quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Olhos de Vidro.

Eu tive tudo para ser feliz, aliás, em termos até que fui, entretanto, não mais estou aqui. Lembro-me daquele tempo e do apartamento, e de que nele havia um grande quarto, e na sala o conforto dum desgastado sofá de couro, e atrás dele uma ensolarada janela de vidros largos, onde em alguns dias do mês eu aproveitava os raios e banhava os meus pelos. O edifício em que morávamos deveria ter, talvez, uns 30 anos de vida, e dentro daquele dormitório com as pinturas descascadas jamais me foi dado o castigo da solidão, pois ao meu lado tinha amigos como o Pateta e o manso Leão da Montanha, personas inseparáveis e que sempre me foram gratas. Provavelmente estejam pensando a confusão que deveria existir entre tão distintas figuras, porém garanto; jamais ocorreram problemas de ordem física entre o Leão e eu, assim como nunca me favoreci das garras afiadas, mesmo que plásticas, para cravá-las nos fundilhos das calças do risonho Pateta, mesmo que eu o estivesse incomodando. Assim posto, é verdadeiro o quanto vivianos pacificamente e numa camaradagem respeitosa, e acima de tudo, engraçada. Contudo é bom frisar que não estávamos ali gratuitamente, arrematados que fôramos numa loja de brinquedos usados, ali na rua 25 de Março, em pleno pulmão de São Paulo.
E hoje,  passados pouco mais de 10 anos ainda se mantém em meu espírito a lembrança do dia que aquele senhor de óculos escuros nos comprou. Talvez à época ele já estivesse beirando a casa dos 50, e ele entrou na loja e nos viu sentados numa empoeirada prateleira de uma das vitrinas internas.

- Garota, quanto estão pedindo por esse botafoguense? –  Ele perguntou para a vendedora apontando o dedo para mim.

Talvez não se apercebera, mas eu era um Urso Panda, e não um jogador de futebol, e só um tempo mais tarde é que fui a saber que o termo "botafoguense" motivou-se na alva estrela solitária que trazia estampada no meio do meu .peito.

-Este urso está saindo por 20 reais, meu senhor! – Foi a gentil resposta da moça.

-Que merda! 20 reais por um bicho de pelúcia amorfanhado e de segunda-mão? – Grosseiramente o sujeito devolveu. Ela o olhou surpresa, pois algo dizia que poderia estar à frente dum legítimo chato de galochas.

Os seus maus modos e o achincalhe com a minha aparência contribuíram para me deixar pensativo, pois não há nada pior para um urso de pelos mofados saber por boca de outra pessoa que se está a caminho do velho e amorfanhado. Olhei para o sujeito com certa revolta, e meu senso de auto-preservação passou a estudá-lo, minucioso, linha por linha do seu corpo; Estava lá e era evidente o enrugamento da pele, alguns pés de galinha, os cabelos em franco processo grisalho, além da baixa estatura e um indisfarçável grau de obesidade. Claro, a inspeção me confortou, pois  seria do meu direito e faria justiça se lhe devolvesse, não os mesmos, mas predicados piores. No entanto sabia que seria perda de tempo, afinal, os ursos de pelúcias não falam, apenas pensam. Em seguida ele olhou para outros bichos de pelúcia que me ladeavam, e meneou negativamente a cabeça. Os seus passos iam e vinham, ansiosos; talvez ainda não tivesse achado aquilo procurava.

-Ah! E esse Leão? E o Pateta. Qual é o preço? – Perguntou lacônico ao notá-los na prateleira abaixo. Antes de responder a moça ainda tentou cativá-lo:

-Por favor senhor, poderia me dizer seu nome? – Óbvio, a sua intenção era de quebrar o gelo, suavizar as riscas daquela testa franzida. O sujeito a olhou de baixo à cima, e sisudamente respondeu.

-Mocinha, não estou aqui para que saiba o meu nome, mas apenas para comprar essa coisa! – Protestou numa tonalidade moderada batendo a ponta do indicador no vidro, e em minha direção.  

