso escritor! Um sujeito de feição rude está vindo pra ca – Assúcar o apontou para aquele sujeito com cara de poucos amigos.   Curiosamente eles pareciam tensos e preocupados, fato estranho praqueles que pretendiam ver o circo pegar fogo.

Evidências à parte, era mais que certo que as palavras inquietaram-se por aquele que lhes pretendeu dar -lhes vida num contexto literário, mesmo que ele as tenha exposto  ao ridículo da gafe. Porém, nem a saia justa em que se viram serviu para atrapalhar o andamento da postagem que foi lida e criticada por aquele sujeito de feição dura. O seu nome;“ERAMOS OS MIGUXOS ASTRONAUTAS” Sobre ele poderíamos dizer que era um dos escritores mais assíduos e fluentes daquele boteco de mesas engorduradas. Ao escrito ele se referiu assim:

"Caro  MIGUXO GRAÇAS A DEUS, percebo a relevância da sua preocupação com o esmalte dos dentes da rapaziada e a da escassez da nossa produção de açúcar. E isso leva à conclusão de que se o governo federal persistir nesta política anti-canavieira é mais que certo num futuro próximo os veículos a álcool venham se tornar refénsda ganância das multinacionais dos adoçantes. Evidente, eles terão algum trabalho até conseguirem transformar as malditas sacarinas e ciclamatos em combustíveis. Mas... como os gringos e em especial os chineses são terríveis....nunca se sabe"

As palavrinhas se entreolharam assustadas. A insânia crítica só merecia uma conclusão daquela. Contudo a loucura não foi tanta e nem o suficiente que evitasse os agradecimentos do autor. E ele foi atencioso e educado com o seu avaliador:

"Grato, amigo“ASTRONAUTAS” A sua presença e opinião foram de imensa importância. Este novato só têm a agradecer"

Ainda aturdidas e incrédulas, as palavrinhas liam e reliam o corpo da crítica. Indignadas ante os disparates e a falta de bom senso, manifestaram-se entre si:

- Hey! Tu leste tudinho o que esse sujeito com feição de poucos-amigos escreveu?

- Claro que li tudinho! Vírgula por vírgula... Só que não entendi bulufas....

-Pois é, Adossante! Só falta esse amalucado convencer o Ministro que o texto do nosso patr~
ao deva ser  o motriz da Pasta da Agricultura Ô gente mais estrambótica, impression....

Desta feita é o Adossante que interrompe abruptamente o amigo.

- Silêncio Assúcar! Olha aí mais um sujeito estranho vindo na direção da gente. Ele está olhando para o mural e é provável que seja pra dar uns pitacos... -  Depois silenciam e aguardam

Passam-se 15 minutos e uma nova crítica é afixada ao mural. Dessa vez quem avaliou  foi “OS SETE MIGUXOS CAPITAIS”  Na verdade, OS SETE MIGUXOS era um sujeito pouco conhecido pelos freqüentadores da taberna. Porém isso jamais o intimidou, ao contrário, o fazia um crítico ácido e de veemente oratória. Outra de suas  marcas era a paixão que abraçava seus posicionamentos. E foi com alguma empáfia,  ajeitando o nó da gravata e espalhando o pó das mangas do paletó que  ele pregou no quadro as impressões daquilo que havia lido:

"Patente está que o autor revela a estupenda veia política assim como uma turbulenta inquietação com os dias de hoje. Não sou pitonisa, não prevejo o futuro e nem me afogo nas águas do passado, mas... sinto no escrito um excepcional exercício de metáforas..."

-Metá... quem?  – O Assúcar  cutuca o Adossante - Do que esse maluco tá falando?

-Por Deus..quietinho aí! Como é que eu vou saber se você não me deixa pensar? – O Adossante se irrita e ralha com o amigo -. Silêncio! Vamos ver onde desembocará esse blablabla dos diabos. 

"Parece-me claro que o limão representa o sistema vigente... - Continua  OS SETE MIGUXOS –  E o sabor cítrico aporta as mazelas do dia-a-dia, o déficit da carteira de empregos e desdenha dos salários aviltantes pagos à maioria dos trabalhadores brasileiros. E o açúcar, como não poderia deixar de ser... metaforicamente assume as tristezas e a desesperança de um povo em seus governantes. Falta de esperança essa que estende a nossa infeliz classe de políticos..."
Após novas reticências, finaliza:
"Ótimo escrito, meu caro GRAÇAS A DEUS! Parabéns por desvendar o caos com a precisão dum exímio cirurgião!"

Novamente as letrinhas se flagram espantadas enquanto o autor, outra vez mostra-se grato  ao seu mais recente crítico:

"Muito obrigado amigo “SETE”. Logo mais devolver-lhe-ei a visita. Sei de antemão que lá encontrarei texto de um verdadeiro escritor" - Gentilmente se refere ao outro.

Assúcar e Adossante, inconformados se transformam em máquinas de ler. E como máquinas relêem tudo à bordo dos seus sorrisos nervosos ante tanta demência distribuida nquelas linhas.
Jesus Cristo! Era Inacreditável. E eles ofegavam freneticamente ao insensato humano que pode haver em cada um. Porém aos poucos foram retomando a normalidade,  respirando com cadência,  e aí sim,  articulando as palavras:

- Compadre Assúcar, tem absoluta certeza que leu com atenção o que esse possível candidato   escreveu?

