domingo, 27 de março de 2011

Porfírio, o apanhador de cerejas

-Cómo te llamas, muchacho?

-Porfírio.

-Sólamente, Porfirio?

-Porfírio Wells.

O capataz continuou me olhando. Sua feição  chicana, severa, a pele queimada de sol e aquele bigode grosso e vasto  que sugeria uma selva à procura de animais.

-Sabes recoge las cerezas?

-Nunca colhi, mas tenho duas mãos

-Entiendo que usted está aceptando el trabajo?

-Sim. 10 dólares a diária, isso?

-No! Son cinco dólares. Los otros cinco son para la estadia, comida y el baño

-Feito! – Respondi.

-Muy bien, cabron!

Dito isso me apontou para a carroceria de um caminhão Ford 48. Algumas pessoas estavam la. Todas pareciam tão derrotadas quanto eu. Por outro lado eu não podia me queixar.
Para quem não tinha onde cair morto qualquer pedaço de pão que me forrasse o estômago já era um grande progresso. Todavia algo de inusitado  havia no contexto; Eu, um legítimo americano de Los Angeles rendido a esses mexicanos exploradores da mão de obra miserável.
Contudo  também fazia algum sentido; estávamos em plena  Santa Fé de Gonzalez, uma mexicana e pacata cidadezinha onde se só se respirava o comercio das colheitas da cereja. Ali era o ponto de partida a caminho do distante  sub distrito de Hernandez, região próspera na produção da fruta.
Com certa dificuldade  subi na caçamba do caminhão, afinal encontráva-me  acima do peso ideal. Claro, não se tratava de excesso de peso pela fartura de alimentação, mas sim do álcool consumido debaixo dos desprezíveis viadutos de L.A. Enfim, ali junto as goteiras dos viadutos era dificílimo conseguir um prato de comida,  porém, bebida havia aos montes para o delírio dos mendigos e seus amigos. Eu não era propriamente um mendigo, apesar de  sobreviver às custas de um biscate aqui, outro ali,  travando amizade ora com um, ora outro. Todavia me surpreendia; sempre  havia alguma coisa para bebermos.

Já em cima da carroceria caminhei pesadamente sobre o envelhecido assoalho de ipê quando aqueles seis me olharam sem demonstrar muito interesse.  Por força do hábito foram se identificando aos poucos;  Eddie, Mike, Fred, Johny, Cage e Fred Astaire.

-Como assim, Fred Astaire? – Perguntei surpreso ao retribuir o seu cumprimento.

Me arrependi! Foi o suficiente para o bastardo dar um salto de onde se encontrava e sapatear desajeitadamente no piso de madeira. Olhei para suas botas de solas furadas percebi que ele estava mais fodido que eu.
Por duas horas o caminhão trafegou por estradas de terra levantando um  poeirão que impregnava nossas roupas já encardidas, penetrando em nossas bocas e se misturando à saliva.
Foi então que percebi que pó tinha gosto; o gosto da terra, vermelha, que ficava para trás, mas que parecia jamais terminar ao se juntar com a que víamos pela frente.

-Sonny fodeu o rabo daquela vadia até fazer os bofes sair pela boca! - Mike disse à Cage num riso idiotizado.

-Bem feito! Bem feito pra ela! A vagabunda da Rita ficou regulando pra gente, se ferrou. – Respondeu o outro imbecil.

-Ô! Ferrou bonito! Ainda mais com um pau desse tamanho no rabo! – Gargalhou Mike, separando as mãos uma da outra por uns bons 35 centímetros.

Claro que aquilo só podia ser papo furado de bebuns,  afinal, um sujeito com um pau daquele estaria protagonizando filmes pornôs nos mais bacanas estúdios do submundo de L.A, e não fodendo a bunda de uma rampeira de esquina.
Pensei no meu parceiro de velhas batalhas e concordei que meus míseros 14 centímetros jamais me fariam um astro das produções pornô de Holywood. Por outro lado e por aberração da natureza se o meu pau medisse os fantásticos 35 centímetros numa hora dessa eu estaria à beira da piscina duma mansão em Beverly Hills.

Repentinamente  silenciaram. Olhei para Fred e seu olhar se perdia misturando-se à poeira que deixávamos para trás. Era como se a cada metro percorrido lhe roubassem o quase nada que restava de suas esperanças. Eddie e Johnny permaneciam em silêncio e apenas davam pequenos goles em seus cantis abastecidos de vodca barata.
Sentei nas tábuas de dois palmos de largura que nos serviam de banco e pensei em minha vida. Também me encontrava decepcionado comigo. Lembro de ainda criança gostar de imaginar-me aos 35 numa poltrona executiva da GM, dando ordens e parecendo muito responsável. Em cima de minha mesa haveria uma placa de bronze com letras góticas: - Mr. Porfírio Wells  - Lembro até que idealizei a secretária; uma dessas americanas com descendência irlandesa; Louise McPerson era o seu nome. As  pernas bem torneadas de Louise e seu bum bum arrebitado combinariam perfeitamente com o negro dos seus densos cabelos e o carmim dos lábios bem fomados e sensuais.