Definitivamente olhei para o homem, e ele não me parecia uma dessas pessoas que envelhecem à bordo das frases compreensíveis ou gentis. Diante da sua rudeza a moça apenas desviou-se do seu olhar furtando o sorriso que  instantes antes impregnava os seus lábios. Assim,  deu-lhe apenas a ciência dos valores:

-O leão está por 25 reais, e o Pateta, 30. – Ele ouviu calado e persistiu com o olhar no par de pelúcias. Após alguma avaliação cravou os olhos em mim e decidiu:

-Levarei os três.  

Sim! Não havia como negar, o fato de ter nos comprado me feriu em particular, pois me senti  discriminado, já que não coube ao Leão e o Pateta qualquer fator de depreciação, inclusive nenhuma pechincha no preço. Refleti sobre aquilo por instantes e percebi algo novo em minha natureza; a vaidade.Talvez Freud explicasse, o que não impediu que durante algum tempo eu sentisse  um certo grau de inferioridade com referência a eles, entretanto,  pouco mais tarde o fato foi esquecido. Mas, retomando o momento da compra recordo que o homem pegou a sua nota de compra, e dirigindo-se ao caixa quitou os 85 reais por três vidas de pelúcia. A vendedora ainda pareceu preocupada quando o sujeito disse que gostaria de dar uma palavra com o gerente.  Receosa ela apontou para o fundo da loja onde um senhor de aparência severa conferia algumas mercadorias.  Lembro também de ter ouvido o lamento da vendedora ao confidenciar para a colega de serviço tão logo o homem ter se distanciado:

-Poxa vida, Antonieta, hoje não é mesmo o meu dia de sorte. Fiz tudo para atendê-lo com delicadeza, e lá está o homem falando com o chefe. Certamente deve estar se queixando do meu atendimento. – Balbuciou para a outra num tom de desânimo.

Evidente, talvez estivesse certa, pois ela olhava para eles e percebia que o sujeito gesticulava ostensivamente para o seu superior. Depois, e ainda com os mesmos olhos ansiosos viu o cliente retornar e passar por ela meneando discretamente a cabeça. Assim, e com os passos apressados foi que o homem saiu da loja levando numa grande sacola plástica todos nós, seus futuros amigos do nada. E tão logo desapareceu pela porta o gerente chamou a funcionária, e ela foi ter com ele esperando o pior, talvez a demissão.

-Marta, o senhor que acabou de sair veio falar sobre você, e disse que ficou satisfeito com o seu atendimento. Parabéns, continue assim! – Disse a ela num tom de comemoração. A garota abriu um sorriso de surpresa e feliz voltou para a sua função.

Foi ali naquele momento que reparei também que o sujeito surfava a vida nos mares dos enfrentamentos e contradições. E esta era a sua marca, nada mais que linha mestra do seu perfil, pois há anos convivi com ele, e assim sempre foi, e assim sempre seria assim.
Agora, deixemos o passado atrás das velhas linhas do horizonte e passemos a falar das contemporaneidades que vivenciei ao lado dele. E começando vou contar-lhes algo que ainda não sabem; O meu verdadeiro nome foi dado por ele - “Doutor Panda”  - E assim me batizou por sempre me carregar pelos braços e  levar-me ao seu quarto afim que eu escutasse as suas histórias. Por motivos que jamais poderia elucidar, ele se apegou a mim, deixando de lado os meus amigos. Talvez fosse carência, essa carência dependente de atenções, essa que faz algumas pessoas, principalmente as solitárias, a agarrarem-se a algo. Portanto será comum vermos muitas dessas pessoas tratando os seus cães, gatos, e outros animais menos domesticáveis como se fossem membros do seu clã. Não que a comparação me seja pertinente, mas o meu dono houve por bem eleger-me como o seu bichinho de estimação, afinal, eu era o seu bom psicanalista, o analista que ele precisa, um urso de pelúcia isento de voz, mas com um  bom par de peludas orelhas para escutá-lo.

