sábado, 24 de dezembro de 2011

Operação Tequila - The Natal -


Olho para baixo e as pessoas parecem do tamanho de brinquedos. É na sacada do 23º andar que vejo parte da minha  cidade amanhecer e depois repousar. Sento-me na espreguiçadeira e retiro um cigarro da  carteira enquanto observo as luzes natalinas cintilarem  nas janelas e varandas dos edifícios vizinhos.
Algo me incomoda. Levanto e encaminho-me para o peitoril  e novamente olho  para baixo e noto que muitas pessoas zanzam pelos jardins do nosso edifício enquanto outras rapidamente abandonam o condomínio.
É noite de Natal, noite onde cada um de nós tenta  parecer ou sugerir a ideia de ser ou estar feliz. No apartamento vizinho ouço a mesma música de anos anteriores e Simone canta "Então é Natal". Olho no relógio e os ponteiros indicam algo mais que 23 horas, e o "facto totun" diz que em  menos de uma hora champanhes serão estouradas num brinde com os votos de Feliz Natal. E as pessoas sorrirão e serão simpáticas e  trocarão presentes e abraços antes da ceia natalina ser avidamente consumida.

As pequenas lampadas multicolores continuam piscando quando amasso o cigarro no cinzeiro e volto ao bar no fundo da sala e sirvo-me de outra generosa dose do meu Ballantines. Era o meu primeiro Natal sozinho.

-Aristides, seu devasso! Por que essa falta de Deus? – A pergunta me fora feita por minha ex-mulher, um ano antes, precisamente dia 23,  antevéspera do Natal.

-Jesus! Você é uma criatura vil e pecadora! –  Nervosamente ela insista.

Naquele momento, Eleonora deixou cair pesadamente o corpo sobre o nosso sofá  de cinco lugares.
As coisas ficariam muito ruins para o meu lado; É que apenas não percebera que ela chegara em casa e adentrou o meu escritório sem que percebesse que se postou às minhas costas. E qual seria  o motivo para tanta indignação e ira? Simplesmente o que ela viu na tela do meu computador.

Ao vê-la  desfalecida preocupei-me correndo à cozinha e trazendo-lhe um copo de água gelada com algumas gotas do adoçante predileto. Auxilio o copo em sua boca que lentamente ingere o líquido. Se refaz, levanta-se ainda amparada em pernas titubeantes e procura na bolsa a cartela do Prozac; Eleonora é depressiva e viciada em comprimidos. Depois com ela em mãos  vai ao meu computador  e salva alguns arquivos e os envia diretamente para o seu e-mail. Por fim abandona o PC e caminha para o bar das sala onde escolhe a garrafa de um bom vinho do Porto. Escolhida,  ela  a passa para mim; Eleonora jamais conseguiu a suficiente força nas mãos para abrir uma daquelas. Abro e derramo a bebida em sua taça enquanto sua indiferença olha para o líquido rubro  como se fosse ele o sangue escorrido dos meus pecados. Vagarosamente leva a taça à boca e ingere uma boa dose junto de duas drágeas. Fora  pouco; Serve-se mais duas vezes antes que o corpo e  a mente se tornem refém da fluoxetina. Em menos de uma hora está completamente bêbada e dopada, porém me acostumara com aquilo.

No dia seguinte acordo com alguém tagarelando ao meu lado. Era Eleonora que convocava nossos filhos para naquela mesma noite estarem na ceia de Natal. “Precisamos tratar de assunto de vital importância ” ela  diz ao final de cada das ligação - " E por favor, não falte" -. Ela recomenda a cada um deles. Desligado o aparelho e sem me olhar ela  levanta-se da cama como o robbie ajustado ao corpo e retira-se do quarto. Sua atitude me deixou reflexivo já que desde a noite anterior ela e eu não mais trocáramos qualquer palavra.

À noite, precisamente às 20 horas lá estavam os nossos três filhos: Alessandra, 28 anos, psicóloga.  Alberto, 27 anos, advogado, e Kaic, 24 anos, grafiteiro profissional. Ah sim,  presente também Cecilia, nossa caçula de 12 anos e que morava conosco. Sobre ela é aquilo que  defino como a paixão de minha vida. Alegre, inocente, linda, infelizmente Cecília  requer atenções e cuidados especiais.
Após os cumprimentos rotineiros Eleonora se mune do seu notebook e junto dos  filhos se dirige à biblioteca anexa à sala de estar; A reunião tinha o seu início apesar de não compreender a necessidade de  Cecília estar entre eles. A bem da verdade, assim que a porta foi fechada  um pressentimento dos piores se instalou em mim.

Passados talvez uns 30 minutos eles saem com feições carregadas tal qual a minha premonição, exceto os largos risos de Cecília, provavelmente sem compreender o motivo de tanta alegria.  Colocados diante de mim Alessandra convida-me à sala de estar,  talvez por ser a filha mais velha. Como era de se esperar o seu ranço autoritário  assume o comando e ela  exerce aquilo que pude deduzir como perícia psicológica.  Pelo jeito o veredicto seria pronunciado.

- Papai, você sabia... - Ela começa empurrando para cima os óculos que deslizam pelo nariz - ...que meus amigos psicanalistas comentam que hoje em dia o sentido de culpabilidade dos pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção de pretender o prazer? - Nesse ponto ela assume um tom professoral. Aí finaliza entregando-me o troféu " A carapuça do ano" - Agora, assim como o senhor as pessoas não mais se sentem culpadas quando têm prazeres ilícitos ou infiéis, e...

Deus! Eu não suportava aquele blábláblá acadêmico. Seguramente  o que me irritava em Alessandra era aquele fanatismo por Freud, Lacan e tantos outros.  Para mim e sem exceções eram  uns desajustados.
Eu olhava Alessandra e ouvia-lhe a voz e assumia que eu fora um dos responsáveis por sua mocidade enfiada em livros acadêmicos  e nas salas de aulas de duas faculdades. Terminadas ambas sobraram-lhe responsabilidades mas, faltaram as alegrias de um bom casameto e um par de filho brincando num play ground qualquer. Aliás,  houve o casamento, porém, outro dos seus enganos.
Eu persistia o olhar nos seus lábios carnudos e percebia claramente  que a solidão cobrava o seu preço ao deixar-lhe a alternativa dum próprio e concorrido consultório na charmosa  Avenida Europa. Aliás, eu sabia muito mais sobre o seu sucesso; Ricos, como três mais três são seis, sempre supusseram-se problemáticos; Óbvio que a tese jamais se aplicaria a mim, um rico de raízes humildes e dos pés e mãos fincados em terras de produção de laranjas.  Sendo assim, Alessandra nada poderia trazer que me fizesse modificar a postura ou alterar a visão que eu tinha da vida e dos problemas que enfrentávamos.