- Claro que tenho, compadre. Li tudinho! Não sou analfabeto, pô!

-E então... O que achou?

-Bem... acho que a intenção do sujeito foi soar “politicamente correto” Talvez ele deve faça parte desses grupelhos da ultra direita radical. Saca esses que, quando na oposição pretendem o poder a qualquer preço, mesmo que às cutas de falácias e mentiras?  Com certeza o compadre já ouviu falar que os aliciadores de direita são poderosíssimos. E o pior; geralmente esse pessoal tem o dom da oratória e do convencimento - Conclui Assúcar num tom desanimado.

-Ah, compadre.. nem me diga!-  Aparta o outro -  Desses aliciadores entendo eu. Bem sei como são os manipuladores da consciência alheia. O problema é que depois de tramados os fios das teias, eles se transformam em  formadores de opinião emaranhando nossas consciências...Aí compadre, aí já era!  –  Exalta-se o Adossante. Ele parecia saber do que falava.

-Xiiiiiiiiiiiii! Olha lá! É agora que a cobra vai fumar! –  O Assúcar brada ao chamar a atenção do companheiro com um comnplementar cutucão na barriga.

-Ui! Mas...Como assim? Que cobra é essa que vai fumar, compadre? –  Questiona com olhos arregalados.

- Uai! Assim assim! A cobra vai fumar, compadre!... Veja quem está saindo do toalete e vindo para cá. - Assucar diz apontando discretamente o dedo para a pessoa que deixa o banheiro.

E ela, aparentando uma certa severidade e atravessa o salão e toma assento numa mesa defronte ao mural  Em suas mãos as inseparáveis companheiras de suas vida; As folhas de papel A4 além  da favoritíssima  Montblanc Meisterstuck

-Ai meu Deus do céu...vai danar tudo! É agora que cachorro louco só morde calcanhar com pedigree! – Clama um frenético Adossante -  Quem diria que “A EX MIGUXA E O VENTO QUE A LEVOU” daria as caras por aqui? Eu jamais imaginei que ela estivesse no pedaço - Conclui desanimado.

- Pois é! Agora é tarde, compadre! O negócio é a gente ficar balançando as perninhas pra ver com quantos paus se faz essa canoa! - Recíproco  lamentou-se ao outro com um amuo de ombros.

E eles, desconfiados se atinham a cada um dos movimentos faciais da dona EX, que, compenetrada,  exercitava os longos dedos, estalando todas as juntas. Depois  lentamente se dirigiu ao quadro, leu tudo que estava postado e retornou à mesa. Sentou-se e com a caneta em mão, por alguns minutos debruçou-se à  redação até sentí-la expressar o que lhe seria de convicção. Depois, altivamente  segue ao mural e firma o seu A4  crítico logo abaixo dos demais.  Nele, leu-se:

"O Miguxismo é o pecado mortal dessa confraria. E os que ele exercita são os que ministram a extrema-unção num boteco que agoniza. Ah que vontade de evitar essa morte! Que saudade do pessoal de antes. Aqueles sim eram os verdadeiros poetas e não essa turba de miguxos que só serve pra bolinho de festa ou enfeite como a cauda de um pavão"

Próximos dali asseclas da tropa de elite  se achegam com suas cintilantes taças de Margaritas. E eles  sorriem nobremente enquanto tilintam suas taças num inequívoco brinde de contestação.
Ali tudo se fez claro e transparente para os que passassem os olhos pelo mural.
Evidente, para mim, este cômico crônico, ou, crônico cômico se preferfirem,  ali  tudo soou-me velho, velhaco,  com gosto de ranço, com cores da discriminação e um mesmo sabor de  fritura saturada. Haveria alguma novidade naquilo? Óbvio que não! Para mim, nenhuma!
Porém para eles, mesmo que surgisse algo de interessante no front do “Madá” seria o mesmo que nada houvesse. Afinal... eles partilham das mesmas opiniões, das mesmas convicções onde o “babado” é reverenciar o velho clube da esquina de sempre, os carinhas de sempre,  os partícipes das  bajulações de sempre e dos blábláblás do eterno sempre.....
Enfim... eles sempre serão os mesmos, sempre, e isto,  mais que notório se fez fato.

Copirraiti 01Out2011
Véio China®

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Não sabidos foram os motivos, mas desta feita as confusas  letrinhas amanheceram com cólicas renais de tanto gargalhar.

Hã... como assim..cólicas renais? Fatalmente perguntará um deles.
- Meu lorde, por acaso não se refere às cólicas abdominais?

Ah... é mesmo!
Foi mais um dos meus bobos enganos.
Licença poética talvez..

sábado, 27 de agosto de 2011

100% Virtual

Conversávamos eu e meu amigo num bar. Ele parecia preocupado comigo e eu nem sabia extamento o por que. Era-me estranho sentir aquele cuidado todo. Enfim, talvez o avanço de minha idade preocupasse o garoto. Talvez ele tivesse receio que duma hora pra outra eu batesse as botas espumando bebida entre os lábios, desabando e lambendo o chão como o mais vadio dos cachorros. Eu esvaia um gole dos grandes do meu terceiro Bloody enquanto ele há um bom tempo sorvia suas  doses conhaque, rebatendo na outra, misturando à cervejas e cu de burro (suco de limão e sal). Sua voz soava pastosa, ébria, macilenta:

- Veio, está na hora de parar com isso.