 Porém o tempo a tudo revela e no choque da realidade  saquei que ser filho de mãe americana e pai porto riquenho não me levaria muito longe. E aqui estou eu, no topo do mundo, na carroceria de um caminhão ao encontro das malditas cerejas.
A viagem seguiu e depois de quase três horas engolindo pó chegamos ao destino. Eram  onze da manhã quando entramos em nosso alojamento. Aliás, aquilo jamais poderia ser tachado de alojamento. Num chão rústico e pintado de vermelho pequenos colchonetes com menos de três centímetros de espessura nos serviriam de colchão. Ao lado, acima duma pequena cômoda três imundos travesseiros tentavam fazer par com quatro lençóis encardidos.
Como o capataz Rodriguez ainda permanecia por perto, Fred Astaire tentou reclamar:

-Senhor está faltando lençóis e travesseiros! Não é necessário dizer que a resposta foi um olhar fulminante seguido de ameaças:

-Cállate! Si esto no es bueno para usted, pagar su ida y vuelta y adiós!

Dito isso se retirou. Antes tinha-nos avisado que o almoço seria servi às 13 horas na única cantina do lugar. Disse-nos também para descansarmos o suficiente, pois estaríamos na estrada às cinco da madruga com destino às cerejas.
Depois que ele se foi ficamos com um abacaxi em mãos. Como fazer a divisão entre os travesseiros e lençóis?  Sem consenso, resolvemos tirar no palitinho. Cada um que ganhasse escolheria entre uma das duas peças. Por sorte ganhei a primeira mão e separei para mim o travesseiro mais encorpado.

Jogo terminado sobrou um lençol. Portanto, eu, Fred e Cage, ganhadores dos travesseiros, disputaríamos a primazia daquele pano engordurado. Fred Astaire deu sorte. E o pior; o filho da mãe em comemoração brindou-nos com o sapateado completo de "Singing In the Rain”
Como nada mais havia a fazer aguardamos pelo almoço. Às 13 horas em ponto estávamos na cantina indicada. Aliás, a única, pois no pequeno vilarejo nada havia que não fosse a cantina, uma pequena igreja, um diminuto posto de gasolina e o alojamento dos capatazes.

Sentamos à mesa de um madeiramento rústico onde se liam algumas frases sujas talhadas à canivete. Dentro do balcão uma senhora gorda com cabelos em tranças nos olhava atentamente. O seu olhar também não era dos melhores. Mantivemo-nos sentados quando ela adentrou um compartimento. Passados menos  de 10 minutos ela surgiu com os nossos almoços. Travessas colocadas à mesa, reparamos na péssima aparência da refeição; o arroz, empapado, um mexido de ovos com claras ainda vivas. Num prato, algo que supus ser carne de galinha, pedaços irregulares e de uma coloração clara. Estranhei, pois não me lembrava de ter visto galinhas zanzando por ali. Porém a fome cavalar não se manteve insistente ao ponto de importar-me demasiadamente com o fato. Antes de comermos, Fred fez uma oração de agradecimento no que foi acompanhado pelos outros. Me mantive em completo solêncio; eu bem sabia o quanto aquilo estava nos custando. De tudo que foi possível comer,  o melhor tinha sido a carne  carne pálida que,  pra minha surpresa era extremamente saborosa. Eu não sabia de onde traziam aquilo, talvez  da cidade. Ainda tentei inquirir à senhora qual fora a carne que comeramos, porém ela parecia não entender,  respondendo-me algo que imaginei ser o dialeto da localidade, obviamente  incompreensível. Bem, também o fato não se resvestia de tanta importância assim.

Terminado, os rapazes preferiram voltar para o alojamento e dormir. Sim, eu sabia que seria bom descansar o máximo possível, mas não era meu hábito cochilar naquele horário. Portanto, enquanto eles foram pros seus colchonetes de três centímetros fiquei por ali zanzando, reconhecendo o lugar.
Adentrei a mata e logo surgiram os primeiros pés carregados de cerejas. Pelo jeito teríamos muito trabalho pela frente. Ao retornar contornei a cantina e me encaminhei para os fundos. Ali,  um balcão de madeira bruta parecia ser  o abatedouro daquilo que nos serviram no almoço. Acima do balcão havia algo, mas, ainda distante não consegui precisar exatamente o que..
Ao chegar próximo me estarreci; haviam servido carne de cobra para nós. La estava o rabo de uma cascavel, e eu podia até contar os anéis do guizo. A cabeça um pouco mais adiante insinuava que a peçonhenta havia sido pega de surpresa e por um espetacular golpe de facão. Era triste, muito triste ver a cabeça e o rabo, ali, dilacerados como se esperassem que algo acontecesse, como se pudessem juntar suas partes pra ela ir-se embora rastejando. Um pouco mais à esquerda no balcão a pele que tinha sido retirada. Olhei com nojo para ela, e aquelas cores acinzentadas mais pareciam o prenúncio de um vendaval tal a tristeza que transmitiam.