Ele estava muito dependente de mim quanto tivemos a nossa última conversa, aliás, a mais importante delas. E por ironia ela ocorreu numa noite onde me foi concedido e retirado o dom da vida. Ah vida...e por falar nela sempre a vida se reverenciará às pinceladas do tempo, para alguns, muito longa, para outros, essencialmente breve. Sim,  não a concebo assim como vocês; carne, pele, ossos e deslocamentos, já que a vida nada mais é que movimento e decisão. E decisão foi o que esteve  presentes naquela noite em que chegou chapado de bebida e pegou-me pelo braço e fomos para o  seu quarto. Ali, deitou-se colocando-me sentado em sua barriga. Ele estava muito mal, nunca o vi tão devastado.

-Porra! Por que você não fala comigo, Doutor Panda? Estava irritado e se embaralhava com as palavras.

Óbvio, no momento eu entraria numa fria ao reafirmar, e talvez pela centésima vez que, ursos de pelúcias jamais falam, mas, apenas pensam. Portanto fiquei olhando para ele, assim como também fizeram o da Montanha e o Pateta, ambos sentados à estante bem defronte da sua cama.

-Porque você está me olhando com essa cara de idiota? – Inquiriu ao olhar para a mobília e dar de cara com o amigo do Mickey.

Pateta persistiu com aquela sua cara de bobo e divertido. Depois olhou para mim com os olhares que só os brinquedos entendem, pois mesmo a resignação em seu olhar não evitava que eu captasse a bondade em sua alma, apesar de vocês jamais suporem que bichos de pelúcia possam levar uma. Sem respostas e ainda irritado, tirou-me de sua barriga, e colocando-me de lado levantou-se. De pé a sua coordenação era quase nula, mas mesmo assim pousou os olhos no Leão da Montanha e fez algumas micagens para ele. A relação desses dois sempre foi estranha, assim, como se um não confiasse no outro. Então para finalizar o show apenas rodopiou o corpo ébrio e obeso para o lado direito na direção onde estava o Leão, e exclamou:

-Saída pela esquerda! –

O tombo foi inevitável, e foi muito engraçado ver o velhote perder o equilíbrio e estatelar-se ao chão, arremessando o par de lentes escuras para debaixo da estante. Constrangido pelo tombo a lamúria foi inevitável:

-Que merda! Esse leão não serve pra porra nenhuma -Após, e com algum esforço levantou-se apoiando a mão direita na estante.

Lá da cama fiquei olhando para ele, e sinceramente nem sempre foi assim. Porém, com o passar dos anos algo foi se quebrando dentro dele, talvez a esperança, ou mesmo, o encanto. Recordo que logo que viemos morar aqui era comum ver algumas garotas zanzando pela casa. Muitas vezes eu as ouvi insistes, dedo na campainha, querendo ter com o escritor. Sim, não também não lhes contei; Ele era um escritor, autor de quase nenhum sucesso, é verdade, um desses sujeitos que escrevem sobre histórias sórdidas, coisas dos subterrâneos existenciais, e lido, principalmente, por alguns garotos desajustados, geralmente, universitários. Entretanto, por vezes a sua escrita tentava ser divertida, sarcástica, e isso chamava a atenção das pessoas, principalmente das garotas que o imaginavam um Che Guevara das letras. Todavia, muitas vieram e transitaram por sua vida, porém, nenhuma ficou. E foi no intervalo dessas carências que ele se apegou a mim. Talvez porque eu fosse o único a olhá-lo de forma única, penetrante, como se eu pudesse ler as entrelinhas dos seus pensamentos. Foi exatamente naquela noite de muito álcool que insistiu o seu olhar nos meus olhos de vidro:

-Seu filho da puta, ainda espero a tua resposta – E eu não pude fazer a não ser saber das suas angústias.