-Com isso o que, AVG, com a bebida? – Indaguei.

-Claro que não, porra! To falando dessa tua virtualidade exacerbada.

- O que? Minha virtualidade exgerada? De que Wikipédia você ta falando, cacete?

-Uai! Só não vê quem não quer. Você não se tornou incólume a ela, não se safou ileso dela – Ele se achega curvando o corpo sobre a mesa e sussurrando como se segredasse algo.

Claro, o meu amigo era um desses garotos chegados num português cheio dos tre-le-les. Aquilo até que não me aborrecia. Eu gostava dele e o achava engraçado, principalmente quando se embebedava.

-Ué, não sei por que Mozilla você cismou com isso, Maicon!  

Ele me olha por alguns instantes e pensa. Os seus olhos apesar de bêbados mantem ainda o brilho de alguma esperança, coisa,diga-se de passagem, há muito não visto nos meus.

-Bem... o que eu quero dizer, Veio, é que acho que você está carente de realidade. Sabia que seios e uma vagina bem lavada e depilada fazem um bem danado prum homo sapiens de pênis?

Eu achei divertida a sua colocação. Dito, retorna para a posição de origem na cadeira. Ah sim! Sobre Maicon nunca seria demais dizer que além daquele seu palavreado cheio das nove horas, era ele um sujeito chegado numa assepsia absurda, quase intolerante até.
Claro, naquele estado ele jamais poderia se lembrari que um ano anos antes, numa noite de inverno em que nos afundávamos num louco porre de vodka e cervejas, ele, com o dedo em riste e o corpo desgovernado levantára-se da cadeira e do nada discursou:

-Não existe um único bucéfalo neste recinto que me verá desfilando com uma dona em fase excreta de  fluxo sanguíneo mensal! 

A princípio o silêncio. Mané, o dono do bar,  permanece estático, dinheiro do troco cravado entre os dedos ante o cliente que aguardava em frente ao caixa registrador. O constrangimento só foi vencido por algumas garotas duma mesa próxima. Inicialmente elas sorriram, depois gargalharam.
Também pudera! Por Deus! Bucéfalo? O que o pobre equídeo de Alexandre tinha a ver com aquilo? E além do mais  ele poderia ter simplificado tudo  e dito que jamais sairia com alguma garota em fase de período menstrual.
Em todo o caso aquilo não me era importante naquele dia e nem no dia de hoje, mas sim,  o motivo de ter chegado a conclusão que eu me tornara 100% virtual. Permaneci calado por algum tempo. Olhei para o meu bloody, girei as pedras de gelo no copo e  me manifestei:

-Maicon, Emessene à parte, acredito que que você esteja exagerando? –

Evidente, era exagero, absurdo. Era simples de perceber que o cara com problemas era ele e não eu. Podáimos nota isso a olho nu. Ele me fulminou com aqueles olhos  ébrios e  meneando a cabeça num gesto de reprovação, me questiona:

-Ah é? - Então me diga. O que está fazendo nesse instante? –

-Sim, sim! Estou com o laptop Winamp aberto. Mas... e daí? – Respondi sem perder-me da tela do meu note.

-E daí o cacete? Agora me diga... Com quantas donas está teclando aí no seu "mesene" seu,  seu, Don Juan webmaníaco?

-Bem. estou com... três amigas! Ops,... quatro!  - Naquele exato momento acabara de entrar uma quarta Youtube amiga. Era a Rutinha. Uma loira plastificada, talvez uns 42 anos, mas ainda de seios fenomenais, em que pese as suas proteses de silicone.

-Está vendo, Véio? Você não é capaz nem de dar-me atenção. Tu que não percebes a inexorável contradição que te tornaste - Inexorável? Puta que pariu! Maicon estava com a corda toda. Quanto ao "tu"era compreensível, afinal, Maicon  adorava falar para a 2ª pessoa verbal. – “É a pessoa vebal da poesia” – Ele costuma dizer.

-Ô Maicon... não é bem Yahoo assim! Eu presto atenção em você, mas sem deixar de conversar com as minhas amigas. É uma questão de cavalheirismo. - Defendi-me

-Amigas, que amigas seu velho cabeça dura? Amigo é coisa de carne e de osso. Amigo é aquele que te leva para casa no segmento mais alto do membro superior  se por acaso você necessitar (O filho da mãe me pegara de jeito. Eu sabia o que ele pretendia dizer)

-Sim, Google, sei disso Maicon! Apesar de eternamente grato por aquela noite e ainda mais por ter feito aquilo por mim! Mas...não poderia simplesmente ter dito assim: Amigo é aquele que a gente carrega no ombro quando está bêbado?

Claro, ele queria que me fazer sentir culpado. Maicon era bom em chantagens emocionais.

- Seu Xucro! - Ele responde -  Eu sei você que gostaria que eu declinasse da frase para simplesmente  ter falado com a rudez com que falou.

Maicon se entusiasmara.