A visão me causava náusea; talvez o meu estômago fosse demasiadamente sensível à culinária exótica, ainda mais se tratando de cobra. Assim, foi inevitável e o jato que se desprendeu de minhas entranhas esguichou fortemente como se fosse uma dessas fontes artificiais que ligamos á eletricidade.
Repentinamente o sol não mais coloriu o dia e nem a terra me serviu de base, sólida, e eu desabei por completo, desacordado Dei por mim ao me ver estirado num dos colchonetes do alojamento. Rodriguez gesticulava e falava nervosamente e alto:

-Este hombre es una chica de verdad! No es bueno para nosotros! Prepárese para volver a la ciudad

Passados 30 ou 40 minutos la estava eu na carroceria do caminhão. Evidente, eu poderia falar praqueles imbecis o que tinham dado para comermos. Eu ouvira conversas que carne de cobra fazia bem ao coração, colesterol e até varizes e gastrite. Mas, e se uma gota daquilo maldito veneno tivesse permanecido na carne? Talvez  me matasse . Ah não! Eu jamais arriscaria.  Preferia ser um mal sucedido  ainda com vida que à comilão morto. Cobras? Elas pra la e eu pra ca. Nunca mais!
Todavia, pensei e achei prudente nada comentar com eles. E se eles tivessem a mesma reação?
Talvez nem saíssemos vivos daquele lugar. Antes de partirmos ouvi a voz rude de Rodriguez questionando-me:

- Cabrón, tienes algo de dinero com usted?

-Não não! Nenhum centavo, senhor! - Respondi com feição piedosa.


-Quiero ver tu bolsillos de los pantalones! –

O miserável não acreditava em mim. Queria ver os bolsos da minha calça. Mostrei. Depois me passou em revista e olhou no bolso da camisa e nos da jaqueta jeans. Nada encontrou.
Em seguida ordenou ao motorista que desse a partida. Provavelmente iriam captar mais otários pras suas malditas plantações de cerejas. Subi no caminhão com a mesma dificuldade de antes. Sentado solitariamente no banco da carroceria pensei-me novamente executivo da GM – Bah! Sem chances! Repreendi-me.
Depois de quase três horas de poeira e a boca seca e sem saliva o meu quarto de pensão me aguardava. Não retornava exatamente como um herói vindo de guerra ou um campeão mundial dos pesos pesados desembarcando no JFK após derrotar um tanque alemão de 120 quilos com um demolidor cruzado no queixo. Ao chegarmos ele me descarregou com alguma brutalidade. Eu ainda teria que descolar carona para voltar para o meu país.

Los Angeles, me aguarde que aí vou eu! Gritei ao ver o caminhão se distanciando. Sentei no chão e tirei a surrada botina de camurça e de la retirei  os mesmos 45 dólares que havia economizado para alguma emergência.
Minha garganta queimava, o suor escorria  e o rosto ardia. Olhos,  braços, pernas, nádegas pareciam feitos de um único pó, o que me ocasionava uma sede miserável. Talvez, naquele momento eu desse a minha vida a troco de duas cervejas geladas, não sei. Seguindo reto encontrei um boteco fuleiro ao fim da rua; era dos que gostava, me sentia bem, quase em casa. Sentei no banco do balcão e pedi uma cerva. Um senhor dos seus 50 anos e dono de uma barriga descomunal me serviu. Talvez ao ver o meu estado perguntou:

- Hey chico! No estás a busca de un trabajo?

Olhei para o local. Bem, quem sabe se eu não pudesse ganhar uns trocados a mais para poder voltar a L.A de form mais tranquila? Não necessitei pensar muito:

-Sim! – Eu disse olhando para o balcão onde provavelmente eu serviria os bêbados do lugar.

- Así que ... esta tarde será la contratación de personas para trabajar en la cosecha de cerezas!

Eu olhei para o rosto do suíno. La estava encravado o mesmo sorriso infame,  a mesma feição insensível de Rodriguez. Tentei não dizer, mas,  a natureza se fez indomável desta feita.

-Ei seu cara de joelho de porco?

-Si? - Ele respondeu. Pareceu nao entender. Adorei aquilo.

-Então.... que vá se foder, seu merda!

Virei as costas e me mandei. Aquele boteco era muito fuleiro para mim.
Deveria existir coisa melhor  pelas imediações



Copirraiti 27mar2011
Véio China®


Um comentário:

Celso Mendes disse...

Sempre um prazer te ler Véio. O relato me veio com um curta-metragem em que visualizava cada cena. Muito bom, Cabrón!

Grande abraço!