quarta-feira, 24 de agosto de 2011

24 Horas


Eu estava com sérios problemas de sono. Aliás, acredito que não fosse propriamente o sono, mas sim a virtualidade. Notívago crônico e numa fase não tão promissora apenas conseguia dormir quando os ponteiros marcassem cinco ou seis da manhã. Tão problemático quanto o sono era a confusão mental que em mim progredia assustadoramente, pois em algumas vezes o que supus ser dia, de fato era noite.
E por mais que tentasse, a  incoerência e os pensamentos não me deixavam distinguir se me tornava virtual pela falta do sono ou se, notívago pelo excesso de virtualidade. Talvez eu fizesse parte duma legião de Condes Dráculas espalhada pelo planeta, vampiros virtuais que tinham na tela do computador a origem dos seus males. Porém as rotas dos meus subterrâneos começaram mudar a partir de uma certa madrugada de muita conturbação. Recordo que passava pouco das  02:00 da manhã e eu conversava com alguém, uma prosa pródiga em atritos e desencontros.

-Pois bem Sr. Bates, pela quinta vez nesta semana; qual é o problema agora? – Perguntou-me ele no MSN. A voz era agrave, severa, e sem qualquer simpatia.

Ah sim! Aquele era o Dr. Dil, um psicanalista virtual que me fora indicado por uma colega que dissera que obteve ótimos resultados. As consultas eram virtuais, mas o pagamento não, e eu quitava seus honorários através transferências online em sua conta bancária. Claro, não havia riscos, não para ele, pois os serviços eram pagos com antecedência para que eu pudesse fazer uso do meu tempo.

-Bem... Dr. Dil, sinto que as coisas não podem continuar do jeito que estão –  Reclamei fazendo que não notei o tom contrariado em sua pergunta.

-Ora sr. Bates, como já disse antes,  me aborreceu, pois estou cansado de lhe dizer que ao pé que as coisas andam o melhor seria o senhor se consultar com um profissional da neurologia  – Respondeu-me  como sempre, repetitivo e o mesmo enfado.

Talvez o Dr. Dil tivesse razão. Recordo-me inclusive que em uma das suas últimas consultas ele tentou se desvencilhar de mim propondo-me um medicamento ultra conhecido, o Diazepan. – "Tenho um colega que pode emitir o receituário em seu nome, e em pouco tempo e o senhor pagando o  motoboy o terá em mãos rapidamente” - Ele disse. Claro, recusei, pois sempre fui presa fácil as drogas ansiolíticas que, em outras épocas em nada me ajudaram. Portanto não era o momento de tornar-me refém delas, inclusive porque  não queria acordar com o gosto da morte na boca.

-Doutor, tem certeza que essa falta de sono  não se motiva por algum fator ocorrido na infância?  – Insisti como se não tivesse percebido que pretendesse cair fora -

-Não, não é não Sr. Bates. A sua infância nada tem a ver com os fatos! É que o senhor não vive sem as madrugadas - Sentenciou

Talvez o Dr. Dil não gostasse do fato que eu indicasse algum caminho naqueles meus insistentes"não serão coisas da infância?" - E talvez não compreendesse que a minha intenção era ajudar, abreviar a rota, afinal, comumente os analistas imputam à infância o período dos desajustes e dos distúrbios da personalidade. Porém, comigo ele jamais se permitiu usar ou que eu usasse do artifício. Talvez o receio fosse que me tornasse mais chato do que propriamente era ou que me julgasse.

E assim continuávamos a lengalenga naquela noite de calor intenso onde eu intercalava o uso das mãos para amassar uma dessas pequenas bolas de borracha que fortalecem a musculatura. E eu a pressionava algumas vezes e depois a atirava para o alto e tornava  pegá-la  sem deixar que tocasse ao chão.
O Dr. Dil olhava meus movimentos e agia tal qual um espectador de uma partida de tênis,  e sua cabeça seguia a trajetória da bolinha, ora subindo, ora descendo. Na última vez que a atirei para o alto ele se irritou:

- Sr. Bates, desculpe, mas não é para isso que me paga e muito menos são esses os serviços a que me presto! - Olhei-o surpreso através da webcam. Talvez a repetição dos movimentos o incomodasse.