- Amigo é aquele de quem sentimos o caloroso abraço. Esses sim são os nossos eternos amigos, e não essas pragas cibernéticas surgidas duma cartola virtual. - Os seus olhos ganham maior brilho, algo insano, louco, um lobo bêbado e desvairado que continuou com seu discurso:

- Toda essa manifestação afetiva virtual me parece tão falsa quanto o ilusionismo de David Copperfield!  Lembra-se dele, Véio?  Aquele sujeito que fazia desaparecer avião diante nossos olhos...

Eu olhava para a sua boca e ela não cessava os movimentos. Possivelmente os seus problemas fossem maiores do que aqueles que imaginara.

-Maicon, Maicon, Facebook, pare! Acredito que você esteje delirando... – Tento em vão despertá-lo tocando fortemente no ombro.

-Ah, maldita rede mundial de computadores! - Ele continua - Essa coisa absurda que vocês tratam por....por.... – Maicon parecia em transe. Ele simplesmente nao se recordava da palavrinha pequena e mágica.

-Internet, Maicon! É a Internet, Badoo, o que você está se referindo! – Tento auxiliá-lo. Sua mente quedava-se á embriaguês.

-Que seja essa porra de Internet! – Ele dá de ombros. Nele, além da embriaguês eu notava o tom de decepção.

Eu olhei para Maicon e entendendi que aquilo jamais aquilo que fiz jamais poderia ter dado certo.
Sem que ele soubesse eu fizera para ele um perfil fake no Orkut. Gostaria de não vê-lo  tão só, com o pé na modernidade, fazendo novas amizades, vendo pessoas, interagindo, se mostrando em webcam, falando por microfone, enfim....

Mas... Maicon...Bem....Maicon era complexo demais e jamais entenderia a virtualidade, e nós... os meros virtuais.


Copirraiti 26Ago2011
Véio China©

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

24 Horas


Eu estava com sérios problemas de sono. Aliás, acredito que não fosse propriamente o sono, mas sim a virtualidade. Notívago crônico e numa fase não tão promissora apenas conseguia dormir quando os ponteiros marcassem cinco ou seis da manhã. Tão problemático quanto o sono era a confusão mental que em mim progredia assustadoramente, pois em algumas vezes o que supus ser dia, de fato era noite.
E por mais que tentasse, a  incoerência e os pensamentos não me deixavam distinguir se me tornava virtual pela falta do sono ou se, notívago pelo excesso de virtualidade. Talvez eu fizesse parte duma legião de Condes Dráculas espalhada pelo planeta, vampiros virtuais que tinham na tela do computador a origem dos seus males. Porém as rotas dos meus subterrâneos começaram mudar a partir de uma certa madrugada de muita conturbação. Recordo que passava pouco das  02:00 da manhã e eu conversava com alguém, uma prosa pródiga em atritos e desencontros.

-Pois bem Sr. Bates, pela quinta vez nesta semana; qual é o problema agora? – Perguntou-me ele no MSN. A voz era agrave, severa, e sem qualquer simpatia.

Ah sim! Aquele era o Dr. Dil, um psicanalista virtual que me fora indicado por uma colega que dissera que obteve ótimos resultados. As consultas eram virtuais, mas o pagamento não, e eu quitava seus honorários através transferências online em sua conta bancária. Claro, não havia riscos, não para ele, pois os serviços eram pagos com antecedência para que eu pudesse fazer uso do meu tempo.

-Bem... Dr. Dil, sinto que as coisas não podem continuar do jeito que estão –  Reclamei fazendo que não notei o tom contrariado em sua pergunta.

-Ora sr. Bates, como já disse antes,  me aborreceu, pois estou cansado de lhe dizer que ao pé que as coisas andam o melhor seria o senhor se consultar com um profissional da neurologia  – Respondeu-me  como sempre, repetitivo e o mesmo enfado.

Talvez o Dr. Dil tivesse razão. Recordo-me inclusive que em uma das suas últimas consultas ele tentou se desvencilhar de mim propondo-me um medicamento ultra conhecido, o Diazepan. – "Tenho um colega que pode emitir o receituário em seu nome, e em pouco tempo e o senhor pagando o  motoboy o terá em mãos rapidamente” - Ele disse. Claro, recusei, pois sempre fui presa fácil as drogas ansiolíticas que, em outras épocas em nada me ajudaram. Portanto não era o momento de tornar-me refém delas, inclusive porque  não queria acordar com o gosto da morte na boca.

-Doutor, tem certeza que essa falta de sono  não se motiva por algum fator ocorrido na infância?  – Insisti como se não tivesse percebido que pretendesse cair fora -

-Não, não é não Sr. Bates. A sua infância nada tem a ver com os fatos! É que o senhor não vive sem as madrugadas - Sentenciou

Talvez o Dr. Dil não gostasse do fato que eu indicasse algum caminho naqueles meus insistentes"não serão coisas da infância?" - E talvez não compreendesse que a minha intenção era ajudar, abreviar a rota, afinal, comumente os analistas imputam à infância o período dos desajustes e dos distúrbios da personalidade. Porém, comigo ele jamais se permitiu usar ou que eu usasse do artifício. Talvez o receio fosse que me tornasse mais chato do que propriamente era ou que me julgasse.