Depois de algum tempo, desistiu de mim e foi para a cozinha e voltou com um enorme copo de vodca.  Evidente, e o que já não estava bom, tinha tudo para piorar miseravelmente. Por meu lado, fazia de tudo para conter o riso, pois mesmo que não me ouvisse rir, a minha consciência me incriminaria, pois os bêbados não merecem zombarias, mas, comiseração.
E esse eu risse, certamente o meu riso estaria concentrado nos contrastes de suas pernas, onde algumas veias em alto relevo e duma coloração azul esmaecida lembravam as rotas de assalto entre o México e a terra do Tio Sam. Porém o mais engraçado não ficava por conta das pernas azuladas e flácidas, mas sim objetivava a sua cueca samba-canção verde-limão com bolinhas vermelhas. Aliás, ele tinha outras cuecas divertidas, como uma num tom azul-bebê com triângulos alaranjados, e outra num vermelho vivo, onde sobressaiam algumas nuvens brancas e um abrasador sol num tom amarelado. Todavia ele não abria mão das suas campeãs, e elas me divertiam a valer; uma, estampava o rosto e os seios de Brigitte Bardot. Para quem não sabe, ela era francesa, deusa nas telas dos cinemas nos anos 60. E a outra? Bem, a outra era ridícula, pois em azul pavão levava na frente a gravura dum peru, onde acima líamos “Glu Glu Glu” 

Enfim...para mim sempre foi normal aquele festival de aberrações, portanto olhei-o ao chegar no quarto com o copo de bebida na mão. Ele sorveu um longo gole, descansou o copo na mesinha de cabeceira e novamente ele se deitou e me colocou em sua barriga.  Definitivamente, naquela noite algo o incomodava terrivelmente:

-Vamos, Doutor Panda! Não desista de mim. Aqui estamos apenas eu e você, e talvez por ser inexperiente não saiba que na vida tudo é possível. A vida é repleta de mentiras, verdades. Há o feio e o bonito, sem esquecermos a água e o fogo. Mas...será que posso ser sincero com você? – Ele inquiriu.

Olhei pare ele, e dessa vez o sentia conflitante. Não era apenas o seu estado alcoólico, pois com aquele eu estava acostumado. Eu o percebia oposto a ele mesmo, assim como se no seu olhar nada existisse, como se a esperança estivesse a nado e contrária a correnteza. E as minhas impressões se confirmaram diante da sua quase súplica:

-Vamos Doutor Panda. Diga para mim por onde anda essa tal felicidade? Por acaso ela gosta de nos pregar peças? Será que ela se sente menos infeliz ao esconder-se de nós? – Ele insistia. 

Sua aparência estava péssima, e ele transpirava muito, e a melancolia era tanta que, se o escritor não houvesse morrido há séculos seria capaz de jurar que estava diante do próprio Shakespeare.
Bem, tanto quanto o “Ser ou não Ser” aquela questão sobre a felicidade me era difícil, pois para mim ela se resumia pouca, pois aprendi a me contentar com quase nada, com coisas tolas, mas que significavam muito para mim, assim como poder sentar ao sofá e jogar conversa fora com aqueles dois. Não, minha conclusão não era queixa, mesmo que, pouco ou quase nada tivesse aprendido com eles, mas levava a gratidão nos sorrisos límpidos do Pateta, desses calmos, serenos, e que jamais verão o lado ruim das coisas, ou mesmo que, vendo, jamais o admitirão. Quanto ao velho Leão da Montanha, era apenas zero, não havia as garras e nem os rugidos, mas apenas a melancólica nostalgia, a saudades dos tempos tenros, duma era que lhe foi dado a majestade, um cravar de garras e o fincar dos dentes.