Porém não era somente Alê a dona de todas as verdades desse mundo caótico. Agora era chegada a vez de Alberto, um rapagão de  inteligente rara, mas de tão baixa- estima como a  de se tornar atormentado pela traição de Claudia, sua ex- noiva, roubada por seu melhor amigo e bem debaixo de suas lentes esverdeadas.  Após veio o cancelamento de um casamento que tinha tudo para ser pomposo. Lembro-me que naqueles dias, amargurado,  apegára-se à mãe como se ela pudesse protegê-lo mais essa vez  e evitar que seus  olhos marejassem além do sugerido pelo bom senso.
Portanto com aquilo que ele poderia supor como "coincidências"  é que chegou a sua vez. Sem dúvida que defenderia a mãe a qualquer preço, ainda mais agora  preso pelo cordão umbilical.

- Papai, na separação judicial litigiosa o cônjuge protagonista da separação tem que comprovar os motivos elencados no artigo 5.o da Lei do Divórcio - E pelo jeito foi nisso que o senhor incorreu; em grave conduta de desonra...

Ainda com a severidade citou que o artigo estabelecia que a separação judicial devia ser pedida por um dos cônjuges quando esse imputasse ao outro a conduta desonrosa ou que importasse em grave violação dos deveres do casamento... - Nesse instante ele faz uma pausa, dessas que tentam impressionar o corpo de jurados para uma sentença favorável; Provavelmente para ele ali não estava o pai, mas sim o réu.

Por fim acusou-me de permitir que a situação chegasse nesse ponto de incompatibilidade. E ele estava certo. Era esse o preço a ser pago por ter sido pego com a “boca na botija”.  Poxa vida!  Por que Eleonora aparecera naquela hora?

Foi o instante que a eloqüência jurídica de Alberto foi abortada por Kaic. Ah! Ele também necessitava tirar uma lasca do pobre Aristides. Porém, o que Kaic poderia me dizer? Justo ele, um sujeito de vida tão aparvalhada, envolvido com escândalos, meretrizes e boemia?
E ele disse o previsível,  porém de forma bem menos sofisticada que os irmãos:
-
-Aí  velho! To sabendo do teu Hip Hop com a gringa do MSN. Pelo jeito tua casa caiu! O que você fez foi crocodilagem das grandes. Ainda mais porque a mãe te pegou. Sabe mano, esse lance de pretender ser Freestyle não combina com você!

Despejou de forma jocosa. Eu sentia o seu sarcasmo ante os implacáveis olhos de Eleonora.
Após, simulou calma voltando- se para a mãe num tom demasiadamente forçado, desses que por  mais que nao queiramos acabam por soar falso.

-Sabe mãinha...Se esse lance tivesse sido comigo eu chamava os Ratos de cinza. Olha minha mãe, saiba que sempre estarei no mil grau contigo. Pode confiar! - Para finalizar abrandou a voz - Apesar de que às vezes você minha mãe parece-me algo "Wilde style", porém isso não quer dizer que  te considere uma Toy -

Eleonora, perplexa,  olhou para ele e não emitiu qualquer comentário. Da minha parte freei a vontade de rir, afinal, não um bom momento. Ah sim, sobre Kaic apenas a elucidação que passou duas temporadas grafitando murais de Salvador. Portanto o “meu rei” e “mãinha” eram mais que justificáveis.

Naquela mesma noite fiquei matutando sobre o seu palavreado de maneirismos e a curiosidade  fez-me procurar na internet alguns desses significados do universo hip hop. E encontrando algumas traduções  consegui compreender o recado que o "Brow" nos dera, principalmente sobre os tais  “Ratos Cinza” que significavam o uso de força policial. Depois, na parte mais amena me julgou um "free"  no “Freestyle” ou seja; um sujeito libertino, porém muita responsabilidade.  
A parte que coubera à Eleonora se encaminhou com mais suavidade, já que “Wild style” é alguém que não se faz entender por completo, e “Toy” que condiz com a pessoa que não faz o mal, que não é má e nem pretende prejudicar alguém.

Terminada as colocações  Eleonora pigarreia e depois de certa que a garganta encontra-se limpa e que sua voz soaria será audível, dirige-se para mim. A sua feição é dura, e a voz também.

-Aristides, eu quero o divórcio! Ouço o seu pedido com a máxima atenção.

-Sim, eu dou! - Concordo. Era mais que sabido que o nosso casamento vivia de indifrenças e horas extras.

-Aristides, também pretendo ficar com a casa – Ela diz apontando o indicador para o piso de jacarndá.

-Claro! Tudo bem. –  Aceito. Pelo jeito a primeira parte do acordo estava am andamento.

Depois dos advogados veio o acordo  dos bens, o valor da pensão pensão judicial e a necessária paz para estar  neste apartamento de quatro quartos e três suítes encontrado às pressas. Apartamento que não me exime da análise de nossa vida e da probabilidade do casamento ter feito água após o nascimento de Cecília. E concluo dessa forma porque sempre nos fora  difícil aceitar que ela era um bebe dotado de excepcionalidade. É é mais que provavel que até hoje culpemos um ao outro pela gravidez  fora de tempo e imprevista.  Contudo,  depois de constatada a tal anomalia tentamos a fé,  promessas, ofertórios e tudo que um bom cristão possa imaginar.  Lembro até que num rompante da crença fomos à Aparecida do Norte certos de  que providências divinas seriam tomadas e elas  livrariam o nosso anjo de toda e qualquer imperfeição.  Não deu certo e nem a foi a fé que faltou; Talvez Deus tivesse outros planos para nossa garotinha.

Daí em diante eu me vi desmoronado nos caminhos do Senhor. Eleonora não, contrária, se apegou á Deus na espera que ainda se operasse o milagre.  E não fora unicamente a Deus que ela se apegou, mas  também aos ansiolíticos e o vício da bebida. E isso isolava nossa vida comum que aos poucos deixava de ter coisas em comum; Eu ia ao futebol, ela, à missa. Ao jantares e comemorações, ela, às novenas. Eu precisava de sexo, eventual, porém ela abraçara o celibato apesar de se permitir uma vez ou outra, aliás, talvez nem fosse ela, mas sim a bebida.
E o que já não vinha bem piorou quando insistiu em colocar um imenso quadro de Cristo defronte à nossa cama. E mesmo bêbada já não me permitia ver partes do seu corpo e nem sentir o cheiro bom dos seus perfumes de mulher. Ainda tentei por quatro ou cinco vezes fazer  amor diante da imagem santa. Porém a frieza  de Eleonora aliada aos espetaculares olhos do filho de Deus freavam toda e qualquer iniciativa. Por vezes eu fitava o azul dos olhos  e eles parecia um oceano ameaçador; Sempre tive para mim que os olhos  daquela tonalidade eram mais desafiadores e penetrantes dos que quaisquer outros. Assim, com pouca intimidade eu e Cristo também fomos  nos afastando e tornando-nos indiferentes ao outro.
Quanto a mim e a Eleonora os nossos  antigos traços de intimidade cúmplice foram exaurindo  até se extirparem de vez. Não restara mais nada. Não havia conversas, críticas ou incentivos, mas apenas a indiferença, a bebida e os ansiolíticos. Lembro duma vez que vendo o barco naufragar tentei uma conversa com Jesus quando disse : “Ei filho de  Deus, você pactua com tudo o que está acontecendo?” - Como resposta eu só obtive o exuberante olhar azul além do temor que ele me causava.