-Ta bom doutor, não mais se incomode com bola! – Exclamei compreensivo.

Ele olhou-me impaciente. Eu via cada músculo do seu rosto se contrair ante a perfeita resolução duma webcam que me custara o olho da cara.

-Bem... Na verdade Sr. Bates, isso nada tem a ver com a sua maldita bolinha - Devolveu irritado. Depois continuou -  É constrangedor tocar no assunto, mas... o senhor não me deixa alternativa.

-Como assim? Seja mais específico, doutor! – Eu não o compreendia.

-Ora, ora Sr. Bates! Assim... Assim... assim como o senhor está,  com o pênis ereto sob a cueca. E o senhor há de convir, é uma situação assaz  desagradável! - Reclamou equilibrando os óculos no nariz curvo.

Olhei para mim e confirmei que algo se avolumara debaixo da minha  cueca samba-canção. Algo que se mantinha ereto como se fosse um dos braços de  Adolf na saudação nazista.

-Ah, nem ligue pra ele, doutor! É apenas vontade de dar uma mijadinha! - Justifiquei procurando não dar  grande importância ao fato, pois estava adiando a minha ida ao banheiro por conta daquela nossa conversa. E também  pouco entendia o motivo daquilo acontecer, pois se não fosse algum problema orgânico, talvez fosse oriundo de algum fator da minha meninice.

-Dar uma mijadinha? Que frase horrível, Sr. Bates!  O senhor não me deixa outro caminho... O senhor é um homem profundamente  desagradável! Passar bem! –  Fulminou-me  com um tom grave e depois dobrou o corpo com intuito de pegar os óculos que desequilibraram da curvatura do seu nariz desabando ao chão. 

Refeito, olhou-me com aquela sua feição de almofadinha e disse que estaria devolvendo em minha conta o valor daquele mês que eu antecipara. E depois nada mais disse, fechou a webcam e o seu nome sumiu dos meus contatos online.
Era melhor assim. Só um cego não veria que era passada a hora de se desfazer do Dr. Dil Page Brin e das suas insanas sessões de análise por vídeo conferência. Tudo era tão nítido. Andávamos à passos de tartaruga e o pouco percorrido trouxe resultados desanimadores já continuava insone. Em todo o caso eu tinha que reconhecer nele o faro comercial ao estabelecer um consultório com atendimento virtual à custo bem em conta. E outra. A culpa fora toda minha, pois comodista e acreditando na indicação de uma antiga  colega de faculdade  eu me livrava dos malditos consultórios, divãs freudianos, distante das filas dos elevadores e  dos abarrotados estacionamentos da caótica cidade de São Paulo.

Olho novamente para o relógio do Windows e agora ele aponta para quase 02:30 da manhã.
Repentinamente  um "Plim" –  O sinal sonoro dava conta que alguém surgia online. Olho pro boneco verde e  a pessoa  me  é visceralmente  familiar. Penso por alguns instantes e recoloco os fones de ouvido  e abro outra vez a webcam.

-Filho, boa noite! - Ela se antecipa e me cumprimenta com voz trêmula. Era normal, um fator de idade.

-Boa noite mamãe! O que foi? - respondo impaciente. Era estranho, mas mamãe sempre me causava certa impaciência.

-Ah filho... a mamãe ta preocupada com você. Olha pras tuas olheiras. Aposto que não anda comendo  direitinho, não é?  -  A sua fisionomia era crítica. Bem, nem sabia a finalidade das considerações; mamãe pesava 47 quilos e também tinha olheiras profundas. Olheiras, amor e críticas,

-Ah mãe, me alimento sim. Ao meu jeito, mas me alimento – Eu me tento me defender.

Eu olhava para mamãe e o ridículo de estarmos naquele papo e numa hora daquelas. Jesus Cristo!  Talvez a minha insônia fosse herança da própria árvore própria genealógica. – Concluí ao observar seus olhinhos notívagos. E ela, por sua vez jamais se aperceberia  do constrangimento que ma causava, ainda mais para um sujeito na minha idade. Certamente não tinha consciência que me tratava como um garotinho que se leva à escola municipal com a lancheira à tiracolo.