E pensando nesses fatos por alguns instantes fiquei imaginando que talvez ocorria ao velho algo muito próximo da sina do Leão. Porém sempre é bom dividir responsabilidades, e também era necessário que meu dono assumisse as suas culpas, já que existiram boas mulheres na sua trajetória. Obviamente não estou me referindo aquelas garotas que chegavam chapadas de maconha ou bebidas, e que estavam ali simplesmente para serem fodidas por um escritor “underground”. Assim como também não levo em conta as cosias que inflavam o seu ego, suas alegrias transitórias ao se postar ao lado duma bela garota que lhe fizesse carinho na barba ou mordiscasse suas orelhas. Não, não são essas as referências; Falo do amor, dos sentimentos, assim como lhe foi doado por uma dona, talvez uns quinze anos mais jovem, e que esteve tantas vezes nesse quarto, num caso que durou pouco mais de seis meses. Lembro-me do início e que, entusiasmado por ela os olhos se iluminavam ao simples toque da campainha. Geralmente ela e o seu perfume de mulher vinham nas sextas-feiras á noite, deixando um rastro de beleza e do cheiro bom. E eles sorriam, pois se gostavam, e assim que ela chegava o velho pedia uma suculenta pizza e uma garrafa do vinho do bom, ou mesmo, se não comessem em casa saiam abraçados e na direção de algum restaurante próximo. Naquela época eu gostava do brilho impregnado em eu olhar, e ele era feliz, principalmente ao fim da noite, quando em lençóis limpos os gemidos e palavras de amor penetravam nos descascados das paredes.

No entanto, com ele o bom jamais perdurou, e Silvia também não, e tudo terminou numa noite que ela veio aqui e não o encontrou, pois ele tinha ido à farmácia à procura de medicamentos para uma daquelas meninas. E Silvia, encontrando a porta entreaberta ganhou a sala e deu de cara com três jovens alcoolizadas, todas aparentando um quê de vulgaridade. Claro, eram as fãs do escritor que surgiam do nada e nas horas mais impróprias, inclusive testemunhei ocasiões em que elas apareciam por lá e levavam bebidas para ele,  algumas ofereciam-lhe drogas, mas esse lance de entorpecentes jamais foi com ele, portanto as coloca para correr quando o lance redundava em maconha ou em papelote da cocaína. Entretanto, Silvia, jamais imaginaria tais fatos, e assim, instintivamente se dirigiu para o quarto, e ao se deparar com a jovem esparramada na sua cama acabou por ter um acesso de fúria, atirando ao chão os enfeites da estante. Sim, os meus amigos a olharam-na assustados, e sabiam tanto quanto eu que não houve qualquer traição do velho que, já que a garota e as amigas chegaram em estado de embriaguez, e ele foi até cuidadoso ao ceder o quarto e ir a farmácia. E foi assim que Silvia se foi, bateu a porta e jamais voltou. Depois do abandono eu o vi sofrer e sofrer, mas jamais a procurou para elucidar os fatos, pois o orgulho sempre foi o seu defeito maior.
E eram esses os fatos que recordava quando fui interrompido por sua voz pastosa. Dessa vez havia ódio em suas palavras:

-Foi essa merda que você pensou aí Doutor Panda! Não houve culpa minha, mas sim daquela desnaturada. Eu apenas tinha ido à farmácia... E agora é com você, já que isso te diz respeito; Orgulhoso é a puta que pariu! Ta?

Fitei- o com os olhos do inacreditável! Seria possível que estivesse acontecendo aquilo?  Por acaso ele estaria me ouvindo?

-Ouço sim, seu porra! E você pensa num tom exageradamente elevado, em alta frequência de pensamentos – Resmungou tão embolado que tive que me esforçar para compreender o fim da frase.

Deus do céu! Aquilo só poderia ser Delirium Tremens! Só não sabia se dele ou meu.

-E outra seu urso ignorante! Aprenda! Ursos não deliram e nem desenham nas aquarelas surreais.... Ursos, bem...ursos apenas hibernam! – Devolveu com a fala amolecida Mesmo perplexo diante do fato fui obrigado a rir.