E assim,   meio que sem eira e nem beira é que fui me afastando de Eleonora até chegar àquilo que os experts em internet taxam de "SECOND LIFE" -  Ou seja uma outra vida,  virtual -  Na época recordo-me que pouco conhecia desse mundo virtul,  fato que persistiu até que o chefe do RH da empresa me ensinou os caminhos e eu comecei a navegar. Foi com ele que descobri as salas de bate-papo, que aprendi a interagir com as pessoas e esquecer-me um pouco da solidão. E essa vida virtul acentou-se quando Eleonora mudou-se para um outro quarto vago sob a alegação de que eu roncava e que isso não a deixava dormir, numa argumentação estranha já que eu roncara por toda uma vida.  Com os corpos e quartos separados comecei a usar a internet de forma intensa e descobrir outros sites de relacionamentos. E foi num daqueles que conheci Tâmara, a “gringa do MSN”.  Á princípio meu relacionamento com aquela mulher 15 anos mais nova foi cordial e respeitoso. Entretanto, o tempo e a carência que esbofeteiam as faces dos solitários fizeram- nos aproximar até tornarmo-nos tão íntimos quanto cúmplices naquele nosso novo jogo; o sexo virtual, o qual, infelizmente foi presenciado por Eleonora naquela ocasião.

E aqui estou na solitude desta noite de Natal. Eu gostaria muito  mas,  Tâmara não poderá estar comigo já que está às voltas com um casamento tão fracassado quanto o meu. Enfim,  ela é persistente e aguarda o milagre num marido que a valorize, corteje e que ache o seu corpo e sexo mais atraente que aqueles que lhes são dados de forma gratuita ou que o seu dinheiro tenha que comprar. Enquanto o milagre  não se realiza, Tâmara insiste na crença das mudanças fazendo que não percebe o sentimento que nutro por ela.  E eu não tenho pressa, pois a precipitação nunca foi e jamais será o meu forte. Não vou forçá-la e nem pressioná-la, mas chegará o dia que ela notará que o seu jogo de canastras foi vencido mas,  que não foi por ela. E é desse jeito que aguardo o desfecho de mais uma novela,  uma mais às tantas que a vida sempre nos impõe.

É nisso que penso  quando ouço um "plim plim" distante que me avisa que o peru á Califórnia está no ponto . Vou á cozinha e retiro do microondas uma dessas embalagens prontas que comprei numa rotisserie próxima de casa. Acomodo no aparelho uma porção de arroz para ser aquecida e vou ao refrigerador  retirar a travessa de salpicão de frango e uma torta de amoras.
Não passam  mais que 10 minutos e a mesa está posta e será acompanhada duma imprevisível garrafa de Tequila. Sim, sei que pode parecer absurdo, mas dei preferência a acidez da Tequila que ganhei de um amigo mexicano. Olho para a bonita embalagem que trazia um pequeno copo estilizado e o retiro da caixa colocando-o sobre a mesa.

Cravo o olhar no relógio e penso que o bom velhinho bem que poderia estar descendo pela tubulação do exaustor. Insisto na imaginação e sorrio; Sim! Mas o que poderíamos dar de presente um ao outro? Talvez um bom scotch de 25 anos?  Uma vodka polonesa ou russa?   Eu reflito sobre a sabedoria daquele olhar de quem tem sobrevivido aos séculos e  tento supô-lo-o safado, passando a mão no rabo da estarrecida  Matilde ,minha fanática empregada evangélica - "O sangue de Cristo tem poder! Aos quintos dos infernos satanás barbudo!" - Ela o excomunga enquanto o bom velhinho mescla os infinitos “HO HO HO”  aos ébrios soluços da bebida.....

Continuo a escapulir de mim e persito delirando enquanto outros devaneios me tomam  a mente  levando-me a questões absurdas e insólitas. -  Será que algum dia Papai Noel ficou de pileque? - Sem qualquer indício ou pista eu abro a  Tequila e abasteço meu copo duma dose farta que me queima as estranhas ao percorrer um emaranhados de capilares - E se eu e o velho Noel convencêssemos algumas garotas “da noite” para nos brindarem com um “pulling dance”?  Heim? - Dessa vez aquilo que há de devasso em mim o imagina  excitado  num momento que suor lhe banha o rosto e o óculos tal qual o de Alessandra desliza no  nariz de tez oleosa.  Porém Papai Noel é íntegro e  perturbado com  a proposta não permite que elas se dispam, abortando assim a pecaminosa dança - “HO HO HO” -  O bom velho brada ao colocar-se ao lado do seu véiculo de  ilusões  -  “Entrem garotas.Todos nos esperam!" -   Ele as convida  para uma volta ao redor do mundo no trenó encantado – “Há muito trabalho para fazermos!” –  Bonachão ele brada para elas ciente de que não está solitário, agora. Elas se mostram surpresas e aceitando o pedido tomam seus assentos - “ HO HO HO. ADIANTE!” - Ele ordena assumindo as rédeas, incentivando  suas renas para o  alucinante voo  daquele serviço que executa com  a mesma presteza de sempre . - "HO HO HO” - Eu o vejo feliz ao zarpar  com destino à imensidão do nada; Ele  sabe que nesse dia o Planeta lhe pertence. E ele vara o espaço e seus "HO HO HO"  ecoam pelo universo, de polo a polo, de mar a mar até riscarem todos os ceus e à tempo de se livrar de todos os seus embrulhos. E eles, um a um são jogados por todos os cantos diante das garotas  que gargalham depravadas enquanto suas  saias, la no alto , deixam à mostra nacos de suas coxas alvas e indecentes....

- Ou Ou Ou......... - Acorda-te Aristides! Ordeno para o pouco que há de sóbrio em mim,  incrédulo das minhas tantas sandices quando o telefone chama. E eu olho para ele que nervosamente reverbera em meus ouvidos num claro sinal que não pretende parar. Com alguma  dificuldade motora saio trançando as pernas e  vou atendê-lo; Eu precisava dar um fim naquilo.

