segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Olhos Azuis

Era o dia das homenagens aos mortos. No parque o sol se fazia alto e os pombos corriam desesperados à cata de alimentos que as pessoas lhes atiravam. Ah, também era o dia de passear com Felipe, 10 anos, seu bisneto. O ar se impregnava dum cheiro bom enquanto as folhas ao chão eram levadas pelos ventos de novembro, alçando pequenos voos, valsando despretensiosas sobre os bancos carcomidos pelas estações.
O homem se mantinha  sentado num dos assentos com feição reflexiva, afinal, o que poderia pretender senão apenas uma velhice mais acentuada e com urgência de alguma acomodação?
Seu corpo sugeria desconforto apesar de sua aparência negar-lhe os  68 anos completos. Como de praxe ele estava ali  para o vai-e-vem das pessoas, tão comum nas manhãs dos domingos.
No rosto a insistência dos raios de sol discretamente cora-lhe a pele e a brisa refresca seu corpo no instante que uma vigorosa lufada faz pequenas flores se desprenderem das árvores e elas forram o chão com pétalas das mais diversas cores.
Felipe, à sua frente sorria e equilibrava-se em sua cross mantendo as pernas esticadas sobre as pedaleiras.
O avô se afastara das reflexões e se manteve observando o ar inocente e pueril que estampa o rosto do neto. Pouco mais adiante dois sujeitos mais idosos vem em sua direção; Na verdade um par de anciões que lentamente percorrem as alamedas sem se darem conta que as flores espalhadas e os trajetos percorridos precedem a data duma morte que se aproxima rápida ou lentamente “Ah morte, morte! - Ele pensa nela ao notar a dificuldade dos movimentos nos senhores. Sim, a morte era destino inexorável, término, o asfalto numa estrada onde se sabe que há fim. Em contrapartida suas certezas diziam que a vida era nada mais que dor gestada e imposta num mundo onde o que prevalece é a juventude. Enfim, ele não tinha a morte por castigo, mas como prêmio pelas batalhas travadas, algumas às custas de dor e sangue - E ele bem sabia.

Eram esses seus pensamentos quando os velhos passando próximos de si deixaram no ar um odor estranho. Impressionado com o cheiro ele crava o nariz nos poros do braço à procura do mesmo ranço; Nada! Apenas distinguiu um suave odor de sabonete - "Que bobagem foi essa a minha"- Resmunga ao afastar o braço das narinas -  Novamente se fixa nas figuras e os vê distanciando e se põe a relembrar os caminhos do seu passado tatuados ali nas mesmas alamedas. Ele sorri ao recordar a praça ainda jovem e de como era bom ficar ali zanzando, absorvendo vidas assim como agora o fazia. E aos poucos as imagens vão se aprisionando nos labirintos da juventude como se fossem parte dum amarelado álbum de fotografias.  Com suavidade tateia o banco e sente nas extremidades dos dedos as porosidades das madeiras desgastadas e isentas agora de boa parte da espessa tinta à óleo. “Ah natureza, tu não perdoa ninguém” – Murmura diante dos bancos parcialmente descascados.
Porém  reviver o passado era  bom e ele persiste num tempo que a vida desfilava sob um olhar tão repleto de esperanças que competia com o fulgor do sol e a melancolia da lua. Ah, que saudades da jovial aparência e da autoconfiança incrustada naquele rosto repleto de acnes, que não se livrava, mesmo que as espremendo diariamente diante o espelho do armário do banheiro. Aonde se escondera a esperança e nobreza do espírito? Talvez sua herança fosse apenas o tapa de pelica dado pela vida, um riso sarcástico  e zombeteiro diante dos sonhos que imaginou possíveis. Sonhos? Sim, ele os tivera, mas foram tão poucos que se traduziam numa casa com varanda que lhe abrigasse o corpo na velhice, uma boa esposa de olhos azuis que lhe desse um casal de filhos com a mesma tonalidade no olhar.
Sim, olhos azuis! Sempre se encantara com eles, portanto os procurava  em cada garota. "Olhos azuis"- Balbuciou e riu dessa insistência do passado,  fato que por vezes fazia as pessoas  o rotularem de abobalhado  ao perceberem-no cravado nos rostos femininos, sentinela obsessivo por olhos além  dos sentimentos humanos. Ah, que tempo aquele...

 -Vô, disfarça e olha a menina que ta vindo para cá! – O garoto cochicha para o avô, resgatando-o da imersão existencialista em que estava atolado;

 -Sim, to vendo! É a que está vindo de bicicleta com um cestinho?  Mas, o que tem ela? – Pergunta ao neto.

-Ih vô, parece que o senhor ta sempre no mundo da lua. Essa aí é a Laura. Lembra da garota que lhe contei  que eu tava gostando e que estuda na minha escola?

 -Ah sim, me lembro! Ah! Mas, fala pro vô, porpetão... essa garota tem olhos azuis?

 -Ô vô, nem me lembre disso! Ela tem olhos azuis e eu odeiooo!

-Hã, odeia olhos azuis? – O avô se surpreende.