-Ursos apenas hibernam! – Eu repeti e ri comigo por diversas vezes. Talvez eu tivesse rido alto demais.

-Que merda Doutor Panda! Quer interagir em baixa frequência! É isso, ou a estante! O que me diz? – Ameaçou

-Desculpe! Na próxima tentarei melhorar –  respondi sem graça, afinal, eu não queria ir para a estante.

-Vai melhorar uma porra, urso imbecil! – Ele berrou – Jamais imaginei que você me olhasse com olhos tão críticos – Ele disse. Era estranho, pois suas palavras agora eram de puro ódio.

-Desculpe, eu não pensei que.... –  Não me deixou terminar.

-Se arrependimento matasse, há essas horas eu estaria numa cova profunda – Deveria ter deixado vocês mofarem naquela maldita vitrina empoeirada. Mas não...eu tinha que ter compaixão...Ele ruminou chacoalhando os meus braços violentamente.

-Desculpe, desculpe, eu jamais imaginei que pudesse ler os meus pensamentos.

-Leio sim, leio agora, e não somente os teus, mas também os daqueles dois idiotas que cochicham na estante por acharem que não posso escutá-los. EU ESTOU OUVINDO VOCÊS –  Berrou. Olhei para ele e agora os seus olhos me causavam pavor.

-Hey, não xinga meu amigo não! Não xinga a gente não! O imbecil é você! – Surpreendentemente Pateta reagiu em nossa defesa., e mesmo que ele estivesse bravo, ninguém exporia a sua raiva de forma tão divertida.

-É, isso mesmo! Penso exatamente como o Pateta! Se há algum idiota aqui, esse idiota é você! – Juntou-se a nós o Leão da Montanha - E quer mesmo saber seu escritor de meia pataca? – O Leão continuava a desafiá-lo– Você é tão imbecil que nem conseguiu cair para o lado certo quando disse: Saída pela esquerda! Aprenda seu ignorante; quando sair pela esquerda, jamais tombe para a direita! – Finalizou o montanhês com um sorriso vitorioso..

-Ah, é assim que me agradecem cambada de viados? Ao acaso é um lavante, é a revolução dos bichos de pelúcia? - Que medo! - Devolveu ao gargalhar zombeteiramente. Repentinamente sua expressão reassumiu o ódio.

-  Todos verão do que o imbecil  é capaz -   Gritou atirando-me ao chão. 

Em seguida ergueu-se, trôpego, se equilibrava nas pernas, mas mesmo assim ainda conseguiu desferir um chute nas minhas costas. Eu pude sentir a dor. Depois, com a parte interna do pé direito empurrou-me para próximo da parede, e dirigiu-se à estante e recolheu os meus amigos com inequívoca rudeza. Por fim e com a dupla nos braços catou-me no canto, e num grande abraço acolheu-nos no peito e nos  levou à janela.

-Então vejam o que esse imbecil é capaz de fazer! – Sua voz soou como um estouro de canhão ao atirar-nos por através dela. Estávamos no 13o andar.

Nada mais poderia ser feito, e ao sentirmos no corpo o vento da noite percebemos que seri o fim, caminho sem volta, rota da morte. E mesmo despencando sorríamos uns para os outros enquanto a brisa gélida  acariciava as felpas dos nossos corpos, resvalando suavemente nos olhos de vidro. E foi diante dessa cumplicidade que nos demos as mãos, velhos companheiros unidos até o ato derradeiro e diante da insensibilidade do asfalto que nos aguardava. Seríamos destroçados pelas rodas dos automóveis, ônibus, caminhões? Não sabíamos, e só gostaríamos que tudo fosse tão rápido quanto as pernas de Usain Bolt, a bala humana.

-Saída pela esquerda! O Leão urrou e sorriu resignado.