-Alôuuuu! É o  papai? – Eu reconheço a puerilidade da voz da minha garotinha.

-É claro que é o papai, filha! Estou morrendo de saudades de você! – Respondo, feliz. Ao fundo e do outro lado ouço a voz de Simone numa antiga canção de Natal. Emociono-me.

-Papai, sabe de uma coisa? -

-Não filha! O que?

Silêncio do outro lado. Aos poucos percebo o estralos de sua língua ao encontro do céu da boca; Geralmente ela o fazia quando algo a excitava ou a deixava ansiosa.

-Papai, você sabia que amo você? – Ela confessa, pura e delicada como sempre.

-Claro que sabia! O papai também te ama muito, filha! – Eu fazia o possível para renegar as gotas que ameaçavam brotar abaixo das pálpebras.

-Papai? - Ela pergunta continuando a estalar a boca.

-Sim filha!

-Sabe que acho o senhor muito “espétinho”?  – Eu sorri; Cecília sempre teve dificuldade com essa palavra. Certamente ela pretendeu falar “espertinho”

- Eu sou sim! E você sabe o que é? Você é o meu chocolate branco, a minha doce paixãooooooooooo! – Prolongo a sílaba final; Cecília adorava quando eu lhe falava daquele jeito.

-Papai...Eu sinto muito a sua falta, viu?  Um Feliz Natal pro senhor! - Ela conclui.

Em seguida a ouço desligar do telefone. Repentinamente, como se fosse uma onda extraordinária sinto-me invadido por uma sensação melancólica que agora não me polpa as lágrimas. Tento bancar o durão e dispenso-me de usar guardanapo da mesa e procuro me afogar em outras recordações quando percebo o resto do whisky deixado no copo ao lado do da Tequila – “Sim cara! Você bebeu muito, muito!” - Confesso cheio de repreensões - "Seu maledeto! Pretende acabar comigo?" -  Brigo com aquele dedo de ótimo malte. Eu continuo a olhar para o líquido como se me devesse algum pedido de desculpa. Naturalmente, nao houve qualquer resposta -  Talvez o Sr. Ballantines não pretendesse perder o seu tempo comigo....

Lá fora, agora,  a algazarra é intensa  e  gritos de comemoração são ouvidos enquanto e o céu se colore do espocar dos fogos. Vou à varanda e clarões de todas as matizes riscam o céu  deixando  rastros duma homenagem mais que merecida. Olho para a noite tão diferente de todas  e tudo me parece dotado de racionalidade e lógica. Continuo olhando para aquelas cintilações multicolores e sei que em tudo há a esperança  tanto quanto existe o bem e o mal, o amor e o ódio,  o negro e o branco. Retorno para a cozinha e tomo  o meu lugar à mesa e sorvo mais uma Tequila que desce queimando como as abrasivas cascaveis dos desertos mexicanos. Uma a uma trago na minha direção as travessas da ceia e sirvo num prato de dimensão avantajada um pouco de arroz, uma colher do salpicão, farofa e um bom pedaço do do peru à Califórnia. Tudo me parecia estar muito bom.

"Ho Ho Ho!" Feliz Natal, Aristides! - É como se a quimera ouvisse diante a fantasia dos meus olhos que flagrava o bom Noel saindo pela tubulação e despencando pela coifa. Insisto no duto  branco  duma tinta martelada à espera dum milagre igual o de Cristo ao multiplicar os pães e dividir o vinho. Insisto mais um pouco e nada acontece e jamais acontecerá. Fixo a mão que segura aquele copo de formato estranho e o sujeito de vidro mais me parece um dos  muitos cucarachas que se perdem de sua terra assim como distancio-me dos meus. E a cena  parece fazer algum sentido e mesmo sem  a noção exata do que faço ergo o copo num brinde vazio: "Feliz Natal, Aristides!" -  A mão ainda o mantém no topo quando patético volto o braço e recoloco o copo sobre a mesa. Sem saber se é o momento da ceia olho para o prato e todas aquelas travessas de prataria e observo um pouco mais além a sobremesa que repousa incauta na  toalha de rendas brancas. Como se hipinotizado atenho-me nela e noto que no  alto  amoras graúdas  duma coloração rubra imergem numa calda encorpada e de um vermelho menos intenso. Persito no olhar à procura dos mais ínfimos dos seus detalhes e percebo que há beleza ali,  há poesia e finalmente há o amor. E um a um aqueles sentimentos e sensações se avolumam e me confundem  transportando-me para a questão que o momento  torna crucial; Nao poderia a vida ser tão descomplicada quanto àquela torta de amoras? - Penso naquilo por uns bons 20 segundos ante os dedos que novamente irão manchar o copo mexicano.

-Talvez...talvez, Aristides - Foi a única resposta encontrada ao completá-lo com Tequila  enquanto  la fora a vida persistia em festas e num oceano de esperanças.


Copirraiti 24Dez2011
Véio China©

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Your Song - Uma canção -


Eu estava em casa com o olhar cravado no infinito enquanto o pulso girava o copo e juntamente as pedras de gelo no seu interior. O líquido de tonalidade ferrugem se digladiava com os cubos de gelo, e esses se debatiam chocando-se contra as paredes de cristal e produziam  silvos que lembravam os guizos de cascavel  Eu pensava no nada enquanto continuava emborcando um Jack Daniels, e mastigava algumas uvas passas secas que encontrara num pequeno pacote na porta do refrigerador.

O que mais restaria a fazer se não beber?
Naquele dia o meu espírito acordara tenso e nem ele e nem eu fomos para o escritório, afinal,  algo de um apelo nostálgico me fazia permanecer ali. Lentamente e ainda com o copo na mão me dirigi  para o system num canto da sala e coloquei um antigo CD do Neil Diamond que há anos não ouvia. Os primeiros acordes de “September Morn” sempre desafiavam o que poderia existir de sensato em mim. E com a suavidade dos tons vieram as recordações de quando ouvi a canção pela primeira vez. À época ela me fragilizou e chorei de um jeito doído,  ininterrupto, apesar de jamais saber o por que.

Lembro também que ao fim  o pranto cedeu e eu apenas sorri, pois quem me visse naquele estado de melancolia poderia imaginar que estivesse passando por problemas emocionais. Talvez nem isso, mas sim que pensassem que ali estaria um verdadeiro fraco, pois para a maioria jamais faria sentido que um sujeito passado dos 50 estivesse envolto em  tristezas sem saber o por que ou o  motivo da dor.