E assim continuávamos a lengalenga naquela noite de calor intenso onde eu intercalava o uso das mãos para amassar uma dessas pequenas bolas de borracha que fortalecem a musculatura. E eu a pressionava algumas vezes e depois a atirava para o alto e tornava  pegá-la  sem deixar que tocasse ao chão.
O Dr. Dil olhava meus movimentos e agia tal qual um espectador de uma partida de tênis,  e sua cabeça seguia a trajetória da bolinha, ora subindo, ora descendo. Na última vez que a atirei para o alto ele se irritou:

- Sr. Bates, desculpe, mas não é para isso que me paga e muito menos são esses os serviços a que me presto! - Olhei-o surpreso através da webcam. Talvez a repetição dos movimentos o incomodasse.

-Ta bom doutor, não mais se incomode com bola! – Exclamei compreensivo.

Ele olhou-me impaciente. Eu via cada músculo do seu rosto se contrair ante a perfeita resolução duma webcam que me custara o olho da cara.

-Bem... Na verdade Sr. Bates, isso nada tem a ver com a sua maldita bolinha - Devolveu irritado. Depois continuou -  É constrangedor tocar no assunto, mas... o senhor não me deixa alternativa.

-Como assim? Seja mais específico, doutor! – Eu não o compreendia.

-Ora, ora Sr. Bates! Assim... Assim... assim como o senhor está,  com o pênis ereto sob a cueca. E o senhor há de convir, é uma situação assaz  desagradável! - Reclamou equilibrando os óculos no nariz curvo.

Olhei para mim e confirmei que algo se avolumara debaixo da minha  cueca samba-canção. Algo que se mantinha ereto como se fosse um dos braços de  Adolf na saudação nazista.

-Ah, nem ligue pra ele, doutor! É apenas vontade de dar uma mijadinha! - Justifiquei procurando não dar  grande importância ao fato, pois estava adiando a minha ida ao banheiro por conta daquela nossa conversa. E também  pouco entendia o motivo daquilo acontecer, pois se não fosse algum problema orgânico, talvez fosse oriundo de algum fator da minha meninice.

-Dar uma mijadinha? Que frase horrível, Sr. Bates!  O senhor não me deixa outro caminho... O senhor é um homem profundamente  desagradável! Passar bem! –  Fulminou-me  com um tom grave e depois dobrou o corpo com intuito de pegar os óculos que desequilibraram da curvatura do seu nariz desabando ao chão. 

Refeito, olhou-me com aquela sua feição de almofadinha e disse que estaria devolvendo em minha conta o valor daquele mês que eu antecipara. E depois nada mais disse, fechou a webcam e o seu nome sumiu dos meus contatos online.
Era melhor assim. Só um cego não veria que era passada a hora de se desfazer do Dr. Dil Page Brin e das suas insanas sessões de análise por vídeo conferência. Tudo era tão nítido. Andávamos à passos de tartaruga e o pouco percorrido trouxe resultados desanimadores já continuava insone. Em todo o caso eu tinha que reconhecer nele o faro comercial ao estabelecer um consultório com atendimento virtual à custo bem em conta. E outra. A culpa fora toda minha, pois comodista e acreditando na indicação de uma antiga  colega de faculdade  eu me livrava dos malditos consultórios, divãs freudianos, distante das filas dos elevadores e  dos abarrotados estacionamentos da caótica cidade de São Paulo.

Olho novamente para o relógio do Windows e agora ele aponta para quase 02:30 da manhã.
Repentinamente  um "Plim" –  O sinal sonoro dava conta que alguém surgia online. Olho pro boneco verde e  a pessoa  me  é visceralmente  familiar. Penso por alguns instantes e recoloco os fones de ouvido  e abro outra vez a webcam.

-Filho, boa noite! - Ela se antecipa e me cumprimenta com voz trêmula. Era normal, um fator de idade.

-Boa noite mamãe! O que foi? - respondo impaciente. Era estranho, mas mamãe sempre me causava certa impaciência.

-Ah filho... a mamãe ta preocupada com você. Olha pras tuas olheiras. Aposto que não anda comendo  direitinho, não é?  -  A sua fisionomia era crítica. Bem, nem sabia a finalidade das considerações; mamãe pesava 47 quilos e também tinha olheiras profundas. Olheiras, amor e críticas,

-Ah mãe, me alimento sim. Ao meu jeito, mas me alimento – Eu me tento me defender.

Eu olhava para mamãe e o ridículo de estarmos naquele papo e numa hora daquelas. Jesus Cristo!  Talvez a minha insônia fosse herança da própria árvore própria genealógica. – Concluí ao observar seus olhinhos notívagos. E ela, por sua vez jamais se aperceberia  do constrangimento que ma causava, ainda mais para um sujeito na minha idade. Certamente não tinha consciência que me tratava como um garotinho que se leva à escola municipal com a lancheira à tiracolo.

-Ah filho, você ta muito magrinho! Veja no espelho as tuas profundas olheiras? - Ela suspira preocupada. Ah meu Pai! Íamos começar tudo de novo.

-Mamãe, Eu já te falei. To muito bem! E a senhora sabe que quando finalmente pego no sono nem Boeing me acorda! Nem que entre pela janela e deite ao meu lado na cama!