E o Pateta, aquele que jamais deixou de sorrir persistiu gargalhando, provavelmente sem saber dos motivos, mas achando ótima a sensação do vento lhe tocando as faces.
As horas sempre se acometem rápidas, e a manhã logo chegaria, e ao acordar como se fosse dum pesadelo, o velho traria na boca o amargo sabor da bebida e solidão, e seríamos por ele procurados e ele nem se lembraria daquilo que fez e o porque fez,  pois assassinamos a consciência não uma, mas muitas vezes, e a partir da segunda, todas nos parecem iguais.
Foi assim que tudo aconteceu, e mesmo morrendo ainda me houve tempo para sorrir e perdoar.
Era um ciclo que chegara ao fim.

Copirraiti27Nov2013
Véio China©



domingo, 17 de novembro de 2013

O velho e o Mar (By Véio China)


Os sentimentos do pescador, um verdadeiro lobo do mar, naquele dia se concentravam nas tormentas e no infinito das águas azuis, que faziam dançar o seu barco como se fosse dum papel pouco encorpado. Sim, fora avisado pela guarda costeira dos perigos, porém não deu atenção, pois perdidos dentro de si havia o cheiro das tripas dos peixe que, tal qual a natureza humana se misturavam em suas entranhas. Ele navegava solitário, já que e aprendera compactuar com as levezas dos mares calmos, assim como agora defendia-se das poderosas ondas que, bravias e sucessivas pareciam pretender partir ao meio o "Gladiator" seu velho barco de pesca.
Naquela tarde de mar revolto ninguém saíra para pescar, afinal, bom pescador é aquele que respeita o mar, pois sabe que as águas não aceitam desafios. E havia nele toda a compreensão para todos esses ensinamentos, porém, ele sorria. Sorria para o instante, sorria das suas peripécias e maestria ao desafiar o oceano que aguardava por um só por um dos seus deslizes para sepultá-lo de vez naquele cemitério de vagas. Mas também o fato não o impressionava, pois ele não estava ali para pescar, mas sim para morrer, já que lhe parecia romântica a ideia de ir-se tragado pelas águas, pois para ele seria como estar sendo velado no quintal de casa.

Claro, poderia ser tudo mais simples e mais rápido; a bala nos miolos tornaria tudo tão definitivo, mas, o pavor de causar algum transtornos para Helga, a sua boa vizinha de trailer, deixava-o incomodado. Ah Helga! Uma pessoa de coração imenso, e que, apesar da cegueira, ainda encontrava alegrias para viver. Sempre se perguntara por que Helga descobria os infindáveis motivos que permitissem sua batalha perdurar, mesmo que sozinha, aliás, não somente só, mas junto duma modesta pensão deixada pelo falecido marido ferroviário. Lembra de tudo que ocorreu há cinco anos; do rapaz que deu naquela praia dirigindo um trailer e o estacionou ao lado do seu. Lembra ainda que a mulher desceu pela porta tateando as paredes do veículo, e que depois de algum confabulo com o jovem motorista veio até si e pediu autorização para cravar vida ali. "Eu não sou dono da areia, dona! Nem do mar" - Respondeu a ela. Ela sorriu, sim, mesmo que estivesse com óculos escuros pode perceber o sorriso denunciado nos cantos dos lábios. E assim ele pediu para conhece-lo, e contornando seu rosto com as pontas dos dedos foi que travaram o primeiro conhecimento. E de lá para cá nasceram dois irmãos, e ele gostava de voltar do mar e dar a ela um b om peixe, e sentar-se na soleira do trailer para ouvir as boas histórias da velha Alemanha, país natal de Helga.