Porém e agora e novamente a voz de Mr. Diamond me colocava em xeque e ele parecia não dar a mínima para as minhas sensações e persistia cantando com sua voz aveluda, trazendo-me um idêntico choro como se eu persistisse  na criança birrenta ou no ateu em ato da conversão. Talvez  essa nova  sensação de melancolia fosse importante e necessária para abrandar a dureza do meu espírito – Pensei -   Então só me restou torcer para que aqueles momentos levassem embora e de vez o anonimato das minhas mágoas..

E essas eram minhas reflexões quando toca o celular e ele me devolve a vida:

-Por favor, é o doutor Adriano? – Pergunta a uma voz feminina, suave, quase sussurrada.

-Pois não! É ele mesmo – Confirmei esfregando a manga da camisa num dos olhos. Depois mudando o celular de mão rocei o punho no outro olho.

-Doutor, aqui é a Claudia Sabino. Desculpe estar ligando no seu celular. É que fui indicada por um amigo; o senhor Paulo Herberth.  O senhor conhece?

Sim. Eu conhecia o Paulo Herberth. Eu o havia defendido com sucesso numa ação movida por um ex-funcionário seu com mais de 20 anos de casa e que pretendia arrancar-lhe o couro. Antes mesmo de lhe confirmar, ela interrompe:

-Doutor, é possível marcarmos um encontro para hoje? É urgente e estou muito aflita!

-Claro, dona Claudia! Às 17,30 no meu escritório. Pode ser? – Perguntei –

-Sim, fico grata! - Diante a sua concordância passei-lhe o meu endereço. Então ela se despediu e desligou.

Algo me incomodava naquela voz. Era delicada demais, sensual demais. Desligando o aparelho ainda mantive o tom da voz em minha mente. Como seria ela? Loira, morena, ruiva, negra, mestiça?
Pensando no fato e ainda com o aparelho em mão ligo para Carolina. Carolina era a minha secretária.

-Carolina, boa tarde! – Sem dar-lhe o tempo para que relatasse tudo que acontecera naquela manhã, continuo – Por favor, dê uma ajeitadinha na minha sala que tenho uma cliente às 17,30.

-Ihhh, eu já sabia! Quando o doutor telefona e pede pra arrumar a sala, sei que tem rabo de saia por detrás! Aposto que será com uma que ligou aqui com voz de manteiga.

-Deixou o nome, Carolina? –

-Deixou sim, doutor! É uma tal de Claudia. Eu disse que o senhor não estava. E então a abusada urgenciou em responder... “Pode deixar moça, aqui no cartão também menciona o número do celular. Eu tentarei ligar, obrigada!” - E depois desligou, Carolina relata com um tom de voz incomodado.

- Ah Carolina, me poupe! Esqueça essa conversa de rabo de saia e faça somente o que te peço. Por favor, ok?

Bem... Esse era o meu tributo a ser pago, afinal, Carolina era minha  funcionária há mais de 18 anos. E evidente, decorrido tanto tempo o que sobrevivia não era a secretária, mas alguém tão próximo como uma irmã que se dá ao direito de palpitar na vida do irmão. Por vezes eu tinha quase a certeza que não se tratava de ciúme, mas de excesso de proteção.


-Ah, doutor! É bom que o senhor tenha muita calma e prevenção nessas horas! Como dizia minha finada avó; Canja de galinha e caldo de mocotó não faz mal a ninguém. E ainda mais por que o senhor porque não deve ter esquecido aquela situação lamentável e onde sofreu nas mãos da lambisgoia loira, uma perfeita cabeça de vento que nuca soube o que quis.

-Para com isso Carolina!  Por favor, poupe-me novamente. Diga só se entendeu o que te pedi! - Interrompi irritado dessa vez.

Era sempre assim. A princípio Carolina sentia a seriedade do meu tom de voz, e se a conhecia bem há essa hora ele devia estar mexendo em papéis em cima da minha mesa, pensando, bolando um jeito de retornar à carga:

-Entendi sim, doutor! E torço para que o senhor não caia nas garras daquelas de boca carnuda e bumbum arrebitado – A resposta veio como imaginei. Eu a conhecia bem.

-Ara! Para Carolina! Que bobagem! – Respondi rindo. Jesus Cristo, não deveria ter dado nova abertura. E lá vem ela:

-Bobagem? Bobagem uma ova! Parece que o doutor tem verdadeiro fascínio por mulheres lascivas e de formas, digamos... arredondadas –

Devolveu num tom debochado, chacoalhando ambas as mãos na frente dos seus seios, insinuando a minha preferência por mulheres com peitos enormes. Tive vontade continuar rindo, mas agora era o meu momento de irritá-la. Era nervosa que ela queria ficar? Pois bem, eu a satisfaria:

-Calma Carolina! Dessa vez um pressentimento me diz que a próxima será um verdadeiro anjo e que me amará por toda a vida - Mal termino a frase e já imagino Carolina com os olhos arregalados. Então, finalizo:

-Mas te prometo Carolina! Se a que vier não ostentar um belo par de asas enviamos ela diretamente pros quintos do inferno. Prometo, ta! – Brinquei com ela antes de desligarmos o telefone.

-Sei... sei – Foi a sua última resposta.

O que teria sido a minha vida se não fosse Carolina?  Nada de importante! Absolutamente nada! Ela sabia aonde encontrar cada linha dos meus processos, cada um dos meus cheques, dos meus saldos bancários,  aplicações, compromissos e fundamentalmente os insuportáveis cartões de crédito. Enfim, sem Carolina eu seria um absoluto nada.

Abandono o celular e  me dirijo ao banheiro onde tomo uma ducha e faço a barba. Pontualmente as 16,30 o elevador me deixa no andar do escritório. Entro no conjunto e um cheiro de frescor invade meus pulmões. Um odor ótimo, algo silvestre, amazônico; Carolina caprichara dessa vez.
Ela me vê entrar e nada fala. Eu percebo a sua indiferença no olhar, e ele me ignora. Eu  a provoco com o mesmo silêncio das brincadeiras de infância - “Vaca amarela” – Lembram-se? Sorrio - Acredito que estivéssemos participando de um jogo de atitudes pensadas, algo próximo ao ensaio dos exímios enxadristas. Por fim ela abre a brecha para que se quebre o gelo.

-O doutor gostou do cheirinho? – Pergunta deslizando o indicador pela mobília como se querendo mostrar a eficiente limpeza e a remoção do pó.

-Ótimo Carolina! Ficou ótimo! – Concordei levantando o polegar num sinal de positiva.

Ela sorriu. Um sorriso bom, de agradecimento, daquele de quem sabe que está protegendo a sua cria.
Eu gostava de vê-la sorrindo, e então, por alguns instantes fiquei estático e apenas olhando para ela; o que teria acontecido com Carolina que não encontrara seu par nessa vida? Uma vida que eu testemunhava, árdua, de trabalho, sem família ou um par de filhos para se matricular na escola.