-Ah filho, você ta muito magrinho! Veja no espelho as tuas profundas olheiras? - Ela suspira preocupada. Ah meu Pai! Íamos começar tudo de novo.

-Mamãe, Eu já te falei. To muito bem! E a senhora sabe que quando finalmente pego no sono nem Boeing me acorda! Nem que entre pela janela e deite ao meu lado na cama!

-Ah, isso é! - Ela rechaça -  Também roncando do jeito que ronca jamais ouviria a turbina do tal avião! –  Mamãe ri da própria galhofa. Sim, mamãe era assim, mais sarcástica e irônica que propriamente autoritária, ao contrário de outras épocas em que me fazia tremer e esconder debaixo da cama.

- Está bem mamãe! Um beijão e fica com Deus! – Despeço-me imprevistamente. E  antes que viesse com novas recomendações a bloqueio sem tremer ou me esconder na casinha do cachorro.

Pronto aquele assunto estava resolvido. Porém o que não se resolvia era a minha fome. Ela precisava ter me lembrado?  Espreguicei-me e rumei para a cozinha onde na geladeira encontrei apenas os restos dum frango assado de três dias - Blargh! Olhei pras  peles tostadas, pras coxas esbranquiçadas e senti náuseas.
Sem nada de bom que pudesse comer preparo a terceira caipira de vodca e volto para o computador  e percebo que a Cantina e Pizzaria Cosa Nostra está online. Desbloqueio e escrevo em letras garrafais:

-XANG  LEE,  POR FAVOR,  AINDA  ESTÃO  ATENDENDO  PEDIDOS? – Óbvio, era necessária a caixa alta; Xang Lee era portador de avantajada miopia.

Interessante é lembrar-se de como aquele chinês  herdou a Cosa Nostra  e o tino comercial de sua família. O local onde hoje funciona a cantina foi uma pastelaria. Todavia o passar do tempo e a pouca rentabilidade fez Xang esquecer os engordurados pastéis e optar por outro ramo gastronômico. Soube do fato através da conversa que tivéramos  numa das  vezes que estive na pizzaria; Eu me dizia surpreso por ver um chinês tornar-se dono de cantina, negócio tipicamente dos oriundos italianos, e ele, por sua vez  argumentou que igualmente os italianos invadiram em muito os negócios chineses, sobretudo no ramo das lavanderias. Sim, pensei ao que dissera e ele estava correto, ainda mais diante dum mundo globalizado onde o que conta é a eficiência e na qual deixa de prevalecer as predominâncias étnicas ou tradições.

Foi o que recordei quando  Xang respondeu pelo MSN que ainda estavam em funcionamento. Mediante a sua confirmação e não querendo confiar apenas na solicitação das letras  abro a webcam e peço ao vivo no microfone:

-Xang, pode me mandar ½ aliche, ½ mussarela?  - Ele sorri, e depois prestativo responde:

-Xim sinhôro Bates! Vinte minutos a pizza tai em xua casa! - Xang me confirmou trajando um novo e surpreendente uniforme, uma túnica  em amarelo-canário onde um enorme bordado no bolso superior esquerdo escancarava em vermelho uma inexplicável Torre Eiffel. Procurei naquele bordado a relatividade entre Itália e a França e não a encontrei. Ainda pensava naquilo quando ele finaliza:

– Plontinho! O pleço é "qualenta leais e tlinta centavos" E vai junto biscoitinho da sorte e Gualaná Dolly di glátis!

Eu sorri da forma que falou, pois  Xang era esperto e sabia como conquistar a sua clientela, apesar da marca do guaraná. Com 45 minutos de atraso eu recebia a pizza. O rapaz me entregou a caixa quadrada e o refrigerante. Dei-lhe o dinheiro e alguma gorjeta e ele se foi. Ao abrir, a surpresa: Era de camarão. Camarões enormes, bem assados, apetitosos, apesar de a pizza parecer  um tanto morna.
Bem... Eu não tinha nada a ver com a incompetência dos chineses que se metiam em negócios italianos, já que algum clinete daria a falta daqueles maravilhosos camarões; Ele que se acertasse com Xang - pensei -  Degusto quatro dos oito pedaços e me sinto fartado.