-Ah, isso é! - Ela rechaça -  Também roncando do jeito que ronca jamais ouviria a turbina do tal avião! –  Mamãe ri da própria galhofa. Sim, mamãe era assim, mais sarcástica e irônica que propriamente autoritária, ao contrário de outras épocas em que me fazia tremer e esconder debaixo da cama.

- Está bem mamãe! Um beijão e fica com Deus! – Despeço-me imprevistamente. E  antes que viesse com novas recomendações a bloqueio sem tremer ou me esconder na casinha do cachorro.

Pronto aquele assunto estava resolvido. Porém o que não se resolvia era a minha fome. Ela precisava ter me lembrado?  Espreguicei-me e rumei para a cozinha onde na geladeira encontrei apenas os restos dum frango assado de três dias - Blargh! Olhei pras  peles tostadas, pras coxas esbranquiçadas e senti náuseas.
Sem nada de bom que pudesse comer preparo a terceira caipira de vodca e volto para o computador  e percebo que a Cantina e Pizzaria Cosa Nostra está online. Desbloqueio e escrevo em letras garrafais:

-XANG  LEE,  POR FAVOR,  AINDA  ESTÃO  ATENDENDO  PEDIDOS? – Óbvio, era necessária a caixa alta; Xang Lee era portador de avantajada miopia.

Interessante é lembrar-se de como aquele chinês  herdou a Cosa Nostra  e o tino comercial de sua família. O local onde hoje funciona a cantina foi uma pastelaria. Todavia o passar do tempo e a pouca rentabilidade fez Xang esquecer os engordurados pastéis e optar por outro ramo gastronômico. Soube do fato através da conversa que tivéramos  numa das  vezes que estive na pizzaria; Eu me dizia surpreso por ver um chinês tornar-se dono de cantina, negócio tipicamente dos oriundos italianos, e ele, por sua vez  argumentou que igualmente os italianos invadiram em muito os negócios chineses, sobretudo no ramo das lavanderias. Sim, pensei ao que dissera e ele estava correto, ainda mais diante dum mundo globalizado onde o que conta é a eficiência e na qual deixa de prevalecer as predominâncias étnicas ou tradições.

Foi o que recordei quando  Xang respondeu pelo MSN que ainda estavam em funcionamento. Mediante a sua confirmação e não querendo confiar apenas na solicitação das letras  abro a webcam e peço ao vivo no microfone:

-Xang, pode me mandar ½ aliche, ½ mussarela?  - Ele sorri, e depois prestativo responde:

-Xim sinhôro Bates! Vinte minutos a pizza tai em xua casa! - Xang me confirmou trajando um novo e surpreendente uniforme, uma túnica  em amarelo-canário onde um enorme bordado no bolso superior esquerdo escancarava em vermelho uma inexplicável Torre Eiffel. Procurei naquele bordado a relatividade entre Itália e a França e não a encontrei. Ainda pensava naquilo quando ele finaliza:

– Plontinho! O pleço é "qualenta leais e tlinta centavos" E vai junto biscoitinho da sorte e Gualaná Dolly di glátis!

Eu sorri da forma que falou, pois  Xang era esperto e sabia como conquistar a sua clientela, apesar da marca do guaraná. Com 45 minutos de atraso eu recebia a pizza. O rapaz me entregou a caixa quadrada e o refrigerante. Dei-lhe o dinheiro e alguma gorjeta e ele se foi. Ao abrir, a surpresa: Era de camarão. Camarões enormes, bem assados, apetitosos, apesar de a pizza parecer  um tanto morna.
Bem... Eu não tinha nada a ver com a incompetência dos chineses que se metiam em negócios italianos, já que algum clinete daria a falta daqueles maravilhosos camarões; Ele que se acertasse com Xang - pensei -  Degusto quatro dos oito pedaços e me sinto fartado.

Aí veio a preguiça. O que fazer? Um filme na TV?
Não! Filme em TV é um saco, geralmente reprise. Além disso, o que aborrece são aqueles comerciais enfadonhos que interrompem a trama  a cada 10 ou 15 minutos. Passo os olhos pelos DVDs na prateleira e eles também não me atraem; assisti cada um daqueles filmes uma dezena  de vezes.
Vou à janela, retiro um cigarro do maço e fumo. No prédio de frente,  à coisa de 40 metros um casal se beija próximo à janela do apartamento deles. Eles se bolinam e as mãos dele parecem tão rápidas quanto seus desejos. Não decorre um minuto e a mulher ao tentar fugir das carícias, e o homem ao girar o corpo para alcançá-la dá pela minha presença, mesmo que distante do meu prédio. Sou um indesejável, intruso, portanto ela cerra  a cortina e eu me amaldiçoo por ter deixado as minhas luzes acesas, pois uma boa sacanagem talvez quebrasse o desencanto e a monotonia.