Fiquei adormecido nessas questões, e elas me propuseram uma volta ao tempo.  Recordei a primeira vez que a vi. Foi no dia da entrevista. Na época eu estava com 30 e tantos, formado há mais de dez,  e necessitando de alguém que tomasse conta da revolução que era o meu escritório. Estava numa fase promissora, de muitos clientes e dos sonhos que não se exauriam ao advogar causas, algumas importantes, por vezes movendo valores extraordinários  e que requeriam estratégias miraculosas. E por um algum tempo elas perduraram, todavia a minha resoluta desorganização emperrava aquilo que poderia estar sendo muito maior. Relembro bem daquele dia da entrevista.
E é como se eu possa vê-la sentada à minha frente; jovem, talvez uns 22, 23 anos, olhar tímido, aparência ingênua e decorada num vestido floral  justo nos quadris e que valorizava estupendamente as linhas milimétricas de um corpo delicado. Inexperiente, ela vinha de uma cidade do oeste paulista e  hospedara-se na casa duma tia à procura de alguma chance, óbvio, inexistente em sua cidade e  região.  Ao fim da conversa, gostando daquele olhar sincero e percebendo nela inteligência além do sotaque deliciosamente interiorano acabei por contratá-la.
Não demorou e ela me raptou das lembranças.

-Doutor, tenha muito cuidado com essas clientes de hoje em dia. Muitas delas são donas de olhares singelos,  pernas sensuais, mas são completamente caloteiras! –  Me adverte.

-Ara sô! Larga de besteira, Carolina! –  Eu ri. Agora não sabia se era ciúme ou proteção.

Entrei na minha sala e lhe sorri agradecido.  Por mais que Carolina batalhasse para manter a ordem sobre a minha mesa, por lá se avolumavam cópias e cópias de processos e muitos deles com anotações aos pés das páginas, observações essas que ressaltavam aquilo que achava importante. Depois de posse do conjunto de informações revia os processos e tabulava contestações. Contudo a vida de um profissional da lei jamais se compôs de sucessos nos sorrisos da vitória em tribunais. Não, não é, pois nesta vida de advogado também se inserem as derrotas que, sacramentadas,  nos fazem avaliar os vícios profissionais,  os erros cometidos em cada linha da defensa ou de acusação. Porém, muitos dos meus insucessos não permitiram que os mesmos enganos e erros  fossem cometidos numa próxima vez.
E na verdade,  eu me orgulhava mais dos  meus fracassos aos triunfos. Com eles aprendi que sempre teremos a possibilidade de irmos para o alto  mesmo que o momento da derrota nos amargue a boca, e o que é literalmente o oposto ao triunfo onde espocam os sorrisos falsos e tapinhas de amigo urso nas costas. Sim, a vitória te acaricia ego, mas ela não te sobe, te estaciona, ou quando não te leva ladeira abaixo.  E por vezes a descida  poderá ser tão cruel e vertiginosa que abalará a autoconfiança, a eficiência, tornando-nos, se não houver estrutura, náufragos de nós mesmos.

-O doutor não quer um café? – Carolina interrompe novamente meus pensamentos na tentativa de  injetar-me algum ânimo. Isso era normal nela, pois sempre que me via circunspecto imaginava dificuldades.

Bem, dela nada se escondia, e ela conhecia todos os meus olhares, expressões, meus assobios ansiosos, talvez até mais que a sua própria imagem refletida ao espelho. Ante sua gentileza faço um sinal afirmativo. Decorridos menos de 10 minutos lá estava o cafezinho, fresco, saboroso, misturado ao aroma de limpeza.  Ela serviu o meu, o seu,  e sentou-se à minha frente  com a persistência no olhar; Talvez o seu pressentimento de mulher  dissesse que algo não estava bem comigo. Ficamos nos olhando, quando pela primeira vez a vejo,  não com olhos do patrão, do amigo, mas sim com o olhar do  homem que também busca respostas. E ela me olha castanho-claro num olhar que ainda traz um ranço de menina e que consegue enxergar coisas que não mais vejo. E eu fico fitando a sua expressão e sinto consternação por aquelas contas que se adornam em discretas olheiras. E a pena é uma só, pois as chegar à minha vida eu estava muito encantado com o sucesso, com mulheres que me procuravam insistentemente e em relacionamentos que nunca me levaram a lugar algum, ao contrário. E hoje estou aqui, e sinto que o tempo de nossa convivência solidificou em mim um sentimento que se nutre por irmão, de sangue. Portanto, não havia lacuna para ela em minha realidade, nem ao menos nos devaneios que por vezes tentava manter por ela. Para mim era como se eu não mais pudesse encará-la no na manhã seguinte se, por acaso, eu a levasse para uma noitada em minha casa ou numa cama de motel.
Novamente Carolina me retira do poço das divagações.

-Tenho certeza que é a solidão que te corrói. A solidão e um misto de nostalgia e melancolia... não é? –  Carolina perguntou. A voz era dócil e seus olhos cintilavam ternura. Ela percebeu o meu desconforto.

A pergunta intimista veio à queima roupa, uma flecha no centro da maçã. Aliás, não era uma pergunta, e sim a confirmação. Ali não era a funcionaria que me questionava, mas sim a mulher que agora tocava no meu calcanhar de Aquiles, um dedo na  ferida que há muito estava aberta e não cicatrizava.
Eu era apenas um ser humano e que apesar de vários relacionamentos ainda não tinha encontrado um amor a ser perpetuado.
E isso me incomodava, aborrecia. Todavia a sua questão ficaria sem resposta já que ouvíamos os sons dos pequenos sinos afixados na parte interna da porta de entrada. Era o aviso que havia gente adentrando o escritório. Carolina levantou-se apressada, recolheu as xícaras, ajeitou seus cabelos com as mãos e rumou à recepção. Ali da minha mesa ouvi a  grave tonalidade de voz da minha secretária e um timbre feminino e que não me pareceu desconhecido:

-Um minuto, por favor! O Doutor Adriano já irá atendê-la. - Eu reconhecia o timbre; Era a moça do celular. Algo me disse que, repentinamente Carolina se sentiu irritada. Em seguida passos da minha secretária chegaram à minha sala.

-Doutor, a senhora Claudia Sabino está aqui para a reunião das 17,30 –  Sua voz soava austera, contrariada, combinando perfeitamente  com o seu lindo e aborrecido olhar castanho.

- Peça-a para entrar, por favor, Carolina! – Pedi desviando-me do seu olhar.