Aí veio a preguiça. O que fazer? Um filme na TV?
Não! Filme em TV é um saco, geralmente reprise. Além disso, o que aborrece são aqueles comerciais enfadonhos que interrompem a trama  a cada 10 ou 15 minutos. Passo os olhos pelos DVDs na prateleira e eles também não me atraem; assisti cada um daqueles filmes uma dezena  de vezes.
Vou à janela, retiro um cigarro do maço e fumo. No prédio de frente,  à coisa de 40 metros um casal se beija próximo à janela do apartamento deles. Eles se bolinam e as mãos dele parecem tão rápidas quanto seus desejos. Não decorre um minuto e a mulher ao tentar fugir das carícias, e o homem ao girar o corpo para alcançá-la dá pela minha presença, mesmo que distante do meu prédio. Sou um indesejável, intruso, portanto ela cerra  a cortina e eu me amaldiçoo por ter deixado as minhas luzes acesas, pois uma boa sacanagem talvez quebrasse o desencanto e a monotonia.

Deus, que ócio! Minha vida era nada mais que tédio. Bem... Eu poderia jogar xadrez, afinal, o Windows Sete tinha um ótimo jogo; Não, não! Vivia sendo surrado pelo maldito programa– Concluí enfadado.
Sem saber o que fazer com a insônia que me aflora os nervos retorno para o computador e revejo a lista dos contatos do MSN e  mais de 90% daqueles 100 nomes são de mulheres.  Mulheres com as quais tivera algum contato pelas andanças virtuais, e diga-se, gente que nem mais me recordava. Felizmente para mim e para elas e a fim de evitar  constrangimentos do tipo – “Oi. conhecemo-nos onde, em que sala, que comunidade?” eu sempre as mantinha bloqueadas.
Antes, todos os nomes eram liberados e paguei muito mico pela decisão. Lembro-me que numa ocasião e que certo que a pessoa da foto com quem eu conversava era a Marta, uma professora de cursinho que conheci numa comunidade literária de Orkut, mantive o seguinte diálogo que, ao fim acabou me constrangendo:

-Oi Marta, tudo bem? Como estão marido e filhos? O menorzinho melhorou da caxumba? - Ela demorava para responder. De repente.

-Cara, você é maluco? Meu nome é Eunice, sou lésbica e odeio crianças! - Respondeu, e pelo jeito, irritada. Fiquei na minha e não  passou mais de um minuto e Eunice fechou o MSN em minha cara. Provavelmente eu conhecera aquele figura em alguma sala de sexo da Uol.

Ria daquelas lembranças quando novamente segui os nomes dos contatos; Bingo! Estava lá e ainda online! – CASA DE MASSAGENS LEONORA – Lembrava-me bem de Leonora. Talvez uns 45 ou 46 anos, conservada, coxas grossas e seios volumosos. Eu estivera em seu respeitável estabelecimento por cinco ou seis ocasiões. Era uma casa enorme e de muitos quartos com banheiras de hidromassagem. Aliás, á bem da verdade é bom que se diga que  esse segmento que pretende abocanhar executivos com a indicação de "massagens" é uma grande farsa. Mentira porque as meninas fazem barbaridades com nossos corpos, exceto ao que se propõem; massagens. Rememoro então a terceira vez que ali estive e Leonora me chamou discretamente e me entregou seu cartãozinho. Olhei; além do seu número de celular constava também o MSN. O cartão eu perdi, mas ja havia cadastrado o seu MNS. Lembro o que falou no ato de me entregar o cartão:

-Assim é mais fácil, rápido, prático! Esquema Delivery, sacou? - Disse à queima roupa e a bordo dum sorriso canalha impregnado em seus lábios vermelhos.

-Claro, claro, saquei! – Confirmei à época ao piscar-lhe o olho.