 -É..não gosto! Mas, vô, por que ela não tem os olhos assim como os nossos? –  Queixa-se ao velho. Claro, Felipe se refere à tonalidade castanha, comum em todos os olhares da família.

 -Bah! Que castanho o que! Você um bobão, um maledeto sortudo que quer jogar a sorte fora! – O velho recrimina. O neto arregala os olhos tentando assimilar as críticas do avô.

-Ué, não entendi! Se o vô gostava tanto, por que não se casou com uma mulher de olhos azuis? - Dessa vez foi o velho que arregalou os olhos.

 -E você pensa que não tentei seu bezerro lambido? Ah... e como seu avô tentou! – Finalizou com um ar implicante estampado no rosto.

 -Gente velha é fogo, mesmo! Nunca se conforma com o que têm!–  Ri Felipe ao impulsionar a bicicleta para ir ao encontro da garota.

Ah Laura! Mesmo não tendo os olhos castanhos que tanto gostava, sabia como mexer com ele. Pensou ao estar próximo dela. Então se encontram com olhares e sorrisos.
O velho os nota e os vê com a simpatia de quem sabe que em Felipe corre seu sangue, agregam-se coisas hereditárias, manias e imperfeições.
E talvez todo esse seu pensamento voltado para o passado esteja ligado à visita que faria à Ornella, no Cemitério da Paz naquela tarde de finados. Será a terceira vez que estaria presente, desta vez sozinho, pois seu filho e a mulher foram visitar a falecida esposar nas primeiras horas daquela manhã. Todavia era bom não pensar no compromisso, mesmo que sentindo em paz no ambiente verdejante, um lugar calmo e depositários das lágrimas de sua saudade. Repentinamente repassa a primeira vez que esteve lá e que perdeu o controle das emoções e chorou copiosamente, depois envergonhou-se diante das pessoas que o observavam. Talvez questionassem; Por que o velho chora tanto? – Era essa a pergunta que ele lia expressa naqueles olhares – Não! Não queria sentir-se novamente constrangido e nem que soubessem da falta e nem  da intensidade dum amor que foi sepultado junto da mulher de olhos castanhos. Sim, os olhos de Ornella  jamais foram azuis, contudo foram os olhos mais lindos que conheceu e que amou até se cerrarem definitivamente. Não! isso só interessava a ele e sobre isso não precisavam saber...

Todavia o parque se faz cúmplice dessas dolorosas recordações, mesmo que gotas ameaçassem desabar do seus olhos. Porém não era hora de choro, mas de levantar-se e voltar para casa. “Raios! Onde se meteu esse moleque?" – Perguntou-se ao procurar Felipe com os olhos. Ergueu-se do banco e saiu caminhando pelas alamedas até que divisa a bicicleta do garoto. E o menino trajando a camiseta do Palmeiras, seu time de coração, vai de encontro do velho seguido por Laura e uma mulher de aparência madura e de cabelos  levemente tingidos duma tonalidade avermelhada. Assim que se encontram, a mulher de talvez 58 ou 59  anos, mas ainda bonita e atraente o cumprimenta com simpatia:

 -Muito prazer, sou a avó da Laura! E o senhor deve ser o avô do Felipe. Certo?

-Sim, sou sim!  E muito prazer, meu nome é Domênico - Se apresenta. Depois continua - Olha..pra  falar a verdade ele é mais que um neto, é bisneto. – Corrige à bordo dum sorriso tímido, já que fazia tempo que uma mulher de porte tão elegante o abordava

-O prazer é todo meu, seu Domênico. Sou Maria Cecília! E esta surpresa agradável só foi possível por ter encontrado o seu neto no supermercado ontem, e ele ter insistido para que trouxesse minha neta no parque – Ela explica gentilmente

Ele se encanta com a presença e repara nela com mais atenção e nota que a mão esquerda acomoda duas alianças no mesmo dedo anelar, evidente sinal de viuvez. Antes que pudesse tecer qualquer comentário o neto se antecipa e à queima roupa pergunta:

 -Vô! O senhor tá notando alguma coisa na avó da Laura?

O velho sente-se constrangido ante a pergunta. A mulher também se sente incomoda e sorri timidamente - "Moleque enxerido!" - O velho sussurra; O garoto podia tê-lo poupado da saia justa. Maria Cecília tentando  driblar o desconforto de ambos faz o possível para reverter a situação.

 -Ah, seu Domênico! Será que o senhor nutre simpatia por mulheres que passaram do ponto e são um tanto "cheinhas"?

 -Bem... eu acho que sim! Aliás, nutro sim! Mas, desculpe... não acho que a senhora passou do ponto ou que seja "cheinha"! – Responde timidamente e com certo gaguejo na voz.

Ela sorri envaidecida. Alguma coisa nela modificava a situação e sua repentina vontade de sair dali, agora dissipava qual fumaça de cigarro. Sim, evidente que Ornella seria visitada um pouco mais à tarde, assim como em todos os finados que teria pela frente. Mas o momento lhe confidenciava que não era a hora de se concentrar na visita ao cemitério.