Fora isso não havia muitas lembranças, salvo a da visita do seu único filho e de quando se viram pela última vez, talvez há uns três anos e meio.
Foi num fim de tarde de domingo quando emborcava o último quarto da sua garrafa de vodca, e foi acordado pelas palavras ditas por alguém de rosto jovial:
“Oi pai, tudo bem com você?” – Assustou-se, e entre encantado e surpreso conseguiu apenas responder um “Tudo bem!”. Porém não houve nem tempo de apresentá-lo a Helga, e  Dustin não ficou mais que 30 minutos e se foi tal qual como chegara; sem deixar qualquer endereço ou um número de telefone.  Agora ele pensava naquilo; Talvez a culpa tenha sido sua. Talvez não tivesse demonstrado a necessária alegria em vê-lo, talvez a história teria sido diferente e ele tivesse ficado para jantar o melhor dos peixes que um pescador conseguisse preparar.
Então, praticamente com quase nada a se falarem foi que viu a silhueta do filho descer os degraus do trailer e se tornar apenas um ponto caminhante nas areias e desaparecer no horizonte ao fim daquela mesma tarde.

E fora assim naquele mesmo dia que ele decidira da um basta em tudo, portanto estava aqui. Era doído recordar-se da mãe de Dustin e de quanto era bonito o seu sorriso. Dilacerava reviver aquela noite que, voltando do mar não encontrou ninguém no trailer. Depois disso sua vida não buscou realizações, e ele se deixou levar por uns poucos amigos (alguns deles falecidos) e de algumas rameiras de beira de cais Por fim, recordou-se dos homens e da natureza humana e de quanto algumas dessas pessoas possuem o dom de desintegrar qualquer tentativa duma existência pacífica e feliz.

Vivia nesse conjunto de lembranças quando foi acordado pelo surgimento de raios que chicotearam o ar e um vento gélido o fez tremer nos ossos; Seria possível ver o que via? Sim! Não havia a menor dúvida, pois vinda do horizonte ele divisou a formação de uma descomunal onda, talvez a maior da sua vida.
Novamente sorriu, já que sabia que era a onda da sua vida. Repentinamente o céu se acalma e não há mais raios e nem os ventos da tormenta, mas apenas o vagalhão que se aproxima calmo e colossal, e vai ganhando corpo até formar um paredão como se fosse um edifício de alguns andares. E ela veio e “Gladiator” surfou na sua crista, porém o leme já não respondia a qualquer manobra dos seus braços. Evidente, quem seria ele pra enfrentar a imposição do oceano? Não, era pouco, quase nada, mas não se entregaria assim, sem qualquer luta,  dignidade, pois o que pouco houvera em vida não ia lhe faltar na morte. E foi então que onda quebrou-se em cima e o barco despencou e desgovernado num mergulho que beirou ao desespero, foi à pique. Livrando-se do barco os seu braços tentaram se debater junto às outras ondas, agora menores, mas já não havia mais qualquer resistência no corpo exaurido, portanto,  submergiu.

E o seu corpo afundava e o ar se rareava nos pulmões enquanto percebia a beleza em algumas das exóticas criaturas marinhas. Podia notar a beleza e o bailado dos peixes das tantas espécies, e de como tudo que estava sob a água se movimentava de forma exata e disciplinada. E a cada instante o corpo ganhava as profundezas, pois o soube ao golfar o último ar. No seu rosto insistia o sorriso sereno, e um desejo moribundo. Sim! Estava á porta da morte, e para um moribundo nada se nega, pois foi o que lhe ensinaram em sua existência.
Ainda restava alguma vida em seus olhos quando ela veio; linda,  maravilhosa, seios fartos e  mamilos generosos. Ao fim do estonteante corpo da criatura não se viam pés, mas a graciosa nadadeira que fazia aquele ser quase humano flutuar com a mesma leveza de um balão à gás. E então ele a admirou, e ela sorriu para ele e estendeu-lhe as mãos alvas e delicadas. Ele, encantado as pegou e ambos sorriam docilmente ao iniciaram o bailado do adeus. Sutilmente, percebendo que não mais havia ar em seus pulmões ternamente se desvencilhou das mãos sedosas e cerrou os olhos, colocou posicionou a mão direita junto ao coração e disse um adeus para Helga.
Ao tocarem o fundo do oceano havia nele um sorriso agradecido.
Era um belo e meigo sorriso preenchido de paz.