Sem me perder das lembranças continuo com os olhos fixos naquele nome quando me pergunto; Cara, você está realmente a fim de alguma mulher? Eu não sabia. Não era a falta de mulher que me matava, era o tédio. Tiro no "cara ou coroa"?  - Penso comigo -  "Cara" - Decido - Tiro uma moeda do bolso e jogo para o alto e ela bate em meu polegar e rola ao chão.  Mesmo sem me cientificar do lado que a moeda caiu decido e desbloqueio Leonora, e outra peço a solicitação de webcam:

-Oi meu querido! – Ela exclama. Evidente, minha fisionomia e a grana deixada em seu estabelecimento da última vez talvez selassem em meu rosto a expressão: VIP

-Leonora, boa noite! Como estamos de garotas? – Pergunto num sorriso forçado.

Leonora está vestida numa negra blusa de tule, transparente, e que deixava à mostra o formato dos apetitosos seios. Eles parecem estar em plena forma e se adornam num sutiã  branco talvez, menor dois números ao que deveria ser. Olhando atentamente para o seu par tive a impressão que ansiava mais que a liberdade condicional, parecia louco pra se ver livre de vez do tecido que o entrincheirava No rosto, Leonora carregava uma maquiagem pesada,  azul, lilás e verde, assim como se estivesse pronta para um baile de máscaras.

-Xi, meu caro Bates! Numa hora dessas não sobra  grande coisa, todas já se foram! Pra te falar a verdade está aqui unicamente a Sheylinha. Lembra-se dela?

-Sheylinha... Sheylinha. Ah sim, lembro... Aquela magrelinha de bumbum atrofiado –  Digo num tom de decepção.

-Sim, essa mesma!

-Bem, se não há outro jeito... quanto ta a morte? – Perguntei

-Hum... pra você, fim de noite... faço 150 pratas. Ta bom assim?

-Cem pilas e nenhum centavo a mais! – Propus. Certamente Sheylinha não valia nem a metade daquilo.

-Fechado! – Ela responde num quase “ufa! nem tudo está perdido”

Menos de ½ hora e o porteiro me chama ao interfone.

-Seu Bates, tem aqui uma... uma - Ele está constrangido. Realmente sua simplicidade nordestina não sabia mexer com as questões tão complexas da prostituição.

-Já sei quem é Adrael! Peça que suba, por favor.

Sheylinha toca a campainha e eu abro a porta. Ela fede à bebida barata. Vinte e poucos anos, a calça jeans agarradíssima faz suas pernas magérrimas darem a impressão que se livrarão do pano e acertarão bolas de bilhar. Ela nem pede licença e vai entrando e se desfazendo de algumas das roupas. Primeiro se despe da camiseta branca que traz no meio do peito um letreiro descascado na cor prata, mas onde ainda se é possível  ler: - Eu sou, mas quem não é? – Em seguida retira as calças ficando apenas de calcinha e sutiã.
Definitivamente Sheylinha não me causava qualquer tesão:

-Ô seu Bates, bora andar logo por que daqui a pouco  eu tenho que pegar o buzão no Parque Don Pedro. É o "negreiro" -  Ela comunica. Aquilo me aborreceu, pois não há nada pior que prostituta apressada, ainda mais para um último ônibus.

-Calma filha! Não quero trepar, não. Vamos apenas conversar! –

-O senhor não vai brincar de pif-paf comigo? – Ela exclama e gargalha numa feição à-toa.

-Isso mesmo! Sem pif-paf hoje - Confirmo

Ela se aquieta e conversamos por um tempo e eu soube de todas as desgraças que cercam a vida das prostitutas. Uma história triste como tantas de outras de garotas vindas dos confins para um grande centro à procura do lugar ao sol. Porém o bom senso sempre indicou cautela e ceticismo com as histórias de meretrizes  Antes de ir  embora ela ainda se oferece.

-Seu Bates, tem certeza que não quer pelo menos uma bronha ou um boquete?

-Não, Sheylinha. Hoje não quero nada! – Garanto-lhe com um piscar codial.