Deus, que ócio! Minha vida era nada mais que tédio. Bem... Eu poderia jogar xadrez, afinal, o Windows Sete tinha um ótimo jogo; Não, não! Vivia sendo surrado pelo maldito programa– Concluí enfadado.
Sem saber o que fazer com a insônia que me aflora os nervos retorno para o computador e revejo a lista dos contatos do MSN e  mais de 90% daqueles 100 nomes são de mulheres.  Mulheres com as quais tivera algum contato pelas andanças virtuais, e diga-se, gente que nem mais me recordava. Felizmente para mim e para elas e a fim de evitar  constrangimentos do tipo – “Oi. conhecemo-nos onde, em que sala, que comunidade?” eu sempre as mantinha bloqueadas.
Antes, todos os nomes eram liberados e paguei muito mico pela decisão. Lembro-me que numa ocasião e que certo que a pessoa da foto com quem eu conversava era a Marta, uma professora de cursinho que conheci numa comunidade literária de Orkut, mantive o seguinte diálogo que, ao fim acabou me constrangendo:

-Oi Marta, tudo bem? Como estão marido e filhos? O menorzinho melhorou da caxumba? - Ela demorava para responder. De repente.

-Cara, você é maluco? Meu nome é Eunice, sou lésbica e odeio crianças! - Respondeu, e pelo jeito, irritada. Fiquei na minha e não  passou mais de um minuto e Eunice fechou o MSN em minha cara. Provavelmente eu conhecera aquele figura em alguma sala de sexo da Uol.

Ria daquelas lembranças quando novamente segui os nomes dos contatos; Bingo! Estava lá e ainda online! – CASA DE MASSAGENS LEONORA – Lembrava-me bem de Leonora. Talvez uns 45 ou 46 anos, conservada, coxas grossas e seios volumosos. Eu estivera em seu respeitável estabelecimento por cinco ou seis ocasiões. Era uma casa enorme e de muitos quartos com banheiras de hidromassagem. Aliás, á bem da verdade é bom que se diga que  esse segmento que pretende abocanhar executivos com a indicação de "massagens" é uma grande farsa. Mentira porque as meninas fazem barbaridades com nossos corpos, exceto ao que se propõem; massagens. Rememoro então a terceira vez que ali estive e Leonora me chamou discretamente e me entregou seu cartãozinho. Olhei; além do seu número de celular constava também o MSN. O cartão eu perdi, mas ja havia cadastrado o seu MNS. Lembro o que falou no ato de me entregar o cartão:

-Assim é mais fácil, rápido, prático! Esquema Delivery, sacou? - Disse à queima roupa e a bordo dum sorriso canalha impregnado em seus lábios vermelhos.

-Claro, claro, saquei! – Confirmei à época ao piscar-lhe o olho.

Sem me perder das lembranças continuo com os olhos fixos naquele nome quando me pergunto; Cara, você está realmente a fim de alguma mulher? Eu não sabia. Não era a falta de mulher que me matava, era o tédio. Tiro no "cara ou coroa"?  - Penso comigo -  "Cara" - Decido - Tiro uma moeda do bolso e jogo para o alto e ela bate em meu polegar e rola ao chão.  Mesmo sem me cientificar do lado que a moeda caiu decido e desbloqueio Leonora, e outra peço a solicitação de webcam:

-Oi meu querido! – Ela exclama. Evidente, minha fisionomia e a grana deixada em seu estabelecimento da última vez talvez selassem em meu rosto a expressão: VIP

-Leonora, boa noite! Como estamos de garotas? – Pergunto num sorriso forçado.

Leonora está vestida numa negra blusa de tule, transparente, e que deixava à mostra o formato dos apetitosos seios. Eles parecem estar em plena forma e se adornam num sutiã  branco talvez, menor dois números ao que deveria ser. Olhando atentamente para o seu par tive a impressão que ansiava mais que a liberdade condicional, parecia louco pra se ver livre de vez do tecido que o entrincheirava No rosto, Leonora carregava uma maquiagem pesada,  azul, lilás e verde, assim como se estivesse pronta para um baile de máscaras.

-Xi, meu caro Bates! Numa hora dessas não sobra  grande coisa, todas já se foram! Pra te falar a verdade está aqui unicamente a Sheylinha. Lembra-se dela?

-Sheylinha... Sheylinha. Ah sim, lembro... Aquela magrelinha de bumbum atrofiado –  Digo num tom de decepção.

-Sim, essa mesma!

-Bem, se não há outro jeito... quanto ta a morte? – Perguntei

-Hum... pra você, fim de noite... faço 150 pratas. Ta bom assim?

-Cem pilas e nenhum centavo a mais! – Propus. Certamente Sheylinha não valia nem a metade daquilo.

-Fechado! – Ela responde num quase “ufa! nem tudo está perdido”

Menos de ½ hora e o porteiro me chama ao interfone.

-Seu Bates, tem aqui uma... uma - Ele está constrangido. Realmente sua simplicidade nordestina não sabia mexer com as questões tão complexas da prostituição.

-Já sei quem é Adrael! Peça que suba, por favor.

Sheylinha toca a campainha e eu abro a porta. Ela fede à bebida barata. Vinte e poucos anos, a calça jeans agarradíssima faz suas pernas magérrimas darem a impressão que se livrarão do pano e acertarão bolas de bilhar. Ela nem pede licença e vai entrando e se desfazendo de algumas das roupas. Primeiro se despe da camiseta branca que traz no meio do peito um letreiro descascado na cor prata, mas onde ainda se é possível  ler: - Eu sou, mas quem não é? – Em seguida retira as calças ficando apenas de calcinha e sutiã.
Definitivamente Sheylinha não me causava qualquer tesão:

-Ô seu Bates, bora andar logo por que daqui a pouco  eu tenho que pegar o buzão no Parque Don Pedro. É o "negreiro" -  Ela comunica. Aquilo me aborreceu, pois não há nada pior que prostituta apressada, ainda mais para um último ônibus.