E assim que Claudia entrou, estremeci. Estremeci por tanta beleza. Simpaticíssima e gentil conversamos por um bom tempo; era como se nos conhecêssemos há anos. Ela trouxera as divergências de sua empresa com uma multinacional de cosméticos que a acionara por espionagem industrial; A concorrente pretendia provar que a fórmula de um produto anti-rugas da empresa da minha cliente fora copiada do seu laboratório. Evidente, a empresa de Claudia se antecipou à multinacional, e o produto obteve  ótima recepção no mercado dos “pés de galinha”. Evidente que contribuiu o fato do seu produto ter um preço bem melhor que da concorrente multinacional

- O que eles questionam, procede, dona Claudia? – Perguntei. Talvez eu quisesse saber se defenderia uma impostora.

-Jamais doutor! Nunca roubaria nada de ninguém! - Protestou. A fórmula é de um químico que trabalha há muitos anos para nós - Justificou-se - Depois sorriu calmamente e solicitou: -Doutor, retire o “dona”, por favor –

Era o que eu pretendia ouvir. Ao bem da verdade e no momento tanto a pergunta quanto a resposta me pareceram inócuas, pois eu a defenderia a qualquer preço. Aquela mulher viera pra chacoalhar a minha vida, pois ao colocar o seu lindo traseiro no banco de couro da poltrona à minha frente fizera meu peito arfar. Repentinamente senti o coração pulsando na  boca, e nela não encontrei qualquer indício e nem os exageros apontados por Carolina. Havia sim a doçura de um anjo, cabelos negros, morena, voz macia e uma postura tão suave quanto às porcelanas chinesas. Tive até receio em quebrá-la se a tocasse com as minhas mãos.
E ela continuava a me olhar e a sorrir daquele seu jeito mágico, devastador, levando-me a acreditar que, depois de juntos por quase duas horas seria capaz de segui-la insanamente, acompanhá-la até os quintos do inferno se fosse necessário. E aquilo me assustava.

Terminada a reunião trocamos outros números de telefones e  nos despedimos com um demorado aperto de mãos, excesso meu, óbvio. Por outro lado ela também deixou transparecer certa receptividade. Assim que ela saiu deixou impregnado em mim e na sala um cheiro de perfume de mulher, doce, insinuante, e o que me fez viajar na cauda de um sonho; Talvez estivesse ali a mudança das mesmices cotidianas, dos relacionamentos com mulheres que, apesar de interessantes  nada me trouxeram de novo, atolado que sempre estive nas  profundas incertezas dos amores. Com ela a sensação foi diferente; O olhar exalava tanta vida, esperança,  romance e a ponto de vislumbrar o amor e o jovem apaixonado que um dia fui. Eu me via susceptível á ela, escancarado. Era como num jogo de poker,  onde teria que arriscar todas as minhas fichas se fosse para ganhar. Evidente, sempre existiria a possibilidade dum blefe e o risco, afinal, jogos e amores trazem apenas dois resultados, vitórias e derrotas.
E é e sempre será assim com tudo. É assim quando se arrisca  nas bolsas de valores ou num manobrista de boate. É assim quando saímos de nossas casas sem sabermos se retornaremos, enfim, corremos o risco de ter uma bala alojada ao corpo, e o pior, talvez nem fosse para nós. E é e sempre será assim quando se ama ou deixa-se de amar, e em absolutamente tudo haverá o contrato impreciso e de cláusulas indecifráveis a infinita possibilidade entre o regozijo do céu ou a queima no inferno...

-Ai, doutor Adriano, adorei   a nossa conversa!  Percebo que estarei em excelentes mãos! – Ela diz sorridente ao iniciarmos as despedias. Retribuo o sorriso ao ajeitar um calhamaço de minhas introspecções. E ambos sorridentes dirigimo-nos à recepção. De forma educada e gentil, Claudia se despede da minha secretária:

-Boa noite, dona...

-Carolina  Frydmann Steimberg! –  Carol responde secamente e sem esboçar qualquer sorriso.

Faço que não noto; Não havia a menor necessidade de Carolina fornecer seu nome todo, e só faltou fornecer o RG, CPF e o atestado de antecedentes. E então delicadamente toco no ombro de Claudia com intuito de levá-la a saída. Carolina nos olha indiscreta ao sairmos pela a porta de vidro do conjunto e rumamos a passos lentos a caminho do hall dos elevadores.
Defronte a eles olho para a placa eletrônica incrustada na parede e percebo que ela indica que o elevador que serve meu andar encontra-se no estacionado no andar térreo. Como estávamos no 28º andar avalio que demoraria uns 5 minutos até sua chegada, ainda mais por estarmos ainda em horário de encerramento das atividades comerciais. Olho para ambos os lados do corredor e não há nada ali que não seja solidão e um ar frio que indica o início da noite. Num impulso desprovido de lógica me achego próximo do seu corpo e sinto a delicada fragrância daquele avassalador perfume de mulher. Sim, eu o reconhecera na minha sala; Era o Chanel Cinco.  Discretamente  exalo o aroma e ela percebe.

-Ai doutor Adriano! É o Chanel Cinco – Diz ansiosa numa voz claudicante.

Eu sorrio e aproximo-me mais. Seus olhos negros tomavam-me de assalto e praticamente tocávamos os nossos corpos quando a enlaço pela cintura a trago ao meu encontro. O beijo foi dado, apaixonado, calmo no início e selvagem ao fim. Ao toque dos meus lábios, Claudia pareceu assustada, porém, cedeu. Eu sentia o sabor da sua boca, o toque da sua língua e o estremecimento dum corpo que se  colou ao meu. Vingava em mim  a sanidade, a loucura dos incautos pega de surpresa m encantamentos.

-Adriano, liga pra mim assim que chegar à tua casa?  – Pediu, agora sem usar o “doutor”. Aliás, não era um pedido e sim um convite  feito por alguém que ostentava um estranho e desafiador brilho no olhar

-Ligarei! – Confirmei num mesmo momento que o elevador estacionava descerrando a porta. Fiquei olhando ela entrar e provavelmente eu deveria parecer um desses ingênuos jovenzinhos acometidos pela primeira paixão ginasiana.

E desta forma ela se foi e deixou atrás de si uma das marcas de sua personalidade; o apaixonante Chanel Cinco.
Por alguns instantes permaneci olhando para a placa indicativa de andares – 27º, 26º, 25º... O elevador buscava o andar do térreo. E lá chegando e ao abrir a porta eu sabia que outros homens a estariam olhando com os mesmos olhos dos lobos. Homens que poderiam até fazer uso do seu creme anti-ruga,  agora um produto de espetacular rentabilidade envolvido numa feroz batalha judicial. Eu entrava no jogo,  e não era pra perder.