 -Vocês gostariam de sorvetes? – O velho pergunta-lhes tentando ganhar algum tempo e ficar um pouco mais na companhia de Cecilia. - Os garotos sorriem e aceitam, inclusive ela.

 Os olhos de Domênico se alegram e ele chama o sorveteiro com um aceno de mão e faz o pedido diante de duas perolas cintilantes que lhe  sorriem enquanto os garotos descem de suas bicicletas e se acomodam sob a sombra duma árvore. Após distribuídos os sorvetes, Domênico e Maria Cecilia se postam mais ao lado e se se perguntam e colhem respostas. Nos olhos dele há algo que se colore, e a praça parece mais viva, o verde se faz mais verde e as flores mais bonitas. E a conversa segue com questões despretensiosas e gentis e até chegarem ao ponto onde o velho discorre sobre a visita ao cemitério. Assim que Cecilia o ouve  foi impossível deixar de manifestar a surpresa:

- Nossa! Não me diga.. que espantosa coincidência seu Domênico! Meu falecido marido também está sepultado no Cemitério da Paz. Como o senhor ainda não foi e eu também não, e se não se importar poderíamos ir juntos um pouco mais à tarde. O que acha?

 -Podemos sim! Claro, dona Maria Cecília. Será um imenso prazer!- Ele responde com um ar de satisfação.

 Ambos sorriem tímidos enquanto os garotos acabam seus sorvetes. Felipe novamente se adianta e monta no selim da bicicleta, pedala rapidamente e para um pouco mais adiante. Ele desce da  Caloi e examina alguma coisa na roda, pois parece haver complicações. Depois meneia a cabeça negativamente e chama pelo avô:

 -Vô! Quebrou uma coisa aqui! Vem ver! – O velho pede licença para Cecilia e vai até ele. Assim que se posta ao lado do garoto o neto cochicha num tom discreto:

 -Vô,  abaixe e faça de conta que ta vendo algum defeito - O velho, surpreso e sem nada compreender satisfaz a vontade do neto, porém sem deixar de questioná-lo:

 -Que foi agora, seu filho dum camundongo?

 -Vô! O senhor viu que bárbaro? Os olhos da avó da Laura são azulzinhos! - Diz o neto com um sorriso maroto estampado na boca e no olhar.

-Sim, reparei! São azuis e muito bonitos! Mas..não vejo qualquer problema! - O velho se faz de dissimulado numa clara tentativa de dar o fim  na conversa.

-Ih vô, quer para de me tratar como criança? Sabe.. não nasci ontem! - O neto murmura num tom de empáfia.

 -Como assim? - Pergunta-lhe  avô, insistindo em fazer-se de desentendido.

-Ara vô, eu percebi a troca de olhares entre vocês! Sou capaz de apostar que alguma coisa ta pegando. Quer saber mesmo, vô?

-Saber o que, seu caneloni apimentado? - O ar de surpresa e de dúvida ainda permanece estampado no rosto velho.

-Ora vô! Parte pra cima dela que essa coroa é das boas! - Ele diz para o velho e ri algo malicioso. O velho permaneceu estático, atônito, só houve um tempo de agitar o braço numa ameaça murmurada:

-Seu filho duma jararaca! Vai ver a tua bunda quando chegar em casa! - O velho responde irritado, agitando os braços nervosamente.

-Calma vô! O senhor tá dando bandeira. Olha lá a avó da Laura  prestando atenção na gente! - O garoto devolve com um riso mais acentuado, enquanto toma o assento de sua bicicleta imprimindo força nas pernas, distanciando do avô,  retornando à companhia de Laura.

O velho agita a cabeça discretamente em negação e depois faz o trajeto de volta com um sorriso insosso incrustado nos lábios.

 -Algum problema com a bicicleta do Felipe? - A mulher pergunta com certa apreensão assim que o vê pela frente.

-Não não, nada não dona Maria Cecília, fique tranquila! Foi apenas a correia dentada que escapou dos dentes.

-Ah que bom que não foi nada sério - Ela devolve aliviada. Depois se veste num sorriso e propõe: Seu Domênico, vamos combinar que a partir de agora poderíamos apenas nos tratar por  Domênico e Cecília?

-Sim, claro, combinado! Seremos Domênico e Cecília - Assentiu satisfeito

E o velho lhe sorri um sorriso de quase todos os dentes, e havia nele a esperança e a nobreza do espírito. Não podia negar algo ardiloso, talvez até tramado pelo neto. Sim, houve alguma mentira, pouca, mas por vezes  necessária para ajudar aquilo que pode dar certo.
Não podia negar poesia entre o verde das plantas e o cinza das alamedas, e estava tão feliz que seria capaz de compor versos românticos, e eles se misturariam aos cheiros das rosas e à algazarra das crianças.
Entretanto era a hora de partir e ela lhe passou seu endereço para se encontrarem e irem ao cemitério. Despediram-se com apertos de mãos e olhares cúmplices e seguiram cada  qual para seu canto.
As bicicletas de Felipe e Laura agora separadas manobravam suas peripécias enquanto Domênico assobiava uma canção dos velhos tempos; Era "Blue Eyes" de Elton John.


Copirraiti 27fev2012
Véio China©