Com a resposta ela se veste à minha frente e eu sinto comiseração pela criatura.  Há nela um olhar de criança inocente, de quem está doída, machucada. Provavelmente existam nela muitas cicatrizes e sinais duma dura existência e  daquilo que convencionamos alcunhar de "mundo cão".
São 05:35 da manhã quando Sheyla deixa o apartamento com o dinheiro dentro do bojo direito do sutiã. Ela me acena e dá o último sorriso vagabundo.
Assim que se foi tudo se tornou escuro,  quase negro.
Volto ao computador e há apenas três pessoas que se mantém acordadas naquela hora. Pessoas quais também não me recordo. Desligo o aparelho e vejo a tela do monitor definhar comigo, morrer comigo, e agora não há mais vidas ali, há apenas um monitor de cristal líquido que finalmente se livrou dos malditos anúncios multicores. Deito a mão nele e ele está quente, cansado, portanto também merece descanso.

Lembro também que saindo da sala fui ao banheiro e dei uma bela mijada. Depois escovei os dentes,  lavei o rosto e a feição que vi refletida no espelho me assusta. Eu parecia estar com mais de 50 e não os 41 que de fato tinha. Dirijo-me ao quarto e visto o meu pijama de flanela. Olho para ele e sorrio de mim e da  lembrança duma certa vez, onde ébrio e numa roda de amigos confessei que usava um daqueles. Foi o suficiente para me tornar o alvo das suas gozações– “Isso é coisa de boiola, de gay!” - Eles gritavam e riam e anunciavam o meu pijama para os outros clientes que bebiam e comiam petiscos. E eu apenas ali, sem graça, rubro, até que a vergonha aliou-se á minha raiva e mandei todo mundo se foder, inclusive o garçom metido à gozador; Que fosse  à merda toda  aquela cambada de recalcado, pois  jamais  me separaria dos meus pijamas de flanela, quisessem ou não. Ainda com a feição contrariada pela lembrança ajoelhei à cabeceira da cama.

-Pai, faça que meu dia hoje seja diferente ao de ontem!  - Pela primeira vez em anos eu rezava. Pela primeira vez em muito tempo eu pedia algo para Deus. E pedia com devoção.

Em seguida rezei três padres nossos e fiz o sinal da cruz. Algo necessitava ser mudado dentro de mim, por isso pedi com fé. Terminado, enfiei-me debaixo do cobertor.
Pela janela a claridade ainda amena me fazia ter certeza que um novo dia estava à caminho. Sim!  Sempre haverá um novo dia que poderá me reservar sol, chuva, gente que ama, gente odeia, coisas boas, coisas más. E nesse mesmo e renovável dia o mundo persistirá girando sobre o seu próprio eixo e nós não o sentiremos, aliás, jamais sentimos.  O planeta terra será notícia, sempre. Notícias que espocarão em frações de segundos na rede, nas rádios e nas TVs. Notícias que darão conta de tragédias e atrocidade num mundo que agoniza. Notícias que eu só terei ciência quando acordar lá pelo meio da tarde, mau- humor, boca amarga, ainda ébrio de sono por mais uma ordinária madrugada.
Algo andava muito mal dentro de mim, e pela primeira vez em anos eu queria mudar as rotas do meu subterrâneo, eu queria amor que não naufragasse. Eu precisava de voz aveludada, de sorrisos generosos. Necessitava de alguém que me abraçasse pela cintura e que desligando a TV depois da sessão da novela das oito e me convidasse para uma grande noite de amor. Esse mesmo amor sempre me foi estupidamente complexo e incompreensível e dum mesmo tom da virtualidade que me tornara.
Fiquei pensando naquilo por alguns bons minutos e quando  outra vez olhei para a janela percebi que cortina não mais atenuava a claridade da manhã. E aquilo me impressionava, de como a luminosidade em fração de minutos se apoderava de tudo. Talvez a claridade me fosse a esperança, o salvo conduto para que algo se acendesse dentro de mim.
Remexi-me na cama por mais alguns instantes até me sentir aquecido pela flanela do pijama e do cobertor

-Que se fodam, aqueles babacas! - Praguejei-lhes uma última vez.

Era a hora do subterrâneo dormir.


Copirraiti 23Ago2011
Véio China©

Um comentário:

Eu, um ser... disse...

Nossa! Quantas noites de sono passei e passo... Um dura realidade dos notívagos.