Com  firmeza de propósitos fiz-me no caminho de volta ao escritório, porém um barulho assustador me surpreendeu e fez Carolina sobressaltar da sua cadeira executiva. Eu viera tão anestesiado de sedução e por aqueles beijos que nem me dei conta que porta de vidro estava fechada. Conclusão; choquei violentamente o meu rosto contra o vidro Blindex temperado.
E foi  assim na pele do próprio Pateta que adentrei ao conjunto enquanto meus dedos acariciavam o rosto. Um rosto constrangido, idiotizado, aliás, um a mais num mundo muitos imbecis.
Passado o susto Carolina não sorriu e manteve-se sisuda ao recolher suas coisas e ajeitar a sua mesa de trabalho. Assim que conseguiu enfiar o mundo na sua bolsa de 30 centímetros de altura por 20 de profundidade atravessou a porta de vidro e se caminhou para os elevadores.

Fiquei perplexo e um tanto aborrecido, afinal, por aqueles anos todos foi uma das raras vezes que ela se foi sem despedir-se de mim - Paciência. Percebi também que nada poderia fazer - Agora sozinho, cuidadosamente travei a porta e voltava para minha sala quando ouço nervosas batidas no vidro. Retorno e  dou de cara com Carolina. Provavelmente esquecera algo – imaginei  - Abro a porta, mas ela não pretendia entrar.

-Seu cego, estúpido! Você não percebeu que ela tem celulites e seios P? – Disse-me num tom de ira. Surpreso foi que reparei que seus lábios e pálpebras tremiam.  Descarregada daquilo que necessitava  deu-me as costas e voltou para os botões  dos elevadores.

A princípio permaneci perplexo, sem ação, para depois cair numa estrondosa gargalhada; Era um blefe, pra não falar... uma mentira deslavada! Carolina, às vezes jogava pesado, mesmo sabendo que não poderia vencer.
Agitando a cabeça num divertido sinal de negação retorno à minha sala e agendo coisas  e penso em ligar para ela.  - “Calma, doutor Adriano! Ela está no meio dum trânsito irritante. Quer estragar tudo?”   - Convenço a mim e a esqueço momentaneamente o desejo. Ao sair apago todas as luzes, travo a maldita  porta de vidro e desço no mesmo elevador. Poderia ser fantasia, mas parece que ainda há nele cheiro dela e do Chanel Cinco. O elevador se movimenta e me deixa no subsolo. La, pego o carro  e abandono o edifício. Na esquina  entro num posto Skell 24 Horas que tem ao fundo uma loja conveniências.
No interior da loja passeio pelos pequenos corredores à procura de alguma novidade. Nada. Então compro apenas o trivial; cigarros, revistas e cervejas. Por fim solicito ao meu amigo empacotador que trabalha no caixa quando o funcionário responsável por ele está em horário de janta:

-Mané, por favor, 100 pratas em recarga da "Ei".

-Uai, dotô! Num vai ser os “quinzão” de sempre? – Mané pergunta surpreso.

-Não não, Mané! Entrei numa roubada aí.  Sabe... uma dessas baitas gatas? Então... dancei! E você  ouviu corretamente! São 100 reais de crédito no “Ei” –

-Mas, mas, mas  ou dotô num tem telefone fixo em casa?

-Tenho. Mas... ô Mané, esse negócio de telefone fixo é fora de moda pra se falar com uma mulher. Com celular não! Você fala deitado, vendo TV, jogando cartas. Capicce?

-Ah, é... Coisa de rico é outros quinhentos! – Ele diz na sua simplicidade linguista. Eu rio gostoso. Ele também.

Vagarosamente Mané digita os dados do meu celular na maquina enquanto eu abro uma latinha de cerveja e a viro no gargalo. Mané me olha desconfiado. Eu estava tão feliz que seria capaz de contar para ele tudo o que ocorrera naquela tarde.

“O senhor só pode ta louco, dotô!”  – Fatalmente ele sentenciaria.

Precavido e com aquele jeito de desconfiado é mais certo que Mané não seja do tipo que acredita em amor à primeira vista. Pensando em sua crítica  resolvo não arriscar e mantenho-me calado apesar do meu jogo ser insuperável.
Dessa vez eu tinha a certeza que a partida cederia ás minhas cartas.

- Royal Flush! Ganhei Mané! – Exclamo, alto e ele sobressalta e arregala os olhos.

-Qui diabo é isso, dotô? - Ele me pergunta com a sua eterna feição de dúvida. Eu poderia explicar pra ele que era a jogada vencedora dum jogo de poker.

-Ah, Mané! Deixa pra lá! –  Achei melhor não arriscar e lhe dei a piscada de todo santo dia. Mané era um cara legal, e eu gostava dele.

Em seguida pego o troco das minhas despesas e abandono a loja. Por momentos olho para trás e percebo que Mané ainda me olha e coça a cabeça. - Acho graça e sorrio e levanto o polegar direito. Ao longe ele retribui -
A caminho do carro me bate uma enorme  vontade de assobiar “Your Song”  Era uma canção de Elton John com versões diversas, mas nada que se compare com a excepcional interpretação de Rod Stewart. Diz uma parte da letra.

“E você pode dizer a todos que esta é sua canção
Pode ser bastante simples, mas agora que está feito
Eu espero que você não se importe”

Continuo assobiando a canção para uma noite que se abre excitada quanto um  belo par de coxas no aguardo do verdadeiro amor. Entro no meu carro, acendo um cigarro e expilo a fumaça para fora da janela, mania minha. Ligo o rádio giro o botão e sintonizo um canal de notícias onde repórteres relatam um Brasil de corruptos e corruptores. Claro! Sempre haverá alguma exceção. Aquilo me aborrece e vou para uma estação de música clássica. Ali, Chopim é tocado por um exímio pianista. Ele dedilha com maestria a impressionante  "Polonaise". No farol um desses garotos que vendem pequenas guloseimas se aproxima da janela, e eu estou com o vidro aberto. A música é tocada alta, e a fusão do piano com alguns outros instrumentos de orquestra como o trombone e violino que, certamente soem incompreensíveis para aquele pirralho de uns 12 anos.

-Nossa tio! Que som louco isso! - Ele exclama surpreso.

Eu sorrio e dou o seu "real" sem que leve as suas rotineiras balas de goma. Ele não perde tempo e avança serelepe para outro veículo. Sim, o Brasil tinha que produzir, trabalhar, não importava o porquê, o se é ou não devia ser.
Pelo retrovisor eu vejo o garoto se apoiar na janela de outro sujeito enquanto o meu  pianista martela as teclas com a mesma violência que Chopim martelaria. E isso me faz relembrar um pouco da  história do grande mestre polonês e sua mágoa com os russos que,  no velho mundo, sempre se meteram em confusões. Porém, para mim isso não fazia qualquer diferença.
Há tempos eu não me sentia tão confiante


Copirraiti 05Dez2011
Véio China©