-Calma filha! Não quero trepar, não. Vamos apenas conversar! –

-O senhor não vai brincar de pif-paf comigo? – Ela exclama e gargalha numa feição à-toa.

-Isso mesmo! Sem pif-paf hoje - Confirmo

Ela se aquieta e conversamos por um tempo e eu soube de todas as desgraças que cercam a vida das prostitutas. Uma história triste como tantas de outras de garotas vindas dos confins para um grande centro à procura do lugar ao sol. Porém o bom senso sempre indicou cautela e ceticismo com as histórias de meretrizes  Antes de ir  embora ela ainda se oferece.

-Seu Bates, tem certeza que não quer pelo menos uma bronha ou um boquete?

-Não, Sheylinha. Hoje não quero nada! – Garanto-lhe com um piscar codial.

Com a resposta ela se veste à minha frente e eu sinto comiseração pela criatura.  Há nela um olhar de criança inocente, de quem está doída, machucada. Provavelmente existam nela muitas cicatrizes e sinais duma dura existência e  daquilo que convencionamos alcunhar de "mundo cão".
São 05:35 da manhã quando Sheyla deixa o apartamento com o dinheiro dentro do bojo direito do sutiã. Ela me acena e dá o último sorriso vagabundo.
Assim que se foi tudo se tornou escuro,  quase negro.
Volto ao computador e há apenas três pessoas que se mantém acordadas naquela hora. Pessoas quais também não me recordo. Desligo o aparelho e vejo a tela do monitor definhar comigo, morrer comigo, e agora não há mais vidas ali, há apenas um monitor de cristal líquido que finalmente se livrou dos malditos anúncios multicores. Deito a mão nele e ele está quente, cansado, portanto também merece descanso.

Lembro também que saindo da sala fui ao banheiro e dei uma bela mijada. Depois escovei os dentes,  lavei o rosto e a feição que vi refletida no espelho me assusta. Eu parecia estar com mais de 50 e não os 41 que de fato tinha. Dirijo-me ao quarto e visto o meu pijama de flanela. Olho para ele e sorrio de mim e da  lembrança duma certa vez, onde ébrio e numa roda de amigos confessei que usava um daqueles. Foi o suficiente para me tornar o alvo das suas gozações– “Isso é coisa de boiola, de gay!” - Eles gritavam e riam e anunciavam o meu pijama para os outros clientes que bebiam e comiam petiscos. E eu apenas ali, sem graça, rubro, até que a vergonha aliou-se á minha raiva e mandei todo mundo se foder, inclusive o garçom metido à gozador; Que fosse  à merda toda  aquela cambada de recalcado, pois  jamais  me separaria dos meus pijamas de flanela, quisessem ou não. Ainda com a feição contrariada pela lembrança ajoelhei à cabeceira da cama.

-Pai, faça que meu dia hoje seja diferente ao de ontem!  - Pela primeira vez em anos eu rezava. Pela primeira vez em muito tempo eu pedia algo para Deus. E pedia com devoção.

Em seguida rezei três padres nossos e fiz o sinal da cruz. Algo necessitava ser mudado dentro de mim, por isso pedi com fé. Terminado, enfiei-me debaixo do cobertor.
Pela janela a claridade ainda amena me fazia ter certeza que um novo dia estava à caminho. Sim!  Sempre haverá um novo dia que poderá me reservar sol, chuva, gente que ama, gente odeia, coisas boas, coisas más. E nesse mesmo e renovável dia o mundo persistirá girando sobre o seu próprio eixo e nós não o sentiremos, aliás, jamais sentimos.  O planeta terra será notícia, sempre. Notícias que espocarão em frações de segundos na rede, nas rádios e nas TVs. Notícias que darão conta de tragédias e atrocidade num mundo que agoniza. Notícias que eu só terei ciência quando acordar lá pelo meio da tarde, mau- humor, boca amarga, ainda ébrio de sono por mais uma ordinária madrugada.
Algo andava muito mal dentro de mim, e pela primeira vez em anos eu queria mudar as rotas do meu subterrâneo, eu queria amor que não naufragasse. Eu precisava de voz aveludada, de sorrisos generosos. Necessitava de alguém que me abraçasse pela cintura e que desligando a TV depois da sessão da novela das oito e me convidasse para uma grande noite de amor. Esse mesmo amor sempre me foi estupidamente complexo e incompreensível e dum mesmo tom da virtualidade que me tornara.
Fiquei pensando naquilo por alguns bons minutos e quando  outra vez olhei para a janela percebi que cortina não mais atenuava a claridade da manhã. E aquilo me impressionava, de como a luminosidade em fração de minutos se apoderava de tudo. Talvez a claridade me fosse a esperança, o salvo conduto para que algo se acendesse dentro de mim.
Remexi-me na cama por mais alguns instantes até me sentir aquecido pela flanela do pijama e do cobertor

-Que se fodam, aqueles babacas! - Praguejei-lhes uma última vez.

Era a hora do subterrâneo dormir.


Copirraiti 23Ago